O Livro

ESTE TRABALHO ESTÁ EN CONSTRUÇÃO. SE QUISER COLABORAR, AGRADECEMOS CONTATO A heloisa.primavera@gmail.com   

O FUTURO DO DINHEIRO foi publicado em sua versão original, em Inglês, em 2001. Somente em 2013, uma versão em português foi disponibilizada em pdf pelo autor, com a tradução feita pela economista da Universidade de São Paulo Lolita Sala, patrocinada pela Editora CULTRIX, quem também disponibilizou a publicação en la web, sem fins comerciais.

Bernard Lietaer nos deixou há pouco mais de dois anos, em fevereiro de 2019, em meio de uma extensa produção, o que acrescenta nossa responsabilidade com ele, isto é, com sua causa fundamental: desvendar os mistérios do dinheiro para criar um mundo de maiores possibilidades para as grandes maiorias. É por isso que renovamos essa aliança com ele e disponibilizamos hoje o texto em português dessa obra fundamental que é “O Futuro do Dinheiro”. Estamos também realizando a versão ao castelhano de outra obra que lhe foi muito importante: “O Misterio do Dinheiro”, que estará disponível nos próximos meses. Em http://www.lietaer.com poderão encontrar proximamente mais informação atualizada do grupo “Herdeiros de Bernard Lietaer” ao qual pertenço como homenagem a esse maestro, colega e quase-amigo-pessoal, inspirador de minhas mais ricas mudanças de chip em relação ao papel do dinheiro na transição do paradigma da escassez ao da abundância. Tanto como Margrit Kennedy e Paul Singer, são presenças permanentes (todos os dias, varias vezes por dia) em minha vida comprometida com as gerações futuras, a partir de uma busca que está refletida na criação de moedas sociais como a moeda par (Argentina), muyu (Equador), sol (Uruguai), pétalo (Chile) e luna (Colombia). Sem eles, apesar de “filhas da pandemia”, elas não estariam aqui. A busca continua… eles bem o merecem. Nossas crianças também.                                                                     Heloisa Primavera, 21.03.2021 

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Abaixo incluimos o índice e em outras seções deste blog pode ser encontrado o Prefácio a quatro mãos (Paul Singer e Heloisa Primavera)  e no capítulo 12, o artigo sobre o Brasil: passado e futuro das moedas complementares sociais..

 

Índice

Prefacio a quatro mãos Paul Singer e Heloisa Primavera…….………………….9
Introdução……………………………………………………….………………15

PRIMEIRA PARTE. O QUE É O DINHEIRO?
Capítulo 1. Dinheiro: a origem de todas as possibilidades…..…………………27
Capítulo 2. O mundo de seu dinheiro
(Manual introdutório sobre como opera o dinheiro……………………………..59
Capítulo 3. O dinheiro na atualidade……………………………….….………101
Capítulo 4. Ciber-esfera: a nova fronteira do dinheiro…………………….…..131
Capítulo 5. Cinco cenários hipotéticos para o futuro……………………..…157

SEGUNDA PARTE. A ESCOLHA DE NOSSO DINHEIRO FUTURO
Capítulo 6. Moedas que favorecem o trabalho………………………….……231
Capítulo 7. Moedas comunitárias……………………………………………..301
Capítulo 8. Alguns problemas práticos………………………………………..345
Capítulo 9. Uma moeda mundial de referência
para um mundo sustentável…………………………………………….…….365
Capítulo 10. Uma visão mais ampla: o Tao do dinheiro………… ………….395
Capítulo 11. Abundância Sustentável…………………………………………423                             Capítulo 12. Brasil: passado e futuro das moedas sociais………………………425                       Epílogo (e prelúdio)……….………………………..……………………..…… 461 Notas…………………………………………………………………………….477

Introdução
Os últimos seres a compreender a natureza da água são os peixes. E o mesmo ocorre com as pessoas e a natureza do dinheiro. Dedicamos uma grande proporção da nossa energia física, emocional e mental a ganhar, gastar e guardar dinheiro. Mas quantos de nós realmente sabemos o que é o dinheiro ou de onde ele vem?

Três promessas
A quem começar a ler este livro eu faço três promessas. Prometo que:

  1. Vai conhecer o funcionamento real do mundo do dinheiro, em uma linguagem que qualquer pessoa pode entender. Em certo sentido, há algumas semelhanças entre isto e as primeiras conversas que tivemos quando crianças sobre sexo. A verdade do dinheiro é tão interessante como era para nós o assunto do sexo – e é até mais obscura. Até poucos anos atrás, a sociedade ocidental tinha três grandes tabus: o sexo, a morte e o dinheiro. A revolução sexual da década de 60 – para não falar dos escândalos sexuais que os meios de comunicação alardeiam frequentemente – acabou com o primeiro desses tabus. Nos anos 80, a epidemia de AIDS nos fez falar de morte e sexo ao mesmo tempo, inclusive com as nossas crianças. Os problemas monetários da primeira década do novo milênio prometem nos obrigar a enfrentar o último destes tabus: o do dinheiro.

Este livro é um roteiro para a descoberta do atual sistema monetário, isto é, para ver como se cria e se maneja o dinheiro na nossa sociedade. É, também, um mapa para percorrer o itinerário da moeda, da Era Industrial (atualmente em declínio) à Era da Informação, rica em oportunidades. Será uma viagem informativa, salpicada de episódios surpreendentes e de toques de humor, na qual destaco as consequências negativas e as positivas do sistema monetário atual, assim como sua evolução até ser o que ele é hoje.

  1. Vai saber o suficiente para encontrar respostas próprias a perguntas como:
    Por que é tão raro um trabalho pleno de significado?
    Por que cada vez temos menos tempo, apesar das reiteradas promessas de que a tecnologia e a produtividade trariam a sociedade do ócio?
    Por que são cada vez menos acessíveis cuidados de saúde apropriados e uma boa educação para nossas crianças?
    Por que quanto mais avançamos financeiramente, mais sentimos falta de um verdadeiro espírito comunitário?
    Por que a sustentabilidade de longo prazo não é uma preocupação imperiosa da nossa sociedade?
    Por que há tanta gente obcecada por ter dinheiro?
    Por que a turbulência do sistema monetário mundial aumenta cada vez mais, e o que isto pode significar para você?
  2. Vai descobrir que existe outro curso de ação possível, e que cada indivíduo pode contribuir para que ele se concretize. E vai conhecer também novas possibilidades de construir e manter um mundo adequado para todos, no qual o ethos cooperativo possa se fundir com o competitivo em uma sinergia harmoniosa. A isto denominarei Abundância Sustentável. A Abundância Sustentável não é uma mera possibilidade teórica, mas uma realidade concreta. Em meio à incrível incerteza e às transformações que nos rodeiam (nos valores e nas prioridades; as permanentes oscilações do mercado financeiro; as perigosas especulações monetárias realizadas em três continentes), uma revolução monetária silenciosa porém inegável está em marcha. Este livro documenta o nascimento de mais de quatro mil moedas complementares que surgiram independentemente dos bancos centrais em mais de uma dúzia de países. Você verá que algumas dessas novas moedas já provaram que são eficazes para melhorar nível de emprego, comunidade e sustentabilidade. Estas novas moedas, que complementam as tradicionais, bem podem ser a solução para certos problemas aparentemente insolúveis. Os novos sistemas monetários surgem em decorrência de uma ampla metamorfose nos valores sociais, em particular naqueles frequentemente chamados de “femininos”. Homens e mulheres indistintamente percebem, cada vez mais, que para o nosso futuro é decisivo buscarmos um ethos cooperativo, baseado na colaboração entre as pessoas; o fortalecimento da comunidade e uma relação sustentável com o meio ambiente. As moedas complementares são a chave para equilibrar essas novas prioridades cooperativas com os valores competitivos que até há pouco tempo dominaram o mundo econômico. Observaremos que essas novas moedas possibilitam transações que, de outra maneira, não seriam realizadas, e por este motivo, elas criam riqueza nova, tanto econômica como social. A combinação das moedas nacionais tradicionais com as complementares originará o que eu chamo a “Economia Integral”, que nos levará à Abundância Sustentável. Se o leitor resolver, pode participar desse novo futuro monetário e começar imediatamente a criar a Abundância Sustentável.

Minha concepção
Este livro não é sobre economia nem postula uma teoria econômica. O que ele faz é examinar problemas da vida real que poderiam ser resolvidos por meio da combinação de diversas inovações monetárias, todas já postas em prática em algum lugar. Minha concepção do dinheiro não vem de nenhuma escola de pensamento econômico ou monetário, vem de um enfoque sistêmico integral.

Enfoque sistêmico implica identificar, diante de qualquer realidade, quatro aspectos:

  1. Os atores (individuais ou coletivos)
  2. Os processos (interações entre os atores)
  3. As regras (por exemplo as leis naturais ou, no nosso caso, as leis humanas que regem a criação e os movimentos do dinheiro)
  4. O contexto, isto é, as interações do sistema monetário com os demais sistemas e com seu entorno mais amplo.

Um enfoque sistêmico integral define o contexto da forma mais geral possível, incorporando os efeitos colaterais mais importantes, nosso caso abarcando, concretamente, os impactos dos distintos sistemas monetários sobre o caráter das interações entre as pessoas; sobre a sociedade em seu conjunto; e sobre os sistemas ecológicos aos quais pertencemos neste planeta.

As duas partes deste livro podem ser consideradas passos rumo a uma maior compreensão do sistema integral no qual o dinheiro se insere. Na Primeira Parte elucido os mistérios do atual sistema oficial de moedas nacionais. Na Segunda Parte amplio o campo de visão incluindo os novos sistemas monetários que estão surgindo. O tema deste livro é o mundo externo do dinheiro, ele descreve como os diferentes sistemas monetários configuram a sociedade.

Nossa viagem pelo universo das moedas será concluída em um segundo volume: “O Mistério do Dinheiro: Além da Cobiça e da Escassez”, que trata do mundo interno. Escalaremos um pouco mais alto para ver o grande panorama monetário e explorar o imaginário do dinheiro bem como as emoções coletivas que os diferentes sistemas monetários encarnam.

Quadros
Em quadros como este serão inseridos breves exemplos ou casos interessantes para ilustrar um tema em particular. Eles podem ser lidos ou não, isto não compromete a compreensão do corpo principal do texto… embora saltando um quadro talvez o leitor deixe perca alguma risada ou surpresa!

O desafio é tirar estas ideias das torres de marfim dos ambientes acadêmicos e financeiros sem diminuir a solidez conceitual delas, procurando que o produto final seja um texto para o público em geral. Eu recorri a notas e a um Manual Introdutório sobre como o Dinheiro Funciona (capítulo 2) para explicar certos pontos complexos básicos para a argumentação. Meu propósito não foi escrever um tratado sobre o dinheiro, mas expor só os aspectos que são fundamentais para compreender as opções disponíveis em termos de moedas, para a construção do nosso futuro nas próximas duas décadas.

Relatos
Haverá também relatos de todo tipo, alguns muito reais e outros completamente imaginários. Incluirei recortes de jornais ou revistas, cartas escritas a algum amigo, estórias contadas ao meu afilhado de sete anos e anotações das minhas viagens. Eles são parte integral do texto, estarão em quadros com este e embora pertençam ao argumento, eles podem ser lidos independentemente, também.

Primeira Parte
De onde vem, por que muda e aonde nos leva
O DINHEIRO

Primeira Parte: O que é o dinheiro?
A economia trata do dinheiro. Por isso é boa… E o dinheiro, do que trata?
– Woody Allen

O dinheiro é uma das matérias-primas com as que a humanidade ergue o edifício da civilização.

– Lewis Lapham1

Inventamos o dinheiro e o usamos, mas [...] não compreendemos as leis que o governam, nem controlamos o seu acionamento. Ele tem vida própria.

– Lionel Trilling2

Quando pensamos no dinheiro, tomamos como um fato consumado as características básicas dele, que permaneceram intactas durante séculos. É pouco provável que investiguemos as premissas subjacentes ao nosso sistema monetário, e menos provável ainda, que as reexaminemos em busca de soluções.

Nesta Primeira Parte trago à superfície essas premissas ocultas e com isto lanço luz sobre novas possibilidades de interações envolvendo moeda. Não se trata unicamente de como fazer dinheiro, como investi-lo ou como gastá-lo; há uma infinidade de livros que se ocupam destes temas. Nós nos centraremos no conceito do dinheiro e em como os distintos sistemas monetários dão forma a sociedades diferentes.

Veremos que está se tornando inevitável introduzir certas mudanças fundamentais no nosso sistema monetário, e que, embora essas mudanças, por sua magnitude, possam parecer assustadoras, há nelas, por outro lado, a promessa de uma oportunidade sem precedentes. É previsível que em poucas décadas a Era da Informação transformará radicalmente toda a nossa economia e nossos hábitos de pagamento. No âmbito do dinheiro já estão sendo feitas alterações significativas em todo o planeta, umas graduais, outras cataclísmicas. Um famoso expert em administração de empresas contemporâneo, Peter Drucker, expressa: “Na história do Ocidente, a cada tantos séculos ocorre uma transformação profunda. Em poucas décadas, a sociedade se reorganiza – sua visão de mundo, seus valores básicos, suas estruturas políticas e sociais, sua arte, suas instituições principais – e as pessoas que nascem nessa época não podem sequer imaginar o mundo no qual seus avós viveram ou no qual seus pais nasceram. Atualmente estamos assistindo a uma transformação desse tipo”.3

A experiência de uma transformação sem precedentes na história pode ser terrível, se não for preparada uma rede de proteção para a sociedade. Basta perguntar a qualquer dos bilhões de cidadãos da América Latina, da Ásia ou da Europa do Leste que ainda estão se recuperando dos impactos que sofreram em sua vida pessoal após mudanças cataclísmicas nas suas moedas, decorrentes diretamente de os governos abdicarem do seu poder em favor dos mercados financeiros internacionais. James Carville, chefe da campanha presidencial de Bill Clinton em 1992, realçou: “Eu antes pensava que se existisse a reencarnação, eu iria querer voltar ao mundo como presidente da república ou como Papa. Agora, eu gostaria de ser o mercado financeiro – ele pode intimidar qualquer pessoa”.

Mas este período de transição também nos abre uma oportunidade inédita: quando o dinheiro muda, mudam muitas outras coisas; quase tudo se torna possível. Essa transformação radical nos dará oportunidade de inovar muito mais do que as gerações anteriores sequer poderiam imaginar.

Resumo da Primeira Parte
O dinheiro influi. A forma como ele é criado e administrado em uma sociedade marca profundamente os valores e as relações dentro dela. Mais concretamente, o tipo de moeda usada em uma sociedade estimula ou desestimula determinadas emoções e padrões de conduta. O sistema que temos hoje é um produto inconsciente da cosmovisão própria da Era Industrial moderna, e continua sendo a força mais poderosa e persistente na criação e instrumentação dos valores e emoções que prevalecem. Por exemplo: todas as moedas nacionais favorecem mais a interação econômica entre compatriotas que com “estrangeiros”, e, por conseguinte promovem a consciência nacional. Da mesma forma, o mecanismo criado nas moedas oficiais fomenta a competição, e não a cooperação entre quem as usa.

O dinheiro é também o motor oculto da máquina do crescimento perpétuo – a marca registrada das sociedades industriais. E além disto, o sistema monetário que estamos usando incentiva o acúmulo individual e é implacável na punição de quem não obedece a esse imperativo.

Apesar disto, depois de vários séculos de hegemonia quase total das moedas nacionais “normais” (dólar, libra esterlina, iene, marco alemão, peso, etc.) como meio exclusivo de intercâmbio econômico, assistimos na última década ao ressurgimento das moedas privadas.

Para começar, quase 10% do comércio mundial é realizado, hoje, por meio de escambo, ou seja: sem moeda alguma, nacional ou não. A empresa Pepsi Cola, por exemplo, remete todo lucro auferido na Rússia sob a forma de vodka, que ela depois vende nos Estados Unidos ou na Europa. Os franceses construíram usinas nucleares no Oriente Médio em troca de petróleo.

Por outro lado, surgiram novos tipos de “corporate scrips”, isto é, moedas emitidas por empresas, por exemplo, as recompensas das companhias aéreas, que os clientes habituais trocam por milhas de voo ou outros tipos de serviços. São moedas que estão em se estabelecendo, destinadas à elite dos viajantes internacionais. E bem abaixo dos radares das autoridades, observamos um crescimento explosivo de moedas complementares populares, às quais me referirei no capítulo 1.

O que significa tudo isto?

Capítulo por capítulo
O capítulo 1 identifica quatro megatendências existentes hoje que provocarão uma mudança fundamental no sistema do dinheiro nas próximas duas décadas; e mostra também como esta mudança é uma oportunidade para resolver problemas aparentemente insolúveis enquanto continuarmos estancados no paradigma vigente do dinheiro.

Primeiramente, devemos estabelecer alguns elementos básicos. No capítulo 2 – Manual Introdutório sobre como o Dinheiro Funciona – eu delineio o papel dos principais protagonistas do sistema monetário atual: os bancos privados; os bancos centrais nacionais; o Fundo Monetário Internacional; e o Banco de Compensações Internacionais, bem como os processos ocorridos recentemente nos mercados mundiais de divisas. E traço também um mapa das mudanças sem precedentes do sistema monetário atual e as do futuro imediato, com as repercussões que elas terão na vida de cada um de nós. Este manual permitirá ao leitor se atualizar sobre como se cria o dinheiro, quem o controla e como opera realmente o mundo financeiro.

O dinheiro sempre foi um mistério. Durante milênios, esse mistério teve um caráter religioso, mas hoje o dinheiro se cobriu com o manto não menos eficaz do jargão acadêmico e de equações esotéricas. Assim, no capítulo 3 começo por revelar o mistério que envolve o dinheiro. Você também poderá entender as características principais e os motivos pelos quais na Era Industrial o mundo adotou com tanta naturalidade o sistema monetário atual.

No capítulo 4 demonstro que a cybereconomia pode chegar a transformar nossas sociedades mais até do que poderiam imaginar as pessoas que introduziram as inovações.

No capítulo 5 comparo diferentes cenários hipotéticos para esclarecer como as mudanças do atual sistema monetário podem impelir nossas sociedades em direções muito distintas. Cada cenário descreve um mundo no qual prevalece um tipo de moeda, e os efeitos desta opção em um lapso de 20 anos.

CAPÍTULO 1

Dinheiro: A origem de todas as possibilidades

O dinheiro é como um anel de ferro que colocamos no nosso nariz. Ele agora nos leva aonde ele quer, como se tivéssemos esquecido que quem o forjou fomos nós.

– Mark Kinney

O futuro não é um lugar já existente para onde estamos indo, mas um lugar que estamos criando. Os caminhos não estão por serem encontrados, mas construídos, e a atividade da construção transforma tanto quem constrói como o lugar de destino.

– John Schaar

As crises modernas foram, na verdade, criadas pelo ser humano e diferem de muitas das anteriores por poderem ser resolvidas.

– Segundo Relatório ao Clube de Roma4

Neste livro eu explico como é possível criar uma Abundância Sustentável no planeta, em menos de uma geração. Após ler os capítulos 1 a 10, você vai compreender por que a expressão Abundância Sustentável não é uma contradição em seus termos, e vai conhecer a evolução histórica que impediu o desenvolvimento da Abundância Sustentável… até agora. E terá as informações básicas necessárias para entender as tendências que tornarão possível a Abundância Sustentável no futuro imediato, e que já podem ser vislumbradas em todo o mundo. No Capítulo 1 mostro por que este avanço transcendental foi, paradoxalmente, o resultado de uma crise, especificamente, da convergência dos desafios sociais e econômicos sem precedentes que enfrentamos hoje. Poderemos aproveitar ou não a oportunidade destes desafios para mudarmos conscientemente, de toda forma a convergência deles implica necessariamente que agora é inevitável uma transformação fundamental.

A Máquina Compactadora do Tempo
Era uma vez um planeta extraordinariamente belo e exuberante. Seus inventivos habitantes criaram uma máquina gigantesca que surpreendeu até a eles próprios. A maior das surpresas foi descobrir que este aparelho colossal compactava o tempo. Esta característica notável os forçou a perceber as perigosas incompatibilidades entre seus hábitos mais apreciados e arraigados e sua sobrevivência como espécie.

Um dia, eles se deram conta de que quatro poderosas tendências convergiam, como enormes êmbolos, para um mesmo tempo e lugar. Talvez por que as megatendencias eram produto da inventividade deles próprios, era difícil tomar consciência delas, e mais ainda, resolvê-las. A figura 1.1 representa a Máquina Compactadora do Tempo criada por esta gente engenhosa (embora muito míope). E se o leitor observar bem, vai notar que esses indivíduos, seu planeta e sua máquina nos são muito familiares.

Instabilidade
monetária

A onda
do envelhecimento

2000-
2020
Mudança climática e
extinção da
biodiversidade

A Revolução da
Informação
“Nestes tempos ninguém pode esconder a cabeça como um avestruz.”
– The Economist
1º de janeiro de 1999
Figura 1.1 A Máquina Compactadora do Tempo

Esta máquina extraordinária consiste, como foi dito, em quatro êmbolos gigantescos que funcionam com velocidade variável, numa única direção. Dois destes êmbolos – “Onda do Envelhecimento” e “Mudança Climática e Extinção da Biodiversidade” – são como icebergs que se deslocam rumo a um mesmo ponto do tempo e do espaço no ritmo lento porém inexorável de um glaciar. Os outros dois – “Instabilidade da Moeda” e “Revolução da Informação” – também apontam para o mesmo ponto espaço-temporal a um ritmo mais rápido e irregular, como enormes embarcações (do tamanho do Titanic, digamos).

Descreverei as quatro megatendências brevemente, sintetizando cada tema em uma única questão monetária fundamental, para a qual a humanidade dará uma resposta – seja por ação ou por omissão – na próxima década. No restante deste livro mostro como estas questões monetárias podem se tornar oportunidades surpreendentes de tornar a Abundância Sustentável uma realidade.

O primeiro passo, como dizia o editorial da revista inglesa The Economist de 1º de janeiro de 1999, é reconhecer que “Nestes tempos ninguém pode esconder a cabeça como um avestruz”. Talvez ele obtenha algum consolo psicológico imediato com isto, mas outras partes vitais da sua anatomia ficam correndo um grande risco. Resumindo: chegou a hora de tirar a cabeça do buraco. Começaremos com a Onda do Envelhecimento: a mais lenta das quatro megatendências, mas também a mais inexorável.

A Onda do Envelhecimento
Durante 99% do tempo de existência da espécie humana, a expectativa de vida rondou a marca dos 18 anos. No último século, e em especial nas últimas décadas, avanços espetaculares na saúde, na nutrição, na qualidade de vida e na ciência médica ampliaram a expectativa de vida. Nos países desenvolvidos, ela atingiu 80 anos para as mulheres e 76 para os homens. Uma consequência interessante é que dois terços do total de seres humanos que chegaram a atingir 65 anos em todos os tempos estão vivos.5 O número 65, aliás, foi adotado como idade mínima para aposentadoria pela primeira vez por Otto von Bismarck. Isto foi no século XIX, quando a expectativa de vida na Alemanha era de 48 anos. Supunha-se que muito pouca gente chegaria a essa idade sagrada. Assim, no nosso contrato social, tudo o que se refere a postos de trabalho e aposentadorias foi criado visando atender a esses poucos indivíduos.

Nas próximas décadas ocorrerá uma transformação demográfica plenamente previsível: os fatos atuais explicam a quantidade de pessoas que isto afetará. Hoje, nos países industrializados, aproximadamente uma pessoa em cada 7 tem mais de 65 anos; (em 1960 era só uma em cada 11). Em vinte anos uma em cada 5 pessoas alcançará essa idade canônica; e no ano 2030 praticamente uma em cada 4! (figura 1.2)

[na imagem: Porcentagem da população com 65 anos de idade ou mais (OCDE)]
Figura 1.2 A Onda Grisalha: porcentagem da população com 65 anos ou mais (OCDE)6

Esta Onda do Envelhecimento nunca antes vista transformará a economia e a política globais. Segundo a opinião de um especialista: “O envelhecimento mundial não apenas será o problema econômico fundamental do século XXI, será também uma questão política importante, pairando como um fantasma e determinando os cursos de ação dos governos nos países desenvolvidos, obrigando-os a renegociar seus respectivos contratos sociais”.7 Não há antecedentes históricos em que nos apoiar ao lidar com os problemas gerados pelo envelhecimento da população. Mas esta tendência mundial tem, também, seu lado positivo, por exemplo: na geração atual, um indivíduo tem mais chance que em qualquer das gerações anteriores de vir a pertencer a este inusitado grupo de cidadãos longevos. Com uma porcentagem tão alta de gente mais madura, pode-se até ter esperança de que a Sociedade do Conhecimento que está começando evolua para uma era que mereça ser chamada Idade da Sabedoria. O tempo dirá.

Envelhecimento mundial: fatos e cifras8

Na Flórida (EUA), 18,5% dos habitantes (quase um em cada cinco) tem hoje 65 anos ou mais. Isto nos dá uma ideia do que ocorrerá no futuro em todos os lugares. Veja em que ano certos países alcançarão a “marca da Flórida”:
Itália: 2003
Japão: 2005
Alemanha: 2006
Reino Unido: 2016
França: 2016
Canadá: 2021
Estados Unidos: 2023

Este não é um problema exclusivamente de países desenvolvidos. A rigor, nos países em desenvolvimento, o processo se iniciará um pouco mais tarde, mas logo atingirá uma velocidade maior que nas nações desenvolvidas. Por exemplo: enquanto na França os idosos levaram um século para passar de 7% a 14% da população, as projeções indicam que na Coréia do Sul, em Taiwan, Cingapura e China esse salto levará 25 anos apenas.

Prognósticos das Nações Unidas indicam que em 2050 o total de habitantes do planeta com entre 65 e 84 anos de idade terá subido de 400 milhões para 1,3 bilhão (se triplicará), enquanto o número dos maiores de 85 anos passará de 26 milhões a 175 milhões (se sextuplicará). E os centenários (100 anos ou mais), que atualmente são 135.000, chegarão a 2,2 milhões (16 vezes mais).

Porém, na atual transição algumas questões a serem enfrentadas nos exigem reflexão. Por exemplo, os passivos das instituições de previdência hoje carentes de fundos já são um problema grave. Não há reservas para pagar os benefícios adquiridos de aposentadoria aos trabalhadores atuais, elas foram usadas para pagar aos já aposentados. Só nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), esses passivos descobertos atingiram US$35 trilhões9 (o equivalente ao produto nacional bruto de três anos dos Estados Unidos). Se adicionarmos a este valor os custos dos serviços de saúde, esse passivo pode mais que dobrar. E estas quantias que já são de arrepiar não incluem o aumento projetado do total de idosos apresentado na figura 1.2.

O dilema que esta Onda do Envelhecimento nos apresenta se resume na seguinte árdua questão monetária: Como a sociedade fará para sustentar a longevidade dos seus idosos?

A revolução da informação
Há 200 anos, Benjamin Franklin afirmou que, se todo o mundo trabalhasse produtivamente, a jornada poderia ser de 5 horas. Há apenas 60 anos, o filósofo inglês Bertrand Russell e Louis Mumford, autoridade norte-americana em questões relativas à cultura, estimaram, ambos, que 20 horas semanais deveriam bastar para produzir todos os bens e serviços necessários na nossa sociedade ocidental. Nos últimos 30 anos, muitos economistas prognosticaram que a jornada semanal seria reduzida, ou que as pessoas se aposentariam aos 38 anos.

Mas, contrariando estas previsões, o que vemos hoje é uma luta feroz global pelos postos de trabalho. Em todo o mundo, não menos que 700 milhões de pessoas capazes de trabalhar e dispostas a trabalhar estão cronicamente desempregadas ou sub-empregadas. Antes, o desemprego era basicamente um fenômeno do Terceiro Mundo, mas agora se estendeu, também, aos países “desenvolvidos”. A Europa está experimentando sua pior crise de trabalho desde a década de 30; o Japão atravessa a situação mais grave de toda a sua história no que se refere ao trabalho. Nos Estados Unidos, a luta por postos de trabalho não se observa em termos de queda no nível de emprego, mas na degradação das condições de trabalho. A produtividade do trabalho aumentou 30% entre 1973 e 1993 nos Estados Unidos, enquanto as remunerações caíram aproximadamente 20% em termos reais no mesmo período; e paralelamente, a média de horas trabalhadas aumentou 15%. Quanto ao pessoal administrativo, hoje ser um workaholic é um pré-requisito tácito para manter um emprego. De acordo com a psicóloga Barbara Killinger: “O workholismo se tornou a causa principal das separações conjugais”.10
Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho) da ONU, hoje, o stress relacionado ao trabalho é “um fenômeno mundial”11.

A dura realidade é que a economia global pós-industrial não precisa – e portanto não pode e não vai – dar emprego aos atuais 6 bilhões de habitantes da Terra, muito menos para os 8 bilhões previstos para 2019. Nas grandes empresas do mundo todo, o crescimento sem aumento dos postos de trabalho, não é um prognóstico hipotético, é uma tendência constatada. Um dado mencionado por William Greider12 nos dá ideia da probabilidade de esta previsão se materializar: As 500 maiores empresas do planeta conseguiram aumentar sua produção e suas vendas em 700% nos últimos 20 anos, reduzindo, no mesmo período, o número de funcionários.

Os economistas argumentarão, corretamente, que um aumento da produtividade em um setor tende a criar postos de trabalho em outros. Assim, no longo prazo mudanças tecnológicas não resultariam em impactos. Mas ninguém pode negar que elas estão gerando um deslocamento massivo dos postos de trabalho e alterações fundamentais nas condições necessárias para se exercer certas funções. Mudanças rápidas – como as da área da informática – causam deslocamentos tão destrutivos quanto as perdas de emprego. Quem há de supor, sendo realista, que os operários da indústria siderúrgica podem ser capacitados para se tornarem programadores de computador ou assessores jurídicos de grandes empresas, por mais que nestes setores haja uma grande demanda? William Bridges, um especialista em projeções de nível de emprego, concluiu que “dentro de uma geração, a disputa pelos postos de trabalho parecerá a luta que houve por um lugar no deque superior do Titanic”.13 E como se não bastasse, constatamos que hoje as únicas sociedades onde se trabalha menos de quatro horas diárias são as tribos “primitivas” de caçadores-coletores que sobreviveram e seguem vivendo mais ou menos da mesma forma há 20.000 anos. Analogamente, na Europa medieval dos séculos X a XIII, o lavrador comum dedicava menos da metade das suas horas de vigília ao trabalho.14 Enveredamos pelo caminho errado?

Wassily Leontief, economista agraciado com o prêmio do Banco Central da Suécia “em Memória de Alfred Nobel”, sintetizou este processo geral da seguinte forma: “O papel dos seres humanos como principal fator produtivo está destinado a diminuir, da mesma maneira que o papel do cavalo na produção agrícola primeiro diminuiu e logo foi totalmente substituído pelo trator”.15 Podemos deixar que os cavalos morram em paz, mas o que faremos com as pessoas?

A questão monetária que está implícita aqui é: Como vamos sustentar outros bilhões de novos habitantes da Terra se, com a nossa tecnologia, há a possibilidade real de termos crescimento com redução do emprego?

Mudança climática e extinção da biodiversidade
Consideremos os seguintes fatores:
A empresa Munich Re, a maior companhia de resseguros do mundo, ao apurar o total das perdas em seguros relacionadas com o 11 de setembro, advertiu que sua principal preocupação quanto ao futuro não é o terrorismo, mas a mudança climática. As grandes catástrofes naturais se sucedem, hoje, com o triplo da frequência observada na década de 1960. A cada ano desde 1998, as perdas anuais das companhias seguradoras originadas por tempestades, inundações, secas e incêndios vêm ultrapassando as de toda a década de 80. Do total de pagamentos efetuados pelos seguros em todo o mundo, 85% são compensações referentes a catástrofes naturais. A CGNU, a principal companhia de seguros do Reino Unido e a sexta do planeta, prevê que, se o aumento dos danos às propriedades continuar no mesmo ritmo de hoje, no ano 2065 a soma dos pagamentos será superior ao total da produção mundial.16 Acredita-se que a causa destes problemas é a combinação de desmatamento com mudança climática.17 E, logicamente, este cálculo considera unicamente os ativos segurados, que são uma minoria. Outro indicador do aumento da violência da natureza é que atualmente nestas catástrofes morrem quatro vezes mais pessoas que em todas as guerras e revoltas civis juntas.
Em todas as partes do planeta foram observadas modificações significativas nos padrões climáticos (veja o quadro a seguir).

Mudança climática: algumas descobertas
Pela primeira vez na história, no verão boreal do ano 2000 um transatlântico cruzou o Polo Norte, normalmente intransitável. A camada do gelo ártico se partiu em duas nesse lugar.
Amostras de gelo e neve extraídas do Himalaia demonstraram que os últimos 50 anos foram os mais quentes do último milênio, e a última década a mais quente de todas. Resultados similares foram obtidos nas montanhas mais altas da África e da América do Sul. As consequências que isto trará para as reservas hídricas de vastas zonas, as quais nos últimos 10.000 anos dependeram dos glaciares, se farão sentir muito antes de que tenhamos a resposta para a mudança climática.18
Franco Andaloro, do Instituto Italiano de Pesquisas Marítimas, indica que a temperatura do mar Mediterrâneo aumentou 4°C, tanto que muitas espécies de peixes próprias desse mar emigraram para o Atlântico setentrional e devem ter sido substituídas por espécies tropicais.19
Os engenheiros que projetam esgotos, bueiros e pontes capazes de resistir grandes tormentas consideravam nos cálculos as “tormentas de cem anos”, ou seja, as que podem ocorrer no período de um século. Thomas Karl, da Administração Nacional de Oceanos e da Atmosfera dos Estados Unidos, afirma: “Já não existe mais um evento que ocorra uma vez a cada cem anos. Agora parece que temos uma tormenta do século a cada dois anos”. Eventos observados em 1997-98, como o célebre furacão Mitch, foram classificadas como “tormentas de cinco anos”.
Charles Keeling, do Instituto Scripps de Oceanografia, demonstrou que em todos os países a primavera está começando uma semana antes, e que as oscilações de temperatura são cada vez maiores (Nature, julho de 1996). Os dias mais quentes dos últimos 500 anos no Hemisfério Norte foram registrados nos anos 1990, 1995 e 1997 (Nature, 22 de abril de 1998). E além disto, há diversas provas de que é possível que se venham a ocorrer mudanças permanentes no clima em períodos breves, em décadas, e não em séculos, como se pensava até agora.
Um importante estudo sobre recifes de corais realizado por especialistas em biologia marinha para o Banco Mundial chegou à conclusão de que em dois anos (1998-2000) desapareceram de 50% a 95% dos recifes do oceano Índico (desde a África do Sul até o subcontinente Indiano). Os corais – um dos habitats mais ricos do planeta – não suportam um aumento da temperatura do mar de mais que 2°C por mais que um par de semanas. Em 1998, pela primeira vez a temperatura atingiu 3°C acima do normal durante várias semanas. Os recifes de coral são essenciais para a cadeia alimentar dos habitantes das regiões costeiras porque alimentam os peixes, e como são pouco profundos, os pescadores usam os recifes para coletar certas espécies. No Quênia, na Tanzânia, nas Ilhas Seicheles, no Sri Lanka e nas Maldivas, o enorme impacto econômico decorrente desta situação já se fez sentir.20
O nível de congelamento da atmosfera – ponto a partir do qual a temperatura é tal que a umidade do ar se congela – vem ganhando altitude desde 1970 a um ritmo de quase 4,5 metros por ano. Segundo pesquisadores de Ohio, nos Estados Unidos, os glaciares das zonas tropicais estão derretendo a uma “velocidade impressionante”. “O glaciar Lewis no Monte Quênia já perdeu 40% da sua massa, e na cordilheira Ruvenzori todos os glaciares estão se desfazendo. O mesmo ocorre na Patagônia. […] Comprovamos que a vegetação chega cada vez mais alto nas montanhas. […] Francamente, não sei quantas provas mais são necessárias”, declara Ellen Mosley Thompson, da Equipe da Universidade de Ohio.
Nem todos os efeitos são desagradáveis. Os ornitólogos britânicos comprovaram que 35 das 60 espécies do país chegam mais cedo e atingem regiões mais ao norte do país que no passado. Por exemplo, a borboleta ponta-laranja chega à ilha entre 15 e 25 dias antes que há duas décadas; enquanto a almirante-vermelho aparece 32 dias antes e sobrevive 8 dias mais que no passado. Uma dúzia de outras espécies chegam entre 8 e 26 dias antes que nas gerações passadas.21
Os satélites de pesquisa europeus ERS-1 e ERS-2 verificaram que na Antártida, a camada de gelo do Atlântico Ocidental se retrai mais de um quilômetro por ano. Barclay Kamb, um renomado glaciólogo do Caltech (California Institute of Technology), comenta: “Eu era bastante cético quanto ao derretimento da camada de gelo da Antártida […] mas agora, as evidências das rápidas mudanças que estão ocorrendo no gelo são tais que fazem sentido as preocupações com as piores previsões possíveis. […] Se a camada de gelo derreter, o nível do mar aumentaria cerca de 5 metros”. Isto provocaria a inundação de muitas cidades litorâneas, transformando a maioria das cidades portuárias em pântanos e muitas ilhas do Pacífico ficariam inabitáveis.22 No dia 17 de abril de 1998, cientistas do governo dos Estados Unidos informaram que uma superfície de gelo de 194 quilômetros quadrados se desprendeu da plataforma Larsen (no setor oriental da camada de gelo antártica), e atribuíram este fato à mudança climática mundial. “Este pode ser o começo do fim da plataforma Larsen”, disse o pesquisador Ted Scambos, do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo dos Estados Unidos.
O quebra-gelo canadense Des Groseillers foi posicionado no meio do gelo no oceano Ártico em setembro de 1997 como base de experimentos do SHEBA, o mais abrangente projeto de pesquisa das variações térmicas desse oceano. “Embora ainda não tenhamos os resultados conclusivos, um fato preocupante já foi identificado: o mar de gelo está menos profundo e estável, e a calota polar está retrocedendo rapidamente.”23
Aproximadamente metade da população do globo vive em zonas costeiras que serão diretamente afetadas pelas mudanças no nível do mar.24

Em 1998, o Museu de História Natural dos Estados Unidos realizou uma enquete entre biólogos profissionais (não ecologistas), que trabalhavam, na sua maioria, para grandes empresas. Dentre eles, uma proporção impressionante – 69% – concluiu que estamos atravessando “o 6o período de extinção”, que ao que tudo indica está se processando com maior velocidade afetando uma gama mais ampla de espécies que os 5 anteriores. Ele é inclusive mais rápido que o último, ocorrido há 60 milhões de anos, quando um asteróide acabou com os dinossauros. Afirma-se que em um lapso de 20 a 30 anos perderemos entre 30% e 70% da biodiversidade do planeta. Outra diferença em relação a todos os períodos de extinção anteriores é que este decorre da ação de uma espécie (a nossa), que se pretende a única dotada de inteligência e de consciência.

Um grupo enorme, totalizando 1600 cientistas, incluindo a maioria dos ganhadores vivos atualmente de Prêmios Nobel em ciências, aprovou por unanimidade a seguinte Advertência à Humanidade: “Se quisermos evitar enormes desgraças para os seres humanos e que nosso lar mundial seja irreversivelmente mutilado […], será necessária para a Terra e para a vida que há nela uma mudança de rumo fundamental. […] Se não forem controlados muitos dos nossos costumes atuais, eles podem colocar seriamente em risco o futuro que desejamos para a sociedade humana e para os reinos vegetal e animal, e o mundo dos seres vivos pode ser alterado a tal ponto que ele se tornará incapaz de sustentar a vida como a conhecemos. É urgente realizar estas mudanças fundamentais se quisermos evitar a colisão à qual nosso curso atual nos está levando”.25

A prestigiosa União Geofísica Americana (American Geophysical Union, AGU) é uma entidade internacional apolítica composta por homens de ciência. Entre seus 35.000 membros se encontram alguns dos principais estudiosos dos dados históricos e atuais sobre a mudança climática observada na atmosfera, nos glaciares, oceanos, bosques e desertos do globo. Em um relatório recente, a AGU informou que “os gases do efeito estufa lançados na atmosfera em decorrência do uso de combustíveis fósseis e de outros poluentes aumentarão o ritmo de aquecimento da Terra e porão em perigo muitas regiões. Trata-se de gases que podem persistir na atmosfera durante milênios; para além da controvérsia sobre o grau possível de aumento da temperatura no mundo e a forma de combater as mudanças climáticas, novas estratégias precisam ser desenvolvidas para enfrentar este problema”.26

Em outra iniciativa, 2800 economistas de todo o mundo (entre eles James Tobin e John Harsanyi, ambos agraciados com o Prêmio do Banco Central da Suécia “em Memória de Alfred Nobel”), subscreveram unanimemente a seguinte declaração: “A mudança do clima mundial é um perigo real e premente”, que trará consigo significativos riscos ambientais, econômicos, sociais e geopolíticos.27

Invariavelmente, todas estas exortações parecem se chocar contra um muro, toda vez que interesses financeiros estão envolvidos. O foco dos mercados financeiros é sempre o resultado do próximo trimestre, e se algum presidente executivo adotar prioridades de mais longo prazo, será punido implacavelmente, podendo, até ser afastado do seu cargo. Só poderemos abordar de maneira adequada e sistemática os problemas com os quais a mudança climática e a extinção da biodiversidade nos confrontam depois de resolver a questão seguinte referente à moeda:

Como resolver o conflito entre os interesses financeiros de curto prazo e a sustentabilidade de longo prazo?

Instabilidade da Moeda
Michel Camdessus, a primeira pessoa a ser eleita três vezes diretor geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), se tornou célebre ao descrever o quase cataclisma mexicano de dezembro de 1994 como “a primeira crise financeira do século XXI”. A quebra econômica total só foi evitada porque os Estados Unidos conseguiram reunir no último momento um pacote de ajuda financeira sem precedentes: US$ 50 bilhões. Porém, nem sequer o próprio Camdessus pôde prever que depois do crash mexicano viria uma crise tão enorme e rápida como a do sudeste asiático em 1997, que reduziu o episódio do México a uma ninharia, e exigiu medidas de emergência que fizeram o pacote de resgate mexicano parecer irrisório. Em seguida veio a crise da Rússia em 1998 e na virada do século, as quebras do Brasil e da Argentina. Se não forem tomadas precauções, há ao menos 50% de probabilidade de que nos próximos 5 a 10 anos assistamos a uma crise do dólar equivalente a uma catástrofe monetária mundial. A crise monetária agora se expandiu para três continentes. Rubin, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, adiciona: “Hoje, a quantidade de países em dificuldades [financeiras] ao mesmo tempo é algo jamais visto”.
Paul Krugman, “o economista mais aclamado da sua geração”,28 conclui seu artigo “O Regresso da Economia da Depressão” dizendo sombriamente: “Faz apenas dois anos, eu e a maioria dos meus colegas estávamos certos de que, embora o mundo devesse seguir padecendo dificuldades econômicas, estas não se assemelhariam às da crise da década de 30. […] A verdade é que a economia mundial nos confronta atualmente com mais perigos dos que havíamos imaginado. Certos problemas para os quais acreditávamos já ter encontrado solução tornaram-se incuráveis outra vez, assim como ocorre com as bactérias eliminadas temporariamente que no longo prazo desenvolvem resistência aos antibióticos. […] Resumindo, há no ar um nítido odor à década de 30”.29

No capítulo 2 (Manual Introdutório sobre como o Dinheiro Funciona), você verá que estes cataclismas que se repetem não são acidentes aleatórios mas sinais de uma mudança no sistema monetário oficial. Isto significa que nenhum país deveria se considerar imune a tais problemas: nem a China, nem a Alemanha, nem a Europa como um todo, nem os Estados Unidos.
A última questão monetária é direta: Como podemos nos preparar para uma possível crise monetária?

O dinheiro como núcleo da máquina compactadora do tempo
A extraordinária convergência destas quatro megatendências nas próximas duas décadas nos indica que Peter Russell estava certo ao predizer que “nos próximos 20 anos haverá tantas mudanças no mundo como todas as ocorridas nos últimos 200 anos”, e eu adicionaria que, para lidar com os desafios descritos acima, teremos que mudar tanto nossa consciência sobre o dinheiro nos próximos 20 anos como mudamos nos últimos 5 mil anos.30

Na figura 1.3 foram resumidas as quatro questões monetárias da Máquina Compactadora do Tempo. Queiramos ou não, para cada uma destas perguntas será preciso dar alguma resposta. No seu conjunto, elas nos dizem que algo essencial terá que ser alterado na nossa atual maneira de manejar o dinheiro.

Como nos preparar para uma possível crise monetária?

Instabilidade
monetária
Como a sociedade fará para sustentar a longevidade dos seus idosos A onda do envelhecimento

$ Mudança climática e
extinção da
biodiversidade Como resolver o conflito entre os interesses financeiros de curto prazo e a sustentabilidade de longo prazo
A Revolução da
Informação “Nos próximos 20 anos haverá tantas mudanças no mundo como todas as ocorridas nos últimos 200 anos… (Peter Russell)
e uma mudança tão grande na consciência
sobre o dinheiro como nos últimos 5 mil anos”
Como sustentar bilhões de novos habitantes com um crescimento econômico com redução dos postos de trabalho?

Figura 1.3 O dinheiro como o centro da Máquina Compactadora do Tempo

Se queremos lidar com estas questões, temos que questionar a interpretação que se dá hoje ao dinheiro. Continuar aferrado ao paradigma monetário prevalecente equivale a fazer coletivamente o que o cartunista Cardon ilustra com tanta sobriedade:

Ilustração de Cardon: “Aferrar-se ao paradigma monetário prevalecente…”

O que é a Abundância Sustentável?
No entanto, há outro desenlace possível: o que conduziria à Abundância Sustentável.
A Abundância Sustentável proporciona à humanidade a capacidade de crescer e florescer no plano material, emocional e espiritual sem desperdício de recursos que possam ser necessários no futuro. Um sinônimo desta expressão seria crescimento sábio. Ela caracteriza qualquer comunidade, sociedade, país ou sistema mundial capaz de dar às pessoas a oportunidade de expressar suas mais elevadas inclinações criativas sem com isto diminuir as perspectivas de as gerações futuras gozarem de uma vida igual, ou melhor. Consiste em satisfazer nossas necessidades materiais para podermos explorar nossas mais altas potencialidades como seres humanos.

Com tal compromisso fundamental, seria considerado um direito de nascença ter uma chance justa de desenvolver nosso verdadeiro potencial, sem sermos obstruídos pela falta de dinheiro. A Abundância Sustentável faz frente aos problemas que vão desde a pobreza extrema dos países do Terceiro Mundo à desoladora degradação do espírito comunitário nas regiões industrializadas, passando pelo colapso ecológico e o desperdício da inteligência de uma criança por falta de oportunidade de educação.

Abundância Sustentável não significa tirar de quem tem para dar a quem não tem. Pelo contrário, consiste em dar a todos a oportunidade de criar riqueza nova. Quem aprender os princípios da Abundância Sustentável poderá se engajar nesta evolução serena, porém transcendente.

“Em tempos de mudanças extraordinárias, o problema não é não realizar tudo o que poderíamos sonhar, mas não sonhar tudo o que poderíamos realizar.”31

Talvez a Abundância Sustentável pareça um sonho, mas hoje ela se tornou uma possibilidade real. As sementes brotaram e começaram a lançar raízes. Aqui contaremos a história dessas sementes, as diversas inovações que estão sendo realizadas nos sistemas monetários. Você descobrirá, também, por que este caminho de mudança é cada vez mais verossímil à medida que transitamos da Era Industrial, passando pela atual Revolução da Informação, rumo aos novos valores da Era do Conhecimento.

Para alguns, a expressão Abundância Sustentável parecerá um paradoxo, uma contradição. Os ecologistas são a favor da sustentabilidade, mas às vezes suspeitam da abundância. Os empresários podem estar a favor da abundância, mas talvez questionem tanta ênfase na sustentabilidade. Estas aparentes contradições serão resolvidas assim que as possibilidades dos novos sistemas monetários forem compreendidas plenamente.

A tese central deste livro é a seguinte: Vivemos uma mudança estrutural do sistema mundial, e essa mudança proporciona uma oportunidade sem precedentes para que nasça a Abundância Sustentável.

Formalmente, a mudança estrutural se define da seguinte maneira: “Em termos sistêmicos, alterar a estrutura significa alterar os links entre as informações que existem no sistema: o conteúdo e o momento em que se apresentam os dados com os quais os agentes do sistema devem operar, assim como os objetivos, incentivos, custos e consequências que motivam ou limitam a conduta”.32

O notável é que, embora tenha sido percebido o papel fundamental dos sistemas de informação na mudança estrutural, foi ignorado o nosso sistema de informação econômica mais importante – o sistema monetário – a chave para provocar as transformações necessárias e desejadas. É esta a lacuna que este livro pretende preencher.

Não deveria nos surpreender que durante a Revolução da Informação sejam cada vez mais possíveis as mudanças nos sistemas monetários. O dinheiro é o sistema de informação central na sociedade moderna, equivalente ao sistema nervoso do organismo (veja o quadro a seguir). Na evolução biológica de uma espécie, as mutações do sistema nervoso são relativamente raras, mas quando ocorrem, elas constituem acontecimentos fundamentais. De maneira análoga, uma mudança na natureza do nosso sistema monetário tem a capacidade de favorecer uma mutação fundamental da sociedade.

O dinheiro como sistema de informação
O dinheiro é nosso sistema de informação mais antigo. A própria escrita “foi inventada na Mesopotâmia para ajudar a manter a contabilidade”.33 Os textos mais antigos conhecidos (descobertos em Uruk) datam do ano 3200 A.C e descrevem várias operações financeiras, entre elas empréstimos com e sem garantia e transações em “moeda estrangeira”.
O dinheiro é, além disto, nosso sistema de informação mais difundido, já que através dos bilhões de intercâmbios realizados diariamente ele penetra em todos os estratos da sociedade.

Hoje o dinheiro se tornou um sistema de informação verdadeiramente global: trilhões de dólares se deslocam na velocidade da luz em um mercado de câmbio computadorizado e totalmente integrado, 24 horas por dia. E é o sistema de informação mais universal, atualmente, pois até a China “comunista” resolveu se basear primordialmente em incentivos monetários privados para motivar sua enorme população.

Resumindo, o sistema monetário global contemporâneo desempenha um papel similar ao do sistema nervoso autônomo no organismo humano, pois ele é essencial para o bom funcionamento do conjunto, embora até o momento ele tenha sido mantido inconsciente em grande medida, fora do controle da vontade dos indivíduos. Seguindo com a metáfora, nosso objetivo nesta obra é trazer à consciência as diversas consequências da utilização de um sistema monetário ou outro, de modo a podermos escolher livremente entre eles.

Também é importante compreender que a Abundância Sustentável não é um estado, mas um processo;34 para participar dele devemos:
Entender as premissas subjacentes ao atual sistema monetário.
Tomar consciência da existência de outros sistemas monetários capazes de cumprir funções para as quais as moedas nacionais convencionais provaram ser ineficazes.
A partir desta compreensão, escolher de forma fundamentada quais moedas devem ser usadas nos vários tipos de transações; e as escolhas dependerão do tipo de relação – recíproca ou competitiva – que queiramos estabelecer em um intercâmbio.

Veremos que as moedas nacionais convencionais e os sistemas monetários foram programados para gerar concorrência e manter escassez. Se outras moedas estiverem disponíveis, terá sentido continuar usando as moedas convencionais para fazer negócios, para comprar um automóvel, para pagar o combustível ou a conta do telefone; mas para comunicar-se com os vizinhos, para se ocupar das pessoas idosas ou ampliar os horizontes educacionais das crianças, talvez devamos contemplar o uso de uma moeda que favoreça a cooperação. Estes dois tipos de moedas são complementares entre si e podem coexistir. Até pode ser sensato aplicar ambos os tipos em certos pagamentos mistos (fazer parte do pagamento em moeda nacional e convencional e a outra parte em moeda complementar).

A tecnologia atual já gerou uma grande variedade de moedas não convencionais. Algumas são bem conhecidas, como a “milhagem” das companhias aéreas. No começo, era uma simples artimanha de marketing para conquistar fidelidade dos passageiros, mas como passou a ser possível trocar milhas não só por passagens, mas por vários serviços – chamadas de longa distância, corridas de taxi, estadias em hotéis e até assinaturas de revistas – elas terminaram funcionando como “corporate scrips”, ou seja, moedas emitidas pelas companhias, uma moeda privada. E igualmente importante é o fato de terem surgido outras moedas não convencionais, como as moedas comunitárias (LETS, Time Dollars, Horas Íthaca, etc.), que a maioria das pessoas continua considerando uma curiosidade, moedas exóticas, como os Vales para Serviços de Atendimento, do Japão, destinados especificamente ao atendimento de idosos, e a moeda curitibana ligada à reciclagem do lixo. Todas estas moedas não tradicionais são prototípicas da revolução monetária incipiente atualmente. Portanto, o futuro do dinheiro não depende só da informatização das moedas convencionais, como o dólar, o euro ou o iene, por meio de smart cards e outras tecnologias. Certamente, estas mudanças continuarão seu curso. Mas estas mesmas tecnologias de informação permitem que entrem no circuito novas moedas complementares não convencionais, e oferecem novas ferramentas para lidar com alguns dos desafios atuais mais prementes, tanto no nível nacional como internacional.

Apesar disto, a Abundância Sustentável não é o único desenlace possível do atual período de transição. Não é um processo automático nem predeterminado. Ela exigirá uma mudança – a primeira em muitos séculos – da percepção do vínculo que temos com o dinheiro.

Note que nenhum dos enfoques que propomos aqui é uma solução permanente, são instrumentos para transição, úteis talvez nos próximos 10 ou 20 anos, enquanto passamos da Era Industrial à Era do Conhecimento. Estamos numa transição, uma época sumamente incômoda e, assim como o filósofo Thomas Berry, percebemos que “vivemos entre duas histórias: a Velha História já não funciona como deve, mas ainda não aprendemos a Nova História”. Neste livro nos centraremos no que podemos fazer neste interregno “entre duas histórias”.

O que está impedindo a Abundância Sustentável?
O primeiro obstáculo para alcançar a Abundância Sustentável é que somos em grande medida inconscientes do nosso sistema monetário, de como se cria e como se maneja o dinheiro na sociedade. Mesmo os financistas nem sempre compreendem como foram incorporados às nossas transações distintos padrões de conduta, segundo o tipo de dinheiro instituído. Vivemos profundamente imersos em uma máquina de dinheiro planetária, embora sejamos incapazes de perceber a maioria das suas engrenagens; nem compreendê-las, e muito menos manejá-las. Porém, o sistema monetário dominante decide todos os atos econômicos e grande parte da conduta social e política. Esta inconsciência explica, também, alguns fatos gritantes, por exemplo, termos capacidade para produzir alimentos suficientes para todos os habitantes do globo, e existir também grande quantidade de mão-de-obra, mas conseguir o dinheiro para pagar os alimentos ser uma outra questão. Isto significa que a chave da Abundância Sustentável está no sistema monetário, o mesmo sistema do qual, ironicamente, somos quase inconscientes… até agora.

O segundo obstáculo para atingirmos a Abundância Sustentável é a inércia da tradição e os interesses particulares ligados a ela. Porém, esta maneira de exercer poder está escapando das mãos dos que o possuíam, pela simples razão de que a difusão das tecnologias da informação difundiu, também, o controle sobre a criação de moeda e as interações monetárias relacionadas a ela.

É essencial entender que o sistema monetário está mudando irreversivelmente, e que isto terá profundas implicações. Como ilustrado na Máquina Compactadora do Tempo, seguir usando o atual sistema monetário para controlar o bem-estar econômico da sociedade se tornou contraproducente para todos. Na última década, o sistema monetário oficial no mundo adquiriu um poder sem precedentes, e ficou fora do controle de qualquer autoridade, nacional ou internacional. As crises monetárias mundiais que aparecem periodicamente na primeira página dos jornais revelam as rachaduras do antigo sistema.
Estas mudanças ultrapassam a introdução de uma moeda única na Europa (o euro), dos cartões magnéticos, da explosão do comércio eletrônico ou de uma possível reforma das instituições monetárias internacionais. As crescentes repercussões da Revolução da Informação e os vários choques pelos quais o status quo está passando evidenciam certos sintomas de uma mutação muito mais profunda.

Uma das implicações disto é que estamos vendo mudar quem emite o dinheiro: hoje já não são só os sistemas bancários nacionais tradicionais, mas também as empresas privadas e as comunidades locais. E mudaram, também, as condições de emissão do dinheiro, por exemplo, com o advento de um tipo de dinheiro sem juros. A escolha de distintos tipos de moedas estimula diferentes comportamentos sociais: alguns sistemas monetários promovem a cooperação, enquanto outros incentivam a competição. Assim, tomando consciência dos diversos sistemas e seus respectivos efeitos, podemos optar entre várias moedas para distintas operações financeiras, e nossa capacidade de realizar escolhas inteligentes nos permite imaginar, inventar e sustentar diferentes futuros.

Uma vez em contato com os conceitos nos quais a Abundância Sustentável se baseia, vejamos agora o que ela significa na prática. As quatro seções a seguir nos permitirão vislumbrar que aspecto a Abundância Sustentável pode assumir na vida diária em distintas sociedades.

Quatro estações no ano 2020
Imaginaremos quatro cenas no ano 2020. Cada uma se relaciona com um dos êmbolos da Máquina Compactadora do Tempo e ilustra como é possível, empregando sistemas existentes de moedas complementares, reformular uma crise iminente convertendo-a em uma oportunidade de criar Abundância Sustentável. Estas seções oferecem um vislumbre do aspecto que a Abundância Sustentável poderia assumir em 2020. Algumas podem parecer um tanto exóticas no princípio, mas como diz o autor de ficção científica Arthur C. Clarke, “magia é qualquer tecnologia suficientemente desenvolvida”.

Por trás desses relatos está a tecnologia, neste caso, a referente ao dinheiro. As seções mostram o impacto da implementação apropriada de uma inovação monetária em algum projeto em andamento. Após cada quadro indicaremos onde encontrar, hoje, um protótipo que demonstra como essas situações são verossímeis e realistas. O restante do livro será dedicado a mostrar provas que corroboram a sensatez e a eficácia destas novas tecnologias monetárias.

Primavera

Como vive o Sr.Yamada desde que se aposentou
Amanhã o Sr.Yamada completa 105 anos, é um dia importante. Tudo foi preparado cuidadosamente para a celebração. O próprio Sr.Yamada decorou seu jardim de chá particular, por onde entrarão seus convidados. Sua vista já está fraca demais para a renovação da carteira de motorista, mas ainda está boa o bastante para apreciar a serenidade zen dos arbustos e rochas, e notar os primeiros brotos da primavera na sua cerejeira bonsai.

Dentro de uns instantes um vizinho, estudante de uma universidade próxima, virá trazer o jantar e ajudá-lo com seu banho ritual diário, tão importante para ele. Todos estes anos ele desfrutou de uma digna independência, e tanto sua família como seus vizinhos respeitam sua experiência e sabedoria.
– Boa noite, Yamada-San, eu trouxe seu prato favorito com peixe, e o yosenabe, que o senhor tanto gosta.
O Sr. Yamada retribui o sorriso. A vida pode ser bela aos 105 anos, mesmo com a modesta aposentadoria de um bancário afastado há tempos da vida ativa.

O Japão é um dos países cuja população envelhece mais rapidamente no mundo desenvolvido. Atualmente, já há aproximadamente 1.800.000 japoneses idosos ou incapacitados que necessitam de cuidados diários. O estado da Flórida, onde 18,5% da população tem 65 anos de idade ou mais, é um bom indicador das cifras demográficas sobre envelhecimento previstas para o Japão no ano 2025: a população de 65 anos ou mais totalizará 18,5% do total.

Quando Tsutomu Hotta, uma personalidade muito respeitada no Japão – ex-Procurador Geral e ex-ministro da justiça – se aposentou em 1991, decidiu fazer algo a respeito. Em 1995 criou uma organização privada chamada Instituto Sawayaka do Bem-Estar, que introduziu um tipo especial de moeda à qual ele denominou Hureai Kippu (literalmente, Vales para Serviços de Atendimento). A unidade de medida é uma hora de prestação de um serviço. Tipos diferentes de serviços têm valores distintos (por exemplo, o valor por hora de fazer compras ou preparar a comida para um idoso é menor que o de um atendimento corporal de qualquer natureza). Cerca de 100 entidades sem fins lucrativos passaram a usar esta unidade para os serviços. Os prestadores dos serviços acumulam créditos em uma conta chamada “poupança de tempo investido em atendimentos de saúde”, da qual podem retirar créditos se necessitarem para si mesmos, por exemplo, se adoecerem. Estes créditos complementam o programa usual de seguro de saúde que é pago em ienes, a moeda nacional. Além disto, muitas pessoas transferem parte dos seus créditos de Hureai Kippu ou a totalidade a seus pais, que possivelmente residem em outra região do país. A fim de realizar estas transferências regionais surgiram duas “câmaras de compensação” privadas que operam por via eletrônica. O governo japonês está avaliando, agora, a possibilidade de criar uma câmara de compensação oficial que possibilite realizar estas transferências em todo o país para qualquer tipo de créditos de tempo investido em atendimento de saúde.

Com esse sistema descobriu-se algo importante: os idosos frequentemente preferem os serviços do Hureai Kippu aos pagos com moeda nacional convencional, porque perceberam que os prestadores pagos com Hureai Kippu lhes proporcionavam um cuidado melhor. Para o estudante do primeiro relato, o Sr. Yamada é como um substituto do seu pai idoso, que vive em outra região, e para quem ele envia periodicamente parte dos seus “créditos de tempo”.

Tudo isto surgiu em 1999 como complemento do Seguro Nacional de Saúde, que cobre todos os serviços profissionais de saúde que são pagos em ienes. Por exemplo, se o Sr. Yamada necessitasse regularmente de hemodiálise ou uma sessão de quiropraxia, o seguro de saúde cobriria isto em ienes. Hotta prevê que “as novas moedas assumirão entre um terço e metade das funções monetárias tradicionais. Com isto, situações de recessão ou desemprego serão significativamente atenuadas”.35
Um processo totalmente independente deste foi o de uma empresa de planos de saúde de Nova York conhecida como Elderplan (plano dos mais velhos). Esta companhia vem aceitando desde 1995 até um quarto dos prêmios em Time Dollars (dólares de tempo), um invento de Edgar Cahn, conhecido advogado e professor da cidade de Washington. A Elderplan tem, também, um Banco de Serviços de Atendimento no qual, até junho de 1999, os 125 participantes inscritos haviam acumulado 97.623 horas de serviços. O banco começou como uma oficina de consertos domésticos que solucionava problemas antes que pudessem causar acidentes. O lema do Banco de Serviços de Atendimento é “Um porta-toalha quebrado hoje é um quadril fraturado amanhã”.36 Também neste caso, os usuários dos serviços se mostraram satisfeitos com a qualidade das relações que este método propicia. Durante o ano 2000, o sistema Elderplan, originalmente do Brooklyn, se estendeu às áreas do Queens, Staten Island e Manhattan, na cidade de Nova York.

No capítulo 7 explicaremos com mais detalhe os Hureai Kippu, a Elderplan e vários tipos de moedas de troca que promovem as relações comunitárias.

Verão

Um mundo equilibrado
É uma da tarde. Para Anna, encarregada do atendimento ao cliente da maior companhia de telecomunicações do planeta, com sede em Munique, a jornada terminou e ela volta para a sua comunidade, uma aldeia ao pé dos Alpes em 15 minutos, no metrô de alta velocidade.

Ela gosta do seu emprego, mas não vê a hora de chegar ao seu estúdio e seguir trabalhando em seus vitrais. Anna acaba de começar seu mais ambicioso projeto até o momento: um grande vitral representando os principais eventos da história da sua aldeia. Ela pensou em doar o vitral ao Centro de Educação Permanente no próximo festival artístico de verão, que dura duas semanas.

Todos os colegas de Anna têm um estilo de vida semelhante. Wolfgang, do departamento de finanças, se dedica à dança africana e formou sua própria companhia; a paixão de Berger, do sistema de gestão da informação é o entalhe em madeira e atualmente está pensando em fazer uma moldura apropriada para o vitral de Anna; Reiner, de recursos humanos, é luthier, ele restaura alaúdes antigos e outros instrumentos. Todos os moradores da aldeia têm a opção de seguir, como ela, uma carreira profissional dupla, graças ao fato de os sistemas de moedas complementares em uso permitirem ambas as atividades. Alguns decidem assumir um emprego de período integral em uma empresa tradicional; outros canalizam suas energias para a arte e vendem seus produtos em troca principalmente de moedas comunitárias. Muitos combinam as duas coisas porque dessa maneira têm mais liberdade de escolher, e porque, simplesmente, em um “mundo equilibrado” é melhor de se viver.

Com o aumento da produtividade decorrente da Revolução da Informação, Juliet Schor, professora adjunta de economia em Harvard, declarou: “Atualmente, poderíamos ter uma jornada de 4 horas, ou trabalhar só 6 meses por ano; ou cada trabalhador dos Estados Unidos poderia trabalhar um ano sim, o outro, não – com salário”. Poderíamos… Mas então, por que não o fazemos?

O mais próximo que encontramos na década de 90 de um “mundo em equilíbrio” é o modelo de Bali e de algumas outras sociedades tradicionais. Os visitantes se assombram com o dinamismo e o senso artístico incomuns da vida diária de Bali. Quase todo balinês é um artista exímio, e quase toda balinesa, uma bailarina graciosa, e todo mundo encontra uma maneira de desenvolver sua criatividade. Em cada aldeia são celebradas mais de 50 festividades no decorrer do ano, com expressões artísticas delicadas, embora efêmeras.37 As casas têm elegantes entalhes em madeira, os jardins são ornamentados de forma sofisticada.

O que Bali e seus habitantes têm que os torna tão distintos? O que ocorreria se o mundo inteiro – nossas cidades, nossa vida cotidiana – se parecesse com as deles? Muitos turistas que vão a Bali ignoram que para os balineses todas as suas atuações públicas são “ensaios”. As apresentações “de verdade” acontecem nos templos ou em atividades relacionadas. Os balineses dedicam entre 30% e 40% das suas horas de trabalho ao templo, que centraliza as atividades colaborativas, artísticas e religiosas, assim como de atendimento e cuidado dos que necessitam. Mais adiante direi que esta é a dimensão cooperativa da existência. A maior parte dos balineses adultos também tem algum ofício ou profissão que lhe toma os outros dois terços das horas de trabalho, naquilo que eu chamo “economia competitiva”, a única que conhecemos no Ocidente.

O tempo do templo, em Bali, faz parte de uma longa tradição de “economia da dádiva”.
No Ocidente, no atual período de transição da Era Pós-industrial, talvez não estejamos preparados, ainda, para uma economia da dádiva pura, mas é possível incluir a dimensão cooperativa em nossa vida cotidiana futura, talvez só precisemos de um mecanismo de transição, um processo para reconstruir o espírito comunitário e a confiança perdida na economia da dádiva.

Comunidades de todo o mundo já criaram e puseram em prática diversos tipos de moedas complementares compatíveis com uma economia da dádiva e que até podem levar a ela. As chamadas “moedas de crédito mútuo” podem ser criadas sempre nas quantidades suficientes, sem que se crie escassez. Ao invés do que ocorre com as moedas nacionais, programadas para a competição, as complementares não dependem da escassez: são criadas pelos próprios participantes no momento em que realizam suas transações. Por exemplo, se você me presta algum serviço durante uma hora, obtém de mim um crédito de uma hora e eu tenho um débito junto a você do mesmo valor. Se depois faço algo por você que também está avaliado em uma hora, ocorreria uma troca entre nós. Mas com a moeda de crédito mútuo você pode, também, comprar ovos frescos no mercado e eu, quitar minha dívida com alguma outra pessoa. Isso significa que criamos um autêntico meio de pagamento, não sujeito a uma escassez artificial. Cada vez que fizermos uma transação, podemos criar a moeda correspondente.

Uma das primeiras carências que teremos que enfrentar é a de trabalho. Neste momento estão funcionando no mundo 1900 sistemas de moedas complementares, a maioria delas surgidas com a finalidade de gerar trabalho em zonas de alto desemprego. No Reino Unido, mais de 400 comunidades desenvolveram um sistema eletrônico próprio com as moedas complementares, batizado de Local Exchange Trading System – LETS (sistema de transações com moeda local). Na Alemanha foi criado o sistema Tauschring (aliança de trocas); na França, os Grains de Sel (grãos de sal*) com centenas de projetos populares desse tipo funcionando nestes países. Nos Estados Unidos, seguindo o exemplo de Ithaca, no estado de Nova York, 39 comunidades criaram papéis-moeda próprios, resgatáveis somente dentro da comunidade. Mais adiante explicaremos detalhadamente no que consistem estes sistemas.

  • Em francês, a expressão tomar as coisas “com um grão de sal” significa considerar um assunto com prudência, sem deixar-se levar por apreciações superficiais. E SEL é a sigla de Système d’Échange Local [Sistema de Intercâmbio Local.] (N. do T. da edição argentina). Os círculos acadêmicos e os meios de comunicação de massa tradicionais costumam dar uma atenção apenas marginal a estas iniciativas. Porém, os governos da Nova Zelândia, da Austrália, da Escócia e de 30 estados dos Estados Unidos financiaram a implantação de sistemas desse tipo porque eles provaram que são eficazes na solução de problemas locais de desemprego. A União Européia está financiando programas piloto de moedas complementares com quatro tipos de tecnologia, em quatro zonas bem diferentes: são dois em áreas rurais da Irlanda e da Escócia, e os outros dois em cidades grandes, em Madrid e Amsterdã. O Banco Central da Nova Zelândia comprovou que as moedas complementares realmente ajudam a controlar a inflação da moeda nacional. Nos capítulos 6 e 9 nos deteremos nestas questões.

É difícil imaginar tudo o que se poderia criar se destinássemos 40% das nossas horas de trabalho, da forma que fosse, ao Tempo do Templo. Pensando assim, não acham possível que a Revolução da Informação venha a evoluir para uma autêntica Era do Conhecimento? O que cada um de nos iria querer aprender? Em que aspecto cada um gostaria de melhorar sua vida?
Imagine o que você seria capaz de criar, sozinho ou com outras pessoas.

OUTONO

Resolução da diretoria da Bechtel Corporation no ano 2020
Extrato da ata da reunião anual do conselho de administração da Bechtel Corporation, a maior companhia de engenharia civil e construção do mundo.
“A diretoria analisou os dois principais projetos de investimento que constavam na agenda:
° Um projeto de restauração da natureza, com duração de 300 anos, para a vertente meridional do Himalaia.
° Um projeto de reflorestamento do deserto subsaariano, com duração de 500 anos.
A diretoria decidiu por unanimidade dar início ao projeto do Subsaara, pois a taxa interna de retorno líquida era melhor. O presidente acrescentou que a importância do projeto para a estabilidade climática do globo foi um incentivo adicional para que ele votasse nesse projeto.”

Hoje em dia, a maior parte das decisões nas empresas são tomadas tendo em vista horizontes temporais inferiores a 5 anos, quando não visam estritamente o trimestre seguinte. Até os títulos de longo prazo, a forma mais conservadora de investir dólares pensando no futuro, têm um horizonte máximo de 30 anos. Com os critérios financeiros que vigoram atualmente, seria impensável uma decisão como a que acabo de descrever.

Mais adiante exporei um sistema monetário prático que tornaria estas decisões não só possíveis, mas totalmente lógicas; um sistema no qual a norma, a resposta espontânea das pessoas teria em mente preocupações de longo alcance, e elas não só seriam compatíveis com o interesse financeiro de cada um, elas seriam impulsionadas por ele. Não haveria necessidade de regras nem incentivos tributários artificiais para motivar as empresas ou os indivíduos a pensarem e agirem levando em conta a proverbial “sétima geração”.

Houve pelo menos duas civilizações que incorporaram em seus sistemas monetários uma característica fundamental que torna lucrativo fazer investimentos de longo prazo. Estes dois antecedentes históricos são o Egito dos faraós e a Idade das Catedrais (a Idade Média Central, séculos X a XIII, na Europa Ocidental). Em ambos os casos um mesmo traço esteve presente durante séculos. Conhecido como demurrage, este incentivo à circulação (ou em outras palavras uma “oxidação do dinheiro”) funciona como um juro negativo, desincentivando o acúmulo em forma de dinheiro. Documentos históricos nos indicam que, em decorrência deste sistema, os povos criaram espontaneamente edifícios e obras de arte destinados a durar para sempre. Hoje ainda podemos visitá-los. Nada impede que este mecanismo fundamental, base do sistema monetário, seja reproduzido e adaptado com eficácia para o século XXI. No capítulo 9 exponho detalhadamente como é possível conseguir isto.

Dentre a multiplicidade de criações que o século XX nos deu, quantas nossos descendentes do ano 3000 poderão visitar ou conhecer? Se fosse colocado em funcionamento hoje um sistema monetário orientado ao longo prazo, como esses mencionados, quais seriam as “catedrais do século XXI”? O que você, leitor, imagina? Eles não têm que ser templos nem edifícios.

Inverno
A viagem da neta à China
Minha neta é uma entusiasta da caligrafia e da poesia da China antiga. Ela resolveu aprimorar seu domínio do idioma oficial chinês (o mandarim) passando 6 meses na China no ano que vem. O orçamento que ela estima ser necessário para a viagem é o seguinte:
° Passagem: ela pagará com milhas que tanto ela como seus pais acumularam da linha aérea que eles costumam usar.
° Alojamento e alimentação: ela vem poupando Vales para Serviços de Atendimento nos últimos anos cuidando de dois idosos que vivem perto da cidade universitária onde ela mora. Ela vai simplesmente transferir seus créditos via Internet e receber moeda local da cidade universitária da China onde ela pretende ficar.
E eu resolvi lhe dar de Natal, 500 dólares convencionais para gastos extraordinários que tiver, e para ter uma reserva para qualquer emergência.

Poder usar meios de pagamento baseados na suficiência para parte das nossas necessidades talvez transforme muito as coisas. Atualmente, já seria possível funcionar em escala mundial, via Internet, uma câmara de compensação de moedas complementares. Seu objetivo seria possibilitar que todos os que aderiram a alguma moeda complementar (LETS, Time Dollars, Hureai Kippu, etc.) efetuassem transações recíprocas com suas moedas. Nem sequer a ideia de que a neta do nosso relato use uma moeda complementar em sua viagem é totalmente nova. A Rede Global de Ecovilas (Global Eco-village Network ou GEN), uma associação fundada em 1994, recomenda tais projetos e intercâmbios mútuos entre as diferentes comunidades participantes.38

Os sistemas privados de pagamento e os de moedas complementares podem ser uma rede de proteção útil para o sistema monetário oficial. Ter um estepe no carro pode ser supérfluo… até o dia em que um pneu fura. Um grupo de empresas russas criou um sistema de pagamento privado para suas transações mútuas, chamado Coroa de Ouro, uma demonstração palpável da utilidade que pode ter o estepe quando a moeda nacional enfrenta sérias dificuldades.39 A possibilidade de recorrer a moedas locais teve a mesma importância salvadora para o povo da Tailândia após a crise do baht, em 1997-98, como tiveram as redes de trocas na Argentina, que funcionaram durante muito tempo e ainda funcionam. Nos capítulos 6 a 8 nos ocuparemos destas moedas comunitárias.

Como criar abundância sustentável com moedas complementares?
Sem jogar no lixo as contribuições positivas do atual sistema, podemos adicionar a ele novas possibilidades. Costuma-se dizer que toda crise esconde uma oportunidade. Inclusive, o ideograma chinês para crise contém explicitamente o conceito de oportunidade. A oportunidade que descreveremos nas próximas páginas parecerá tão extraordinária como a própria crise. Descobriremos como converter a Máquina Compactadora do Tempo em uma “Máquina da Abundância Sustentável”. Conseguiremos isto revisitando a interpretação atual que se dá ao dinheiro, compreendendo como ele funciona na prática e agindo de acordo com esse conhecimento.

Já podemos reformular com mais precisão a tese desta obra: Algumas inovações já testadas são capazes de resolver as quatro questões monetárias resumidas na figura 1.3 e criar a Abundância Sustentável em menos de uma geração. A chave para isto consiste em introduzir moedas complementares, paralelamente ao sistema monetário atual, moedas que provaram que podem contribuir para resolver estas questões difíceis e complicadas.

Chamamos de moeda complementar um acordo entre um grupo de pessoas e/ou empresas estipulando a aceitação de uma moeda não tradicional como meio de pagamento. Ela é denominada complementar porque seu propósito não é substituir a moeda nacional convencional, mas cumprir determinadas funções sociais para as quais a moeda nacional não foi projetada.

Juntos, os intercâmbios com uso das moedas complementares e da moeda nacional convencional constituem o que eu defino como a Economia Integral. A Economia Integral inclui os processos estudados pela teoria econômica tradicional, mas vai além, compreendendo, por exemplo, as transações de comunidades locais de uma dezena de países que usam os 1900 sistemas de moedas complementares já postas em funcionamento. Essas inovações monetárias serviram de base para os relatos das quatro estações de 2020.

Agora é a hora de ver como a Máquina Compactadora do Tempo pode se transformar em uma Máquina da Abundância Sustentável. A figura 1.4 mostra como os quatro relatos imaginários são incorporados nesse processo.

Este livro dá provas detalhadas de que essa mutação é uma possibilidade real.

    A viagem da neta à China        
    Escolha da 

Moeda
Como vive o Sr.Yamada desde que se aposentou A onda
do envelhecimento

  • Restauração do planeta Resolução do Conselho de Administração da Bechtel Corporation em 2020
    Abundância do
    Conhecimento “Magia é qualquer tecnologia suficientemente desenvolvida” Arthur C.Clarke
    Um mundo equilibrado

Figura 1.4 Diagrama dos relatos das quatro estações, mostrando como transformar a Máquina Compactadora do Tempo em Máquina da Abundância Sustentável

A trajetória até o seu dinheiro e o seu futuro

O primeiro passo necessário é desmistificar o atual sistema monetário nacional e internacional e discernir quais mudanças são iminentes. Esse é o objetivo da Primeira Parte deste livro.

A Primeira Parte: O Que É o Dinheiro? se propõe a tirar o véu que foi colocado sobre o dinheiro, mostrar sua natureza e nos familiarizar com a forma como são criadas e como funcionam as moedas nacionais convencionais. Além disto, exploramos a nova fronteira da moeda – a Cyberesfera – onde estão sendo gestadas muitas das inovações em matéria de dinheiro. A seguir, questiono quais os diferentes futuros possíveis para o nosso sistema monetário e como eles podem moldar nossa sociedade. Para esta última etapa, recorro a cenários hipotéticos que descrevem diferentes mundos possíveis no ano 2020.

Uma vez compreendido tudo isto, você poderá perceber melhor a singularidade das inovações monetárias que se sucedem hoje no mundo, que são o tema da Segunda Parte: A escolha do nosso dinheiro futuro. Nessa parte mostro as diversas alternativas já em funcionamento, em matéria de moedas não convencionais; e como as moedas ou contribuem para materializar uma determinada situação ou a inviabilizam. Em particular, a criação de oportunidades de trabalho, a revitalização da vida comunitária, assim como o realinhamento entre a sustentabilidade de longo prazo e os atuais interesses financeiros de curto prazo, são metas que podem ser atingidas empregando-se as moedas aplicáveis para esses fins.

CAPÍTULO 2

O mundo do seu dinheiro
(Manual Introdutório sobre como o Dinheiro Funciona)

O dinheiro é a alavanca do poder.
– Friedrich Nietzsche

“Os únicos que afirmam que o dinheiro não é um problema são os que têm suficiente para prescindir da desagradável e pesada tarefa de ter que pensar nele.” Assim dizia a escritora estadunidense Joyce Carol Oates. Neste capítulo 2, como manual introdutório, explicaremos por que nos nossos dias mesmo esses poucos afortunados deveriam se pôr a pensar no dinheiro.

Você se perguntou alguma vez de onde vem o dinheiro? Como é determinado o valor da moeda? E a sua poupança, quem, de fato comanda a sua poupança?

Para começar a responder estas perguntas, primeiramente temos que entender as regras do jogo monetário mundial, saber quem são os jogadores e por que eles agem como agem. Neste capítulo apresento a você os principais atores do sistema monetário e os elementos essenciais desse sistema. E a seguir, exploraremos juntos as mudanças fundamentais que estão sendo operadas nele.

Nunca no passado questões ligadas às moedas tiveram tanta influência nas políticas públicas de todos os países. É, portanto um bom momento para nos instruirmos acerca do que está em jogo. Tudo isto vai afetar drasticamente o dinheiro e o futuro, tanto como uma mudança climática radical afeta as plantas do seu jardim.

O primeiro passo é tomar consciência de que o “seu” dinheiro representa, a rigor, uma associação estabelecida entre você e o sistema bancário do seu país. Nesta seção você vai ver qual foi a origem dos bancos e por que qualquer forma de reserva de valor – propriedades imobiliárias, ações, títulos, moedas – pode ser transformada pelos bancos em dinheiro novo adicional, e como os bancos emitem dinheiro continuamente.

Você vai ver que se rastrearmos a causa da recente sucessão de crises monetárias (México, Ásia, Europa do Leste, Argentina e Turquia) chegaremos às mudanças sem precedentes que vêm sendo introduzidas nos mercados financeiros internacionais. Os bancos demonstraram, ao longo da história, que são instituições muito frágeis, motivo pelo qual surgiram organizações de intervenção especializadas para emergências, como corpos de bombeiros: os bancos centrais de cada país e, no nível mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco de Compensações Internacionais de Basileia, também conhecido como Banco da Basileia (Bank of International Settlements, ou BIS).
Avaliaremos o papel destas instituições no manejo da instabilidade hoje cada vez maior do sistema monetário mundial, e tornaremos às nossas perguntas iniciais: como tudo isto afeta nosso dinheiro e nosso futuro.

Seu dinheiro
“Quando eu era criança – comentou Oscar Wilde – pensava que o dinheiro era importante; agora que sou velho, sei que é.” talvez você tenha chegado à mesma conclusão. Não importa o que queira fazer com sua vida, inevitavelmente precisará de alguma quantia de dinheiro. Ele é um meio de troca muito conveniente, certamente mais que sua alternativa, o escambo (como ilustra a história da Mademoiselle Zélie no quadro a seguir). Porém, o dinheiro nunca nos pertence de fato, como nos pertencem os olhos e as mãos, o carro ou a casa – quando terminamos de pagá-los–. “Nosso” dinheiro se parece a “nosso” casamento: intrinsecamente, o acordo inclui um cônjuge. O dinheiro moderno é também um acordo entre duas partes. Só é um ativo para você porque ao mesmo tempo é um passivo para alguém. E o sistema bancário moderno vem sendo a contraparte necessária deste “dinheiro-crédito”.

O pagamento da Mademoiselle Zélie40
No século XIX, uma cantora de ópera francesa chamada Mademoiselle Zélie ao fazer uma turnê mundial, deu um recital nas Ilhas da Sociedade (no Taiti). Foi um êxito. E ela recebeu como pagamento um terço do que foi arrecadado. (E, por sinal, há coisas que não mudam: este ainda é o cachê que se paga por uma atuação de Plácido Domingo.)
Porém, a parte que coube à diva foi: 3 porcos, 23 perus, 44 galinhas, 5000 cocos e quantidades respeitáveis de bananas, limões e laranjas. Lamentavelmente, a cantora apenas conseguiu consumir uma pequena parte, e no lugar de destinar tudo isto a uma festa pública – como era costume no lugar – resolveu alimentar com as frutas os porcos e perus. Deste modo, um belo cachê acabou sendo desperdiçado.

Como funciona o sistema bancário?
Conforme dissemos, o primeiro que temos que conhecer é o nosso banco, não porque o dinheiro é guardado nele, mas porque é lá que o dinheiro é criado.

Como nasceram os bancos e o dinheiro moderno?
Na Idade Média, o meio de pagamento de mais alto valor era o ouro. Considerava-se que os ourives eram as pessoas mais qualificadas para checar a pureza das moedas de ouro, e eles tinham caixas fortes capazes de mantê-las a salvo dos ladrões. Assim, por prudência, deixar o ouro guardado com os ourives se tornou um hábito. O ourives cobrava uma modesta taxa pelo serviço e dava um recibo pelas moedas custodiadas. Quando o dono necessitava de uma certa quantia, ele devolvia um recibo e o ourives lhe devolvia as moedas correspondentes. Depois de um tempo, tornou-se mais conveniente e seguro usar os próprios recibos para fazer pagamentos. Se todo mundo sabia que o ourives era um indivíduo confiável, por que correr o risco de transportar o ouro fisicamente? Rapidamente os recibos dos ourives passaram a ser símbolos de uma promessa de pagamento, de modo que cada vez que alguém aceitava um recibo como pagamento, selava implicitamente um acordo de empréstimo com o ourives. Assim, fomos migrando gradualmente do dinheiro baseado em uma mercadoria – neste caso o ouro – para o dinheiro baseado no crédito ou em um empréstimo bancário. Este é o tipo de acordo que persiste até hoje.

Não passou muito tempo até que os ourives mais bem sucedidos notaram que a maior parte das moedas ficava nas caixas fortes quase todo o tempo, sem que ninguém as sacasse. Um ourives esperto para os negócios observou que, já que os depositantes jamais iriam querer recuperar todas as moedas ao mesmo tempo, ele podia emitir mais recibos que o valor das moedas em custódia. Assim, aumentaria sua receita sem ter que aumentar suas reservas de ouro.

Desta forma, o papel moeda e o sistema bancário moderno europeu nasceram simultaneamente, na “bancada”, na mesa de trabalho dos ourives da Itália do século XIII, onde ocorriam essas transações.41 Já estavam apresentes todos os elementos necessários: o papel moeda como passivo de uma contraparte; a importância da boa reputação desta contraparte; e o que hoje chamamos sistema de reservas fracionárias. Este último termo pode intimidar um pouco, mas é apenas o simples processo que autoriza o sistema bancário a criar mais dinheiro que os depósitos em seu poder.

Inovações monetárias no Oriente
Neste Capítulo 2, o foco é o dinheiro e os hábitos financeiros ocidentais, não porque historicamente tenham sido os mais avançados ou importantes, mas porque o sistema mundial que hoje prevalece constitui uma evolução direta destas instituições ocidentais, embora, o ocidente na realidade, seja o lanterninha neste campo. Por exemplo, as primeiras amostras de escrita datam do ano 3200 a.C. e foram recolhidas na cidade sumeriana de Uruk; elas descrevem depósitos “bancários”; transações em “moeda estrangeira”; e empréstimos com e sem garantia, tanto locais como para cidades-estados vizinhas. As primeiras leis oficiais para atividades bancárias pertencem ao Código de Hamurabi (cerca de 1750 a.C.). O banco privado mais antigo cujo nome foi conservado foi o chamado “Os Netos de Egibi”, criado na Babilônia no século VII a.C. Diz-se que estes bancos babilônicos, “por sua minuciosa organização, número de empregados e de filiais, registros e contas diárias do capital mantido neles, bem podem ser comparados com os maiores bancos dos séculos XIX e XX”.42 O primeiro papel moeda de estilo “moderno” foi emitido na China no reinado de Hien Tsung (806-821) como substituto temporário das tradicionais moedas de bronze.43 No ano 900 o uso do papel moeda já estava disseminado, e em 1020 esse país teve a questionável honra de ter padecido a primeira hiperinflação em papel moeda, devido ao excesso de emissão, cujo valor nominal total era de 2.830.000 onças de prata. “Inclusive,
para tornar o dinheiro mais atrativo, se misturou seda e perfume ao papel, mas não adiantou: a inflação e a depreciação continuaram, atingindo um grau similar ao observado na Alemanha e na Rússia depois da Primeira Guerra Mundial.”44

A primeira vez que o ocidente ouviu falar – com total incredulidade – da existência do papel moeda foi graças a Marco Polo, que esteve na China entre 1275 e 1292. “Nesta cidade de Cambaluc se encontra a máquina de imprimir dinheiro do Grande Khan, de quem bem se pode dizer que possui o segredo dos alquimistas, já que tem a arte de produzir dinheiro. […] Os exércitos do soberano são pagos com esta moeda, que para eles é o mesmo que o ouro ou a prata. Sendo assim, pode-se afirmar que o Grande Khan possui um tesouro mais vasto que o de qualquer outro monarca no universo.”45 O papel moeda de Kublai Khan se converteu, assim, em uma das primeiras moedas internacionais, já que era aceito desde a China continental até o Báltico, uns 500 anos antes de que este costume fosse difundido na Europa.

O segredo do dinheiro moderno
O segredo da criação de dinheiro está em persuadir as pessoas a aceitarem a promessa de um pagamento futuro (uma promissória) como pagamento. Quem dominar este truque pode extrair um fluxo de renda desse processo (por exemplo os honorários cobrados pelos ourives na Idade Média, ou, hoje, os juros sobre o empréstimo que cria um dinheiro). Esta renda é chamada “senhoriagem”, palavra que deriva do direito do senhor feudal a impor aos seus vassalos o uso da sua moeda.

À medida que os Estados nacionais foram se tornando os detentores do poder, os governantes e os bancos fizeram um acordo, os bancos passaram a ter o direito de criar a moeda de curso legal46 e em troca eles se comprometeram a proporcionar sempre todos os fundos que o governo necessite. O acordo mais antigo deste tipo ainda em vigor remonta a 1668, é a licença outorgada ao Riksens Ständers Bank (que em 1867 passou a se chamar Riksbank, nome que o banco central da Suécia conserva até hoje). O modelo foi copiado na Grã-Bretanha, uma geração mais tarde, com a fundação do Bank of England (1688),47 e se difundiu para todo o planeta. O banco central da Inglaterra, ou, como é chamado popularmente, “a velha dama da rua Threadneedle”, “é para o dinheiro, em todos os sentidos, o que São Pedro é para a fé cristã. E sua fama é merecida, já que grande parte da arte e do mistério associados ao manejo do dinheiro começaram lá”.48

Nos Estados Unidos, este mesmo tipo de acordo – emissão de dinheiro via empréstimos bancários em troca da garantia de que os governos sempre receberão os fundos que necessitem – foi parte da Lei da Reserva Federal de 1913. Por isso, o Banco da Reserva Federal aceita qualquer título público que as pessoas não comprem, e emite em troca um cheque no valor correspondente. Este cheque cobre os gastos do governo, e quem o receber o deposita, por sua vez, nas suas contas bancárias.

Aqui é onde entram em ação as mágicas reservas fracionárias. Para cada depósito que receber, o banco tem o direito de criar dinheiro novo, concretamente, na forma de um empréstimo a um cliente, no valor de até 90% da quantia depositada.49 Esse novo empréstimo – por exemplo, a hipoteca para compra de uma moradia – possibilita ao vendedor do imóvel que recebeu o pagamento, realizar em seguida outro depósito em algum lugar do sistema bancário. E o banco que receber esse deposito, pode, por sua vez, conceder outro empréstimo de 90% do valor depositado, e assim continua a sucessão de depósitos e empréstimos em todo o sistema. A partir de um cheque de US$ 100 milhões emitido pela Reserva Federal (o chamado dinheiro de alta potência) é permitido aos bancos, por meio da circulação no sistema bancário, criar até US$ 900 milhões de dinheiro novo sob a forma de empréstimos (veja o quadro a seguir). Quem entender esta “alquimia do dinheiro” terá compreendido o segredo mais arcano do nosso sistema monetário.

Alquimia monetária
A alquimia monetária moderna (chamada tecnicamente de “sistema multiplicador de reservas fracionárias”) parte da injeção no sistema bancário de dinheiro “de alta potência”. Por exemplo, a Reserva Federal adquire 100 milhões em títulos públicos. Em um dado momento, esses fundos são depositados por quem os recebeu em algum banco. Isto permite que os bancos que receberem esse valor concedam empréstimos totalizando 90 milhões (deixando 10 milhões como “reservas esterilizadas”, ou “encaixe”). Com o tempo, esse valor emprestado desembocará em depósitos em bancos, permitindo que sejam concedidos novos empréstimos somando outros 81 milhões, e assim sucessivamente.

[no quadro abaixo]

100 milhões

(dinheiro de alta potência)
Empréstimos (milhões) todas os valores foram arredondados Depósitos (milhões)
100
90
90
81
81
72
etc. etc.
Total 900 milhões 1 bilhão

É assim que um valor que começou sendo 100 milhões em dinheiro de alta potência da Reserva Federal pode criar outros 900 milhões em “moeda de crédito”, à medida que entra e sai do sistema bancário.
Este é o sinuoso mecanismo pelo qual o acordo entre os Estados e o sistema bancário é colocado em prática, e é por esse motivo que, em última instância, seu dinheiro envolve todo o sistema bancário do seu país. Por isto, dinheiro e dívida são, literalmente, as duas faces de uma mesma moeda. Se todos pagássemos todas as nossas dívidas, o dinheiro desapareceria do planeta, pois todo o processo de criação de moeda ilustrado na alquimia do dinheiro se inverteria. A quitação de todos os empréstimos (lado esquerdo da ilustração acima) exigiria automaticamente usar todos os depósitos (lado direito). Se o Estado estivesse em condições de saldar todas as suas dívidas bancárias, até o dinheiro de alta potência emitido pela Reserva Federal ou por um banco central se desintegraria.

Sistema bancário antigo e sistema bancário novo
Na sua obra clássica, The Bankers (1974),50 Martin Mayer relata o seguinte fato verídico. Um indivíduo estava sendo homenageado por 50 anos de leais serviços a um banco do estado de Virgínia. Durante a festa lhe perguntaram qual havia sido, no seu entender, “a mudança mais importante que ele viu nos bancos neste meio século de trabalho”. Ele pensou um pouco e logo se aproximou do microfone e disse: “O ar condicionado”. Em 1997, Mayer publicou outro livro, continuação do anterior: The Bankers: The New Generation, no qual afirma: “Vinte anos depois, este episódio se tornou pré-histórico. Ele ainda nos causa graça, mas nos resulta incompreensível. Nestes 20 anos, os bancos mudaram tanto, que já não podemos reconhecê-los. […] Quase nenhum bancário hoje, faz o que seus precursores faziam apenas 20 anos atrás”.51

É verdade: o sistema bancário mudou mais nas últimas duas décadas que em centenas de anos. A lei dos conglomerados financeiros dos Estados Unidos, a chamada Bank Holding Company Act, de 1956
continua definindo banco como instituição “que reúne os saldos das transações de uma comunidade para emprestá-los por um certo juro a seus clientes comerciais”, definição perfeitamente compatível com a de Adam Smith há dois séculos. É também, em essência, o mesmo negócio iniciado pelos babilônios e pelos ourives italianos em suas “bancadas”: eles reuniam igualmente as poupanças locais e as emprestavam a empresas cobrando uma taxa.

Hoje restam poucos bancos desse tipo. Dos que sobreviveram, a maioria se dedica a negócios distintos. Em 1996, quase 85% dos recursos do setor bancário provinham de fontes diferentes de depósitos assegurados. A alma dos grandes bancos já não é emprestar para empresas, mas conceder crédito através de cartões para consumidores. (O Citicorp obtém assim mais de US$2 bilhões anualmente, mais da metade do seu lucro). Resumindo: os bancos tomam seu dinheiro de onde podem e o usam para qualquer atividade permitida por lei que lhes seja rentável. Abandonaram a atividade bancária tradicional e entraram no negócio dos “serviços financeiros”. A razão mais profunda desta mudança sem precedentes são os efeitos da Era da Informação, que transformou radicalmente os fatores relevantes para os mercados de crédito.

Mercados do crédito
Mayer indica que nos “velhos tempos” de duas décadas atrás, “os bancos se consideravam assessores dos seus clientes”. A rigor, a única coisa que faziam era aproveitar o monopólio que tinham sobre as informações relativas ao mercado financeiro. Quando, de repente, os computadores possibilitaram a qualquer pessoa acesso direto às cotações desse mercado, o chão deles tremeu. Muitas empresas usaram este acesso para emitir seus próprios títulos (por exemplo, títulos de dívida ou obrigações negociáveis), fazendo operações antes realizadas por bancos. É o caso da a General Motors Finance Corporation (GMFC) que emite commercial papers próprios (por exemplo seus títulos de dívida), isto é: ela toma empréstimos de curto prazo sob a forma de bonds captando recursos diretamente no mercado de capitais e posteriormente os empresta aos compradores dos automóveis da General Motors. O maior emprestador dos Estados Unidos hoje não é um banco, mas a General Electric Capital, que se autofinancia totalmente sem tomar um centavo em empréstimos bancários.

Os bancos tradicionais não souberam o que fazer diante desta mudança colossal. Desde 1980, mais de um terço dos bancos dos Estados Unidos ouse fundiram ou desapareceram na tormenta que veio em seguida, e os que restaram precisaram mudar muito seu quadro de funcionários. O horário de atendimento bancário caiu no esquecimento. Foi substituído pela proliferação dos caixas automáticos que eliminou, em pouco mais de uma década (1983-1993), cerca de 179.000 postos de trabalho de caixas humanos (37% dos bancários dos Estados Unidos). Segundo a Andersen Consulting Company, este processo de adaptação continua em curso: Nos próximos sete anos, a tecnologia eliminará outros 30% a 40% dos postos de trabalho de bancos comerciais e caixas econômicas. Em um estudo realizado em 1996, a Deloitte & Touche foi ainda mais drástica: estima que em 5 anos outros 50% dos atuais bancários terão ficado para a história. Mas isto nem sequer considera o impacto da segunda onda de informatização (a revolução da Internet), que acaba de começar; nem a criação da cybereconomia, nem o novo mundo das finanças abertas, ou Open Finance, que veremos no capítulo 4.

Cartões de crédito
Os cartões de crédito surgiram nos Estados Unidos como procedimento conveniente para pagamento de combustíveis, trocas de óleo e consertos de automóveis. Eram emitidos pelas empresas de petróleo, tendo como objetivo a fidelidade à marca, exatamente como as companhias aéreas dão passagens a seus clientes habituais.52 Em 1949, o Diners Club criou o primeiro cartão de pagamento moderno, no verso eram enumerados orgulhosamente os 27 restaurantes, “os melhores do país”, que aceitavam o cartão. Como no sonho de Bellamy (veja o quadro a seguir), ele era de papelão e só em 1955, os cartões Diners passaram a ser de plástico.53 Em 1958, o Bank of America e a American Express Company, já estabelecida como “a companhia dos cheques de viagem”, lançaram seus cartões de crédito, também de plástico. Após uma grande reorganização da empresa, em 1971, a BankAmericard foi rebatizada como VISA, e 20 anos mais tarde, ela abrange 20.000 instituições financeiras em todo o mundo, tem 400 milhões de usuários de cartões e um impressionante faturamento anual de US$ 1,2 trilhão. E ela é só uma, embora a maior, das milhares de empresas de cartões de crédito que proliferaram em todos os países. Mas o mais significativo é que, isto deu origem a uma nova forma de emprestar dinheiro.

Dinheiro mágico
No dia 30 de abril de 1887 um sujeito adormeceu e acordou em 30 de setembro de 2000. Uma das coisas que mais o surpreendeu ao despertar foi que seus compatriotas nos Estados Unidos, continuavam contando dinheiro em dólares e cents, mas pagavam tudo em grandes armazéns com cartões de crédito de papelão. Esta é a trama inicial de um romance publicado em 1888 por Edward Bellamy, cujo título era Looking Backward: 2000-1887 [Olhando para trás: de 2000 a 1887].
Os romancistas têm cada ideia maluca…

Os juros dos empréstimos dos cartões de crédito têm taxas muito mais altas (frequentemente o dobro ou o triplo) das aplicadas pelos bancos nos empréstimos usuais a empresas ou pessoas físicas. Esta característica tornou os cartões de crédito irresistíveis para seus emissores. Entre 1993 e 1997, as solicitações de cartões se multiplicaram, e passaram de 453 milhões a 881 milhões por trimestre, isto significa 9 solicitações para cada domicílio dos Estados Unidos a cada treze semanas. Em meados de 1996, as dívidas de cartões de crédito em aberto já haviam ultrapassado os US$ 350 bilhões nos Estados Unidos. O pagamento dos juros das dívidas contraídas representa hoje 18% da renda pessoal, proporção que ultrapassa, inclusive, à atingida em épocas de recessão.54

Porém, a facilidade com que se obtém um cartão de crédito fez com que fossem afrouxadas, como era previsível, as normas de solvência creditícia, isto é, a possibilidade de constatar que o titular do cartão terá o fluxo de receitas necessário para fazer frente ao serviço da dívida e a essas taxas de juros tão altas. Lawrence Ausubel, professor de Economia da Universidade de Maryland, comprovou que há um paralelismo exato entre o aumento das solicitações de cartões de crédito e o aumento das falências pessoais. Nos Estados Unidos, em 1997, houve 1,3 milhão de falências pessoais vinculadas a cartões de crédito, 40% mais que em 1995. E isto ocorreu em uma época de apogeu econômico! O Congresso dos Estados Unidos sancionou leis no verão de 1998 visando tornar mais onerosa para os indivíduos a declaração de falência, mas não limitaram as condições para emissão de cartões por parte dos bancos. De qualquer forma, os níveis sem precedentes de falências dos consumidores nos Estados Unidos indicam que os cartões de crédito não são o caminho para o crescimento futuro do sistema bancário.

A internacionalização dos cartões de crédito pode ainda proporcionar uma margem de crescimento aos bancos. Por exemplo, o incremento mais notável do seu uso se deu na China, onde até as empresas estatais pagam suas contas com MasterCard via satélite por meio de supercomputadores situados em Xangai e Cingapura, de maneira que Pequim pode controlar os gastos de todas as empresas do Estado em tempo real.

Foi assim que em menos de uma geração, os bancos abandonaram sua prática secular de conceder crédito às empresas, substituindo-a pelos cartões de crédito para consumo.

Sua poupança: reserva de valor
Uma vez conseguido seu dinheiro que custa tanto de ganhar, como preservá-lo para os tempos de vacas magras? Isto é importante não só para você pessoalmente. Qualquer que seja a forma de entesourar valor, ele se converte em uma garantia possível para gerar dinheiro adicional através de dívida bancária, como vimos na seção sobre como funciona o sistema bancário.

Ao contrário do que as pessoas supõem, o dinheiro em si mesmo não constitui uma boa maneira de entesourar valor. No melhor dos casos, só é “a residência temporária do poder aquisitivo”,55 um modo de conservar o valor no curto prazo, entre o instante em que se recebe e o instante em que se gasta. Se você guarda debaixo do colchão ou o deposita em um banco, em ambos os casos, o cálculo da inflação abaixo pode ser útil.

Cálculo da inflação
A melhor forma de saber o que ocorre com o valor do dinheiro é ver o que se pode comprar diariamente com ele. Nos últimos anos, a maioria das moedas importantes do mundo conservou em grande medida seu valor, a tal ponto que há quem afirme que morreu para sempre a depreciação da moeda (“inflação” no jargão econômico). Porém, antes de aderir a essa conclusão, vale a pena rever a questão em um período mais amplo, digamos de 25 anos.

Vejamos o que ocorreu em duas décadas e meia com o marco alemão, a moeda mais estável do planeta desde o final da Segunda Guerra. A tabela seguinte mostra que o poder aquisitivo de 100 marcos alemães de 1971, se reduziu ao final de 1996 a 42,28 marcos.56 Dito de outro modo, mesmo a moeda mais forte do mundo perdeu, nesse lapso, mais da metade de seu valor.

Se você vive em um
desses países
O valor da sua moeda em 1996 era (1971 = 100)…
Ranking entre as 108 moedas mais importantes do mundo

Alemanha (marco alemão) 42,28 1
Suíça (franco suíço) 39,79 3
Japão (iene) 33,24 11
Estados Unidos (dólar dos Estados Unidos) 24,72 17
Canadá (dólar canadense) 22,26 23
França (franco francês) 19,48 31
Austrália (dólar australiano) 15,11 46
Grã Bretanha (libra esterlina) 12,57 55
Itália (lira) 8,65 68
Espanha (peseta) 7,77 69
México (peso mexicano) 0,066 101
Brasil (cruzeiro-cruzado-real) 0,000 108
Tabela 2.1 qual é o valor do seu dinheiro?

Analogamente, com 100 Francos Suíços em 1996, só se comprava o mesmo que com SF39,79 duas décadas antes. O poder aquisitivo de 100 dólares equivalia a US$24,72; o de 100 libras esterlinas, £12,57, e assim sucessivamente.

Na prática, isto significa que se em 1971 adquirimos uma moradia em US$247.200 e duas décadas e meia mais tarde seu valor é de US$ 1 milhão, não se valorizou nem um centavo: o preço não fez mais que acompanhar a inflação. E às vezes ela pode ter consequências devastadoras para a sociedade (veja o quadro abaixo).

Moedas em dificuldades derrubam impérios
O dinheiro pode desandar de muitas maneiras, e a pior delas é a hiperinflação, que é quando a moeda na prática perde seu valor. Toda vez que um império, devido aos gastos ou visando manter seu prestígio, emitiu dinheiro demais, provocando, com isto, hiperinflação, a consequência foi a alteração da ordem social e até o colapso do próprio império.

A Suméria, a mais antiga cidade-império da qual se tem documentos, foi derrubada em 2020 a.C., com a hiperinflação decorrente das contínuas guerras com países vizinhos. E após a morte de Alexandre o Grande, os enormes tesouros saqueados dos persas e levados à Grécia produziram uma hiperinflação que fez ruir o até então poderoso império grego. O mesmo aconteceu dois mil anos depois, com o Império Espanhol quando a prata e ouro do Novo Mundo foram levados à Península.
A hiperinflação segue sendo uma praga em muitos países. Entre os exemplos mais significativos do século XX cabe citar o da Alemanha na década de 1920, o da América Latina nas décadas de 1970 e 1980, da Iugoslávia entre 1989 e 1991, e da Rússia em 1991-92 e novamente em 1998. Em todos estes casos, invariavelmente, a hiperinflação gerou transtornos políticos e sociais graves.

Portanto, uma administração sadia das poupanças leva a colocar o dinheiro em efetivo em um dos três principais e clássicos tipos de ativos: imóveis, títulos ou ações. Uma nova classe importante de investimentos, que é de grande interesse para nós apareceu na última década: as moedas estrangeiras. A fim de colocar este processo em perspectiva, direi umas poucas palavras sobre o papel mutante que cada tipo de ativo vem desempenhando no decorrer do tempo.

[aos revisores: neste ponto a edição argentina inclui parágrafos que não estavam no original em inglês e a ordem das notas não corresponde ao original inglês]

O mercado mundial de divisas, tal como se desenvolve atualmente, é o maior mercado financeiro de toda a história. Os volumes de divisas transacionadas atingem o equivalente a US$ 1,9 trilhão em um dia útil típico. A taxas de câmbio constantes, isto representa um aumento de 50% com relação ao volume apurado três anos atrás. Estes volumes diários são muitas vezes superiores à soma de todos os volumes comerciados em todos os mercados de títulos e mercadorias do planeta juntos. O Banco de Compensações Internacionais de Basileia (BIS) realiza uma pesquisa sobre os mercados de divisas uma vez a cada três anos, para isto, escolhe um dia útil comum do mês de abril (veja a figura 2.2).

No início da década de 1970, antes de o acordo de Bretton Woods ter sido abandonado, as transações em divisas eram efetuadas principalmente visando facilitar o comércio internacional da economia “real” (ou seja, as transações vinculadas à compra e venda de bens e serviços, incluindo investimentos em carteira) no exterior. Hoje, mais de 95% do total das transações em divisas têm fins especulativos e menos de 5% têm relação com o comércio internacional.

O gráfico abaixo ilustra esta inversão total da importância relativa das transações “reais” e especulativas. [aos revisores: na edição argentina havia um número de nota neste ponto, na tradução ele foi removido porque havia dois números remetendo ao mesmo comentário (notas 64 e 70 da edição argentina (= footnote 60 do inglês.) No original, o gráfico aparece só várias páginas depois.] A queda que se observa entre 1998 e 2001 se deveu principalmente à introdução do euro, que suprimiu os intercâmbios entre uma dúzia de moedas nacionais da Europa.

[eixo vertical] Em bilhões de US$

[eixo horizontal] Anos
[legenda] Especulativas
Reais
Figura 2.2 Total das transações de câmbio, segundo relatórios do BIS, em comparação com as transações em divisas relativas às transações da “economia real”57

Além das transações “tradicionais” representadas na figura 2.2, o BIS computou em abril de 2004 um volume diário de US$ 2,4 trilhões transacionados em derivativos, em divisas e em produtos relacionados com taxas de juros, incluindo operações totais a termo e swaps, ou câmbio. Esta quantia implica um aumento de 74% (de 51% a taxas de câmbio constantes) sobre a registrada três anos antes (abril de 2001). No período de três anos encerrado ao final de junho de 2004, os valores brutos de mercado mais que dobraram: passaram de US$3 trilhões a US$ 6,4 trilhões.58

O mercado de divisas não atingiu uma magnitude sem precedentes, ele se tornou, também, o mais sofisticado. Nunca houve um mercado como este, plenamente integrado e instantâneo, de alcance mundial, operando 24 horas por dia, interconectado por redes de computação sumamente seguras. Algumas das mesas de câmbio operam com supercomputadores baseados nos modelos neuronet da ciência espacial, que supervisionam ininterruptamente as principais taxas de câmbio do mundo e realizam operações automáticas online.

Se três séculos de história de colapsos financeiros podem nos servir de guia, o fato de este mercado ser o mais desenvolvido, tanto em volume de operações como em sofisticação, não constitui garantia alguma contra o pânico. Uma crise do dólar que se abatesse sobre esse mercado poderia tomar a forma de um tsunami financeiro que reduziria à insignificância tudo o que já foi experimentado ao longo da história.

[aos revisores: até aqui os parágrafos diferem do original inglês ]

Imóveis
Desde os princípios da Revolução Agrária até o final do século XIX, a propriedade imobiliária, em particular a terra, foi a forma de poupança prevalecente no mundo. A riqueza de um indivíduo se avaliava em geral pela qualidade, quantidade e tamanho das propriedades que havia acumulado. Tudo isto mudou na Era Industrial, o veículo predileto de investimento passou a ser ações e títulos de empresas comerciais. Atualmente, a maioria das pessoas tem como único imóvel sua própria moradia, e inclusive, frequentemente ela está hipotecada.

Ações
Uma ação é uma fração da propriedade de uma empresa. Ao invés do que se pensa, é um instrumento de investimento muito antigo (veja o quadro a seguir).

Qual ação é nova sob o Sol
As primeiras ofertas públicas de ações se perdem no túnel do tempo, remontando às viagens marítimas e antigas caravanas de expedicionários. As ações já eram conhecidas pelos fenícios na antiguidade, e se tornaram comerciáveis para a população em geral em Gênova e Veneza durante o século XIII. “Homens e mulheres de todas as camadas de renda possuíam ações. […] Eram consideradas valores particularmente bons para uma das formas favoritas de investimento, os empréstimos marítimos […], que só eram reembolsados se a embarcação completasse sua travessia sã e salva.”59
A mais antiga das bolsas de valores públicas ainda em funcionamento, que se dedica a todo tipo de ações emitidas por empresas, é a de Amsterdã, que data do século XVII.

Mais recentemente, se tornou norma, mesmo no caso de pequenos poupadores, investir o grosso dos ativos líquidos em ações negociadas em bolsa. É interessante destacar que a partir do século XX, excetuando o período atual, só na década de 1920 isto foi assim. Mas nos últimos anos, os mercados de valores do planeta se interconectaram muito mais intimamente. Antes existia a teoria de que diversificando-se geograficamente as ações, era possível reduzir os riscos do investimento, mas a teoria foi por água abaixo com o pânico da bolsa de 1987, que afetou todos os países e demonstrou que hoje é muito mais difícil diminuir riscos por meio da diversificação. Mesmo quando uma pessoa só investe em ações do seu próprio país, a mensagem é: pense e aja com o olhar voltado para o mundo todo, já que atualmente nada está livre de ser afetado pelos acontecimentos mundiais.

Bonds
Um bond é um empréstimo concedido à organização que o emite. Representa a promessa de pagar o dinheiro emprestado quando chegar o vencimento. Ao comprar um bond, o que se faz é trocar o dinheiro em caixa por essa promessa, e a única justificativa para isto é a cobrança periódica de juros. Esta prática de cobrar juros, chamada usura, foi vista com maus olhos pelas três religiões mais importantes (judaísmo, cristianismo e islamismo) desde a sua fundação. Todas elas se atinham ao que diziam as escrituras do seu credo, ditadas por Deus. Delas, a única que se manteve fiel até hoje à tradição de rechaçar a usura é o Islã. Enrique VIII, após romper com Roma, legalizou a cobrança de juros na Grã Bretanha em 1545, mas até os séculos XVIII e XIX esta opção de investimento não havia conseguido tomar o lugar dos imóveis. Mesmo nos países protestantes. A Igreja Católica “se esqueceu” do pecado da usura no final do século XIX, e a partir de então até as carteiras de investimento eclesiásticas incluem títulos ou alguma outra forma de empréstimos que rendem juros.

Em bonds confiamos*
Os bonds pressupõem a confiança da população no valor futuro no longo prazo da moeda em que são denominados. Portanto, a extensão do prazo de vencimento do título dá alguma ideia sobre o grau de confiança que as pessoas têm no futuro da sua moeda. Os “campeões” dessa confiança prolongada são os chamados “títulos para construir diques” holandeses, que não têm data de vencimento, e que vêm pagando juros pontualmente desde o século XVI. Em 1903, o governo britânico pôde se dar ao luxo de emitir títulos de 300 anos com 2,5% de juro anual. Compare esta medida com os chamados títulos “longos” atuais, com prazos de no máximo 30 anos, com juro de 5%.

Moedas
Ao longo da história, as moedas estrangeiras sempre foram um tipo importante de ativo para especialistas como os cambistas ou os bancos internacionais.E qualquer carteira de investimentos moderna contém também um componente de câmbio (por exemplo: qualquer título ou ação japonesa implica, automaticamente, uma certa posição financeira em ienes). Uma consequência lógica disto é poupar em moedas estrangeiras devido ao seu valor intrínseco. Elas se tornaram um elemento significativo na maioria das carteiras dos investidores profissionais.

Porém, na última década aconteceu algo extraordinário: o mercado de câmbio se transformou no mercado mais atuante do planeta. As transações (compra e venda de moedas nacionais) fazem parecer migalhas os volumes transacionados de todas os outros tipos de ativos, inclusive os da economia mundial no seu conjunto. Em decorrência disto, os mercados de moedas adquiriram uma importância vital para quase qualquer pessoa, pela primeira vez em toda a história documentada, embora provavelmente a maioria das pessoas nem sequer perceba isto.


Mercados de divisas
Quem já viajou a algum país estrangeiro conheceu o mercado de câmbio. Mesmo que apenas uma vez, terá ido a um banco ou casa de câmbio e trocado notas do seu país por outras mais exóticas, do lugar que foi visitar. Este tipo de intercâmbio de dinheiro remonta ao início da existência do próprio dinheiro. Sendo assim, que pode haver de novo nos mercados de divisas? Na verdade, muita coisa.

O primeiro indicador das mudanças é o próprio volume das transações de divisas. Na época pré-histórica da década de 1970, o volume diário de transações de divisas em todo o mundo flutuava normalmente entre US$10 bilhões e US$20 bilhões; até 1983, este total havia se elevado a 60 bilhões. Em 2004 foi 1,9 trilhão a cada dia útil…

Meros mortais como nós perdemos todo o senso de proporção diante de tais quantias (veja o quadro a seguir). Coloquemos estes valores em perspectiva. Tal volume equivale a mais de 150 vezes o total do comércio internacional diário de produtos básicos, bens manufaturados e serviços em todo o mundo. É aproximadamente 100 vezes mais que as transações diárias em ações em todas as bolsas do planeta. É, inclusive, 50 vezes superior à totalidade dos bens e serviços (PIB) produzidos diariamenteem todos os países industrializados60. Além do mais, o volume das transações de divisas segue aumentando ao ritmo arrepiante de 20%-25% ao ano, em comparação com os 5% de aumento anuais, em média, do comércio internacional. É razoável concluir que está acontecendo algo muito fora do comum, nos mercados de divisas mundiais, algo nunca visto.

Pergunta relâmpago
Suponhamos que alguém tenha na garagem da sua casa uma máquina
de imprimir notas de dólar capaz de produzir um dólar por segundo.
Quando seria preciso colocá-la em funcionamento para fabricar os
US$2 trilhões que são transacionados em um dia qualquer no mercado
de câmbio? Durante a Primeira Guerra Mundial, na independência dos
Estados Unidos, no nascimento de Jesus Cristo, na Era Neolítica ou na
do homem cro-magnon?
Resposta na nota 61, ao final do livro.

Cassino global
O que ocorreu é que as transações especulativas (as que visam gerar lucro com a variação do valor das próprias moedas unicamente) tomaram conta praticamente dos mercados de divisas. Já as da economia “real”, (as vinculadas à compra e venda de bens e serviços reais e os investimentos em carteira) no exterior, ficaram relegadas a ser um show secundário no cassino mundial das divisas.

A figura 2.2 (página 73) ilustra esta inversão total da importância relativa das transações reais e especulativas. Neste momento, 98% do total das transações de divisas são especulativas e só 2% se relacionam com a economia real.62

Uma aplicação especulativa pode desempenhar um papel positivo em qualquer mercado: tanto a teoria como a prática indicam que ela pode melhorar a eficácia de um mercado, aumentando a liquidez e o volume das operações63. Porém, os atuais níveis de especulação saíram evidentemente do controle. “Os especuladores podem não causar dano se forem meras bolhas em uma sólida economia empresarial; a situação se torna grave quando as empresas são uma mera bolha em meio a um redemoinho de especulação. Quando o desenvolvimento do capital de um país se torna o subproduto das atividades de um cassino, é provável que não dê certo.”64 A opinião de John Maynard Keynes a este respeito, embora formulada há mais de 50 anos, nunca foi tão oportuna como hoje. Além disto, o câmbio se converteu atualmente no instrumento ideal para a especulação (veja o quadro a seguir).

As moedas como ferramenta ideal para a especulação
Como instrumento de especulação, os atuais mercados de divisas oferecem certas vantagens em comparação aos outros tipos de ativos:

° Há liquidez no mercado 24 horas por dia, ou seja, de todos os ativos, este é o que tem mais liquidez (mais que os títulos ou as ações, limitados aos horários de funcionamento dos mercados locais, e mais que os imóveis).
° Os custos de transação são muito baixos. Comprar ou vender moeda estrangeira em grande quantidade é muito mais econômico que comprar ou vender ações, títulos ou imóveis. O único custo consiste na pequena margem ou spread (diferença entre a compra e a venda) que fica como ganho para o banco.
° Quando gestores profissionais de investimentos querem alocar uma grande quantidade de dinheiro em ações, sabem que sua compra elevará a cotação; e se têm que vender ações, sabem que sua venda moverá o mercado contra eles e reduzirá sua cotação. Esse problema não existe no mercado cambial. Por ser o mercado com o maior volume de operações, sequer um investimento de bilhões de dólares o afeta o mínimo que seja.

A maior parte deste volume especulativo vem das mesas de câmbio dos próprios bancos. Porém, é previsível que no caso de uma crise mundial, a reação pública culpe os fundos de hedges – fundos mútuos especializados em especulação com divisas – porque eles são “os novos no pedaço”, os últimos a serem incorporados ao sistema financeiro. Em todas as crises financeiras – desde a Crise das Tulipas de 1637 na Holanda até o crash da bolsa de 1987 nos Estados Unidos – invariavelmente a culpa recai sobre a inovação mais recente.65

A figura 2.3 sintetiza o panorama dos fluxos monetários que desencadearam três crises entre 1983 e 1998. Pode-se considerar que uma crise monetária é o resultado da retirada súbita de dinheiro mundial de um país, revertendo drasticamente seus fluxos monetários.

Repare que a magnitude do vaivém entre as marés e as vazantes monetárias continua aumentando, refletindo a elevação das correntes especulativas mostradas na figura 2.2. Em 1983, o vaivém de cerca de US$30 bilhões entre o último fluxo e refluxo impactou treze países. O México sofreu sozinho um vaivém semelhante em 1995. Menos de três anos depois, em 1996 e 1997, a crise asiática registrou um vaivém de bem mais de US$100 bilhões. Todos estes vaivéns foram consequência de uma massiva atividade especulativa.
Marés cheias e vazantes do dinheiro global (em bilhões de US$)
Saída Entrada
crise de 1983
13 países em vias de desenvolvimento**
Saída Entrada
crise de 1995
México
13 países em vias de desenvolvimento**

Saída Entrada
crises de 1997-98
Ásia    

Figura 2.3 Marés cheias e vazantes de dinheiro e as crises monetárias resultantes (1983-1998 – em bilhões de US$)66
** Os 13 países “em vias de desenvolvimento” são: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Costa do Marfim, Nigéria, México, Marrocos, Paraguai, Peru e Venezuela.

Por que se especula com divisas?
Este aumento extraordinário da atividade especulativa pode ser explicado por três mudanças havidas nas últimas décadas que tiveram efeitos cumulativos:

  1. Uma mudança estrutural. No dia 15 de agosto de 1971, o presidente dos Estados Unidos Richard Nixon desatrelou o preço do dólar do preço do ouro, inaugurando assim uma era na qual o valor das moedas está determinado predominantemente pelas forças do mercado. Isto desencadeou uma mudança sistêmica, já que os valores podem flutuar muito a qualquer momento. Foi o começo das taxas de câmbio flutuantes e de um mercado que se tornou sumamente lucrativo para quem aprendeu a se movimentar nele.
  2. A desregulamentação financeira da década de 80. Os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos EUA embarcaram simultaneamente em um programa intensivo de desregulamentação das finanças. O Plano Baker (assim chamado devido ao então secretário do Tesouro dos Estados Unidos) impôs a dezesseis importantes países em vias de desenvolvimento, uma desregulamentação similar, devido à crise da dívida que eles estavam enfrentando. Estas desregulamentações permitiram que muitos novos tipos de instituições e pessoas entrassem no comércio de divisas.
  3. A mudança tecnológica. Paralelamente, o mercado de câmbio se informatizou, fato que gerou, pela primeira vez na história, um mercado mundial totalmente integrado e operando 24 horas por dia. Isto proporcionou uma velocidade e uma magnitude totalmente novas aos movimentos do câmbio em todo o mundo.

Em sua pesquisa sobre os 5000 anos da história da moeda, Glyn Davies sustenta que o dinheiro eletrônico foi uma das duas únicas inovações tecnológicas de importância excepcional nesta matéria: “Houve duas mudanças fundamentais, a primeira ao final da Idade Média, quando a impressão de notas começou a complementar a cunhagem de moedas, e a segunda em nossa época, quando foram inventadas as transferências por meio de dinheiro eletrônico”.67 Olhando retrospectivamente, sabemos hoje que a primeira dessas mudanças permitiu aos bancos tirar dos soberanos reguladores o protagonismo na criação de dinheiro, mas… Quais serão as consequências da segunda?

Ela detonou uma luta de titãs pelo controle das novas formas de dinheiro. Atualmente, os bancos operam fundamentalmente como empresas de telecomunicação computadorizadas, mas as companhias de telecomunicações, de computação, de processamento de cartões de crédito, de vendas via Internet e mesmo de TV a cabo descobriram que têm condições de prestar os mesmos serviços que os bancos. Quem tiver o controle dos novos sistemas eletrônicos de dinheiro vai ter o poder de emitir moeda. Como disse o banqueiro Sholom Rosen: “Definitivamente, isto é algo novo, é revolucionário… deveríamos estar apavorados”.68 Se a velocidade e a magnitude das mudanças da moeda assustam os banqueiros bem informados, e o resto de nós, o que devemos fazer?

Derivativos
Os computadores, além de revolucionar o sistema bancário e de acelerar as transações com moedas, eles possibilitaram, também, a explosão de toda uma onda de novos produtos, os derivativos financeiros.69 Com eles, o risco financeiro foi fracionado em partes que podem ser comercializadas separadamente. Charles Sanford, ex-presidente do Bankers Trust e um dos pioneiros neste tipo de negócio, afirmou que os derivativos estavam originando uma “nova teoria das finanças baseada nas partículas”.

Por exemplo, um título em ienes japoneses pode ser dividido em, no mínimo, três tipos de risco: um risco cambial (o risco de que o valor do iene diminua em relação à moeda do país do investidor), um risco da taxa de juro (risco de as taxas de juros no Japão se elevarem depois de o título ter sido negociado) e um risco do emissor (o risco de que a companhia emissora do título não honre seus compromissos). Os derivativos permitem ao investidor escolher qual exatamente destes componentes ele quer incluir ou excluir das suas carteiras.

Imaginemos que em vez de comprar uma entrada para assistir a um concerto, você pudesse separar e combinar sua soprano favorita, seu tenor favorito, seu violinista e seu maestro preferidos, etc., para interpretarem suas obras prediletas. Se essa pessoa sabe bem o que quer, o resultado desta nova liberdade pode ser extraordinário, superior ao de uma atuação normal “pré-fabricada”; mas se seu conhecimento é limitado, essa criação pessoal pode resultar catastrófica. Os derivativos dão às carteiras de investimento essa liberdade, mas também exigem muito mais conhecimento do que os investidores normalmente têm.

O problema não é tirar o risco de um lugar e colocar em outro, se no fim das contas, quem assumir o risco conhecer bem o assunto e for suficientemente sólido para arcar com ele. Porém, conforme afirmou Martin Mayer, “ao deslocar o risco, ele acaba sempre sendo descarregado nos menos capazes de enfrentá-lo”.70 Talvez seja uma generalização excessiva, mas o fato é que muitas instituições se viram extremamente prejudicadas, sem compreender bem os motivos. Uma das vítimas mais espetaculares deste processo foi o Barings, instituição financeira que havia sido a líder em Londres por 233 anos (veja o quadro a seguir).

Barings
O duque de Richelieu em 1818 disse haver na Europa 6 grandes potências: França, Inglaterra, Áustria, Prússia, Rússia e a casa Baring Brothers. Esta fama não ajudou o Barings quando, em fevereiro de 1995, uma única pessoa (o jovem Nick Leeson) perdeu em poucos dias US$1,5 bilhão (o dobro do capital do banco) no mercado de derivativos de Cingapura. A surpresa deve ter sido maior ainda dentro do próprio banco, pois Ron Baker, responsável por Produtos Financeiros, havia feito uma avaliação entusiasta da atuação de Leeson: “Nick teve um dia espetacular na SIMEX. […] A Bolsa era a própria Barings de Cingapura. […] Nick sabe ver oportunidades fenomenais e simplesmente as aproveita”.71

Mas os derivativos vieram para ficar, fundamentalmente porque, quando usados de forma correta, podem ser ao mesmo tempo lucrativos para o financista e úteis para a sociedade. Talvez seja bom nos acostumarmos com a ideia de que as surpresas aparecerão, como as combinações orquestrais da nossa metáfora anterior. Assim como um Dr. Jekyll se converte em Mr.Hyde, um sinal no monitor de um computador é capaz de alterar a situação de um derivativo financeiro em um segundo.

O sistema nervoso central do capitalismo
Dizer que as moedas são um tipo de ativo não é o suficiente: a moeda de um país é muito mais que isso. Ela desempenha a função de um sistema nervoso central que comanda os valores de todos os tipos de ativos do país. Isto se vê com mais clareza se observarmos como os fatos que ocorrem com o dinheiro impactam diretamente as outras três classes tradicionais de ativos. Já vimos que os bonds são um investimento atraente se a moeda em que estão denominados mantiver seu valor (ou seja, quando a inflação é baixa ou está diminuindo). Quanto às ações, também é bem sabido que os preços caem quando aumenta a taxa de juro, e que quando uma moeda está em dificuldade, as taxas de juros tendem a disparar. Quanto ao último tipo de ativo que vimos, os imóveis, a situação é mais complexa. Por um lado, eles são a melhor proteção possível contra a inflação; por outro, eles são muito ilíquidos (é difícil vendê-los de um dia para o outro), de modo que, quando os problemas financeiros se agravam, quem não puder pagar suas hipotecas pode acabar liquidando imóveis a um preço muito menor que o real. Por isto o investimento em imóveis é uma faca de dois gumes.

Por exemplo, após o crash da Bolsa de Nova York em 1929, o preço dos imóveis caiu tanto como o das ações. Na época, a melhor proteção era os títulos públicos, porque o governo não podia declarar falência (ele simplesmente imprimia mais dinheiro se necessitasse) e tudo era barato. Um colapso monetário hoje seria possivelmente muito pior, já que arrastaria junto não só o mercado de valores e de imóveis, mas até esse último refúgio, os títulos públicos. Concordo, por isto, com o Prof. Robert Guttmann quando afirma que a única forma de verdadeira depressão econômica que pode se apresentar de novo em nossa vida é um colapso monetário.72

Que o dinheiro é o calcanhar de Aquiles do sistema capitalista não é uma novidade. Diz-se que Lênin teria declarado que “a melhor forma de destruir o sistema capitalista seria corromper o dinheiro”.73

E por último: depois da interconexão dos vários mercados financeiros, a deterioração da moeda se tornou uma doença contagiante. A figura 2.4 mostra como uma crise que começou sendo da moeda tailandesa se propagou para 10 países através dos mercados de valores.

Tailândia Indonésia Filipinas Coréia do Sul Malásia Hong Kong Japão Rússia Brasil Argentina
Variação da cotação das ações

Figura 2.4 Variação da cotação das ações em 10 países, de junho de 1997 a dezembro de 1998 (%)74

Descobrir que todos os nossos ovos vão parar na mesma cesta monetária nos faz pensar que é bom ficar bem de olho nessa cesta. Para fazer precisamente isso, é que são pagos alguns especialistas muito qualificados. Permitam-me que eu os apresente, completando, assim, o quadro dos principais agentes do mundo do dinheiro hoje:

Os bancos centrais e outros bombeiros
O setor financeiro sempre foi bastante especial. O tratamento que ele recebe, ainda hoje, não é o mesmo dado a qualquer outro setor de serviços. Há razões positivas e negativas para isto:
• O lado positivo, as instituições financeiras (inclusive as privadas), se tudo vai bem, cumprem de fato a função pública vital de proporcionar uma moeda estável a todos os que participam dos processos econômicos.
• O lado negativo, estas instituições demonstraram ser frequentemente o elemento mais frágil de toda a sociedade (veja o quadro abaixo), e várias vezes – desde a Suméria até a Iugoslávia – quando o dinheiro entra em dificuldades, uma sociedade inteira pode ir por água abaixo.

A que se deve a fragilidade dos bancos?
Os bancos sempre tiveram propensão a sofrer acidentes. Para ficar só nas crises mais recentes: na década de 80 vários bancos importantes dos EUA tiveram dificuldades na América Latina, e na década de 90 ocorreu um dos resgates financeiros mais volumosos da história, o do desastre do Savings and Loans. No início dos anos 80, os bancos escandinavos também precisaram ser salvos; os japoneses se viram em problemas três vezes seguidas: primeiro nos anos 80 com a crise dos chamados Países Menos Desenvolvidos (PMD), depois nos anos 90 devido aos inconvenientes do mercado imobiliário e depois em 1997 devido ao colapso dos países do sudeste asiático. Os bancos alemães passaram muito mal durante o colapso russo de 1998. As situações mais complicadas são as dos bancos que operam em escala internacional, como a ruína do BCCI (do magnata Gaith Pharaon) em 1991, que originou processos judiciais que ainda persistem em tribunais de todo o mundo. Por que os bancos ficaram tão frágeis?

A resposta está em um dilema que até agora ninguém soube resolver. Pela própria natureza da sua atividade (os bancos tomam ativos de baixo risco – depósitos– e os investem em ativos de risco maior). Se correr tais riscos tiver valido a pena e os investimentos renderem, os banqueiros colhem todas as recompensas; mas se os investimentos fracassam, as perdas são distribuídas entre os donos do banco e os depositantes (ou os sistemas públicos que garantem os depósitos que atualmente são como uma rede de proteção para os depositantes). Por isso, naturalmente é uma grande tentação para os bancos incorrer no que se chama “risco moral”.

O dilema é o seguinte: Se os bancos não pudessem correr riscos, não haveria a atividade bancária; mas quando um banco importante corre riscos demais, pode-se deixar que ele vá à falência? Uma catástrofe bancária pode fazer cambalear todo o sistema financeiro. E o que é pior, se milhares de empresas ficarem sem crédito, o mal pode se estender rapidamente a todo tipo de atividade econômica. De repente estarão na corda bamba milhões de postos de trabalho e a subsistência de pessoas de carne e osso.

O sistema bancário se diferencia de qualquer outro negócio por mais um motivo: os problemas dos bancos tendem a se tornar problema para todo mundo…


Segundo dados do Banco Mundial, nada menos que 69 países sofreram graves crises bancárias desde o final da década de 70, e 87 países sofreram ataques especulativos contra suas moedas desde 1975.75

No nível nacional
Incêndios não são muito frequentes, mas quando ocorre um, ele pode ter consequências devastadoras. Cidades inteiras viraram escombros devido ao descuido de uma única pessoa; por isto foram criados os corpos de bombeiros e os materiais refratários. O mesmo ocorre com o dinheiro: a propensão das instituições financeiras a sofrer acidentes fez com que fossem inventados os bancos centrais.

O acordo de Bretton Woods
Em julho de 1944, 45 países assinaram, no hotel Mount Washington em Bretton Woods, no estado de New Hampshire (Estados Unidos), a primeira “constituição monetária” mundial. Segundo esse acordo, todos os países deviam se reger pela paridade cambiária com o dólar dos Estados Unidos, e, como contrapartida, os Estados Unidos se comprometiam a trocar sua moeda por ouro mediante solicitação de qualquer banco central do mundo, à taxa fixa de uma onça de ouro por 35 dólares. Na prática, esse sistema deu ao dólar dos Estados Unidos um papel de comando do sistema mundial. E ao mesmo tempo foi criada uma instituição para supervisionar o sistema: o Fundo Monetário Internacional (FMI). Qualquer mudança no valor de uma moeda exigia a aprovação prévia do FMI.

O sistema operou bem durante mais de duas décadas, até que durante a guerra do Vietnã o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson introduziu a estratégia conhecida como “armas e manteiga”, desencadeando a maior saída de dólares até então. Alguns anos depois, em 1971, a considerável quantidade de dólares em poder dos bancos centrais estrangeiros obrigou o presidente Richard Nixon a renegar a promessa de convertibilidade do dólar em ouro, pondo fim ao acordo de Bretton Woods.

Apesar disto, o dólar seguiu desempenhando o papel de eixo oficial do sistema monetário internacional, fato que aumentou o peso dos Estados Unidos nas questões monetárias mundiais e a dependência dos demais países em relação ao dólar. Repare que isto continua valendo para o euro, pois seu valor no mercado internacional está ligado ao dólar.

Qual é a origem dos bancos centrais?
No século XIX, se designava com o nome de “banco central” o banco estabelecido na capital de um país que tivesse o monopólio da emissão do papel moeda nacional. De tanto em tanto, em certas circunstâncias estes bancos deviam se auxiliar mutuamente. Como em 1825, quando houve um ataque especulativo contra o ouro em Londres e os franceses trocaram com o Bank of England um carregamento de prata por um de ouro. Os ingleses devolveram o favor em 1860, quando o Banque de France se encontrava em uma situação desesperadora. Mas eram casos raros e se dava pouca publicidade e certamente não se pensava que esta era uma das obrigações oficiais de um banco central. Foi neste modelo que se inspirou o banco central dos Estados Unidos, o chamado Sistema da Reserva Federal, criado em 1913.

Tudo isto mudou com o acordo de Bretton Woods, que firmou as bases do funcionamento financeiro mundial após a Segunda Guerra Mundial (veja o quadro anterior). A partir de então, os bancos centrais passaram a cumprir funções muito mais complexas:

  • Atuam como um tipo de corpo de bombeiros em situações de emergência em um banco, ou no sistema como um todo. Em economês isto se chama ser o “emprestador de última instância” ou o encarregado do “manejo sistêmico do risco”, respectivamente.
  • São, os responsáveis em última instância pelo controle da inflação do país. Nas últimas décadas, esta foi tarefa que a população em geral mais associava ao banco central.
  • Controlam a inflação por meio de mecanismos que influem na quantidade de dinheiro que o sistema bancário pode criar. Não é que imponham diretrizes precisas, os bancos centrais emitem sinais, por exemplo fazendo variar as principais taxas de juros, ou comprando e vendendo títulos públicos ( “operações de mercado aberto”) e de câmbio nos mercados de divisas ( “intervenções”).
  • Embora não tenham clientes pessoas físicas, não deixam de ser bancos: seus clientes são os demais bancos do país, para os quais atuam como liquidadores de pagamentos ou compensando os saldos entre eles.

Retrato de família do dinheiro
O diagrama abaixo (figura 2.5) mostra a árvore genealógica dos principais atores da cena monetária. É uma espécie de pirâmide invertida, na faixa superior há milhares de bancos comerciais, na seguinte uns 170 bancos centrais (agrupados em três categorias: privados, estatais e mistos) e na base estão as duas organizações supranacionais.
País A País B País C
Bancos privados Banco X Banco Y Banco Z
Bancos centrais Banco central privado
(por ex. Reserva Federal, Banco Nacional Suíço) Banco central estatal (por ex. Reino Unido, França e China) Banco central de capital misto (por ex. Bélgica
e Japão)
Bancos supranacionais Fundo Monetário Internacional (FMI na cidade de Washington) Implementação de políticas BIS – Clube privado pertencente a “10+1” bancos centrais

Figura 2.5 Organograma atual do sistema monetário mundial

Posicionei os bancos nacionais na parte superior do diagrama porque são os emissores de primeira instância do dinheiro-crédito. Originalmente, os bancos centrais eram apenas dispositivos de segurança, os bombeiros para caso de incêndio. Até 1936, eles pertenciam aos bancos privados mais importantes de cada país; ainda hoje, 9 bancos centrais continuam sendo empresas de propriedade de bancos privados, entre eles estão a Reserva Federal dos Estados Unidos, o Banco Nacional da Suíça, o Banco da Itália e o Banco da Reserva Sul-Africana.

Na década de 50, havia bancos centrais em 56 países; hoje são 170, e a maioria dos novos são estatais. Porém, há também (na Bélgica e no Japão, por exemplo) alguns que pertencem ao mesmo tempo ao Estado e a bancos particulares. Ao contrário do que se poderia supor, não há provas demonstrando diferenças significativas, entre os estatais, privados e mistos, nem no funcionamento nem na eficácia.

No nível supranacional
E por último, há dois membros importantes nessa família, os principais instrumentos de coordenação supranacional dos bancos centrais.

  • Um deles, o FMI, desempenha funções de polícia.
  • O outro, o Banco de Compensações Internacionais (Bank of International Settlements, BIS), em Basileia, é um clube privado.

Criado em 1945 para supervisionar o cumprimento dos acordos de Bretton Woods, o FMI é o auditor dos bancos centrais de todos os países e o braço político oficial do sistema monetário mundial. Até 1997, tinha 182 países membros e sua diretoria, de 24 membros, supervisionava um quadro com 2300 profissionais, na sua maioria economistas. O FMI é o emprestador de última instância, para quem os países membros em caso de emergência, podem pedir emprestado recursos de um fundo de US$210 bilhões constituído pelas quotas pagas por todos os países. Em geral, os créditos do FMI são condicionados ao cumprimento de medidas rigorosas de austeridade econômica: Daí vem sua reputação de policial da economia mundial. Os Estados Unidos têm uma influência predominante não só por ter poder de veto sobre as decisões, mas também porque ele está “à mão” fisicamente, uma vez que a sede do FMI é na cidade de Washington.

A história do BIS é algo mais peculiar. Foi criado ostensivamente em 1930 para administrar o dinheiro das indenizações pagas pela Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial. Com o tempo ele se tornou uma espécie de clube privado cujos donos e gerentes são os “10 + 1” bancos centrais, ou seja, os 10 bancos centrais dos países fundadores mais o da Suíça, por ser o país anfitrião (com sua estratégia de “neutralidade ativa”, a Suíça sempre está “dentro” e “fora” ao mesmo tempo; por exemplo, ela ainda não se integrou oficialmente ao FMI nem à ONU). A missão do BIS era tratar das questões importantes que deviam ser tratadas com suma discrição, sem políticos, sem funcionários do tesouro nem ministros da fazenda; nem sequer presidentes ou primeiros ministros eram bem-vindos.

As pessoas tendem a esquecer que o BIS também é um banco, embora seus únicos clientes sejam os bancos centrais, motivo pelo qual ele tem o apelido de “banco central dos bancos centrais”. O BIS tem até uma grande mesa de operações para supervisionar o funcionamento do sistema monetário mundial em tempo real e realizar transações entre os diferentes bancos centrais. Quanto à sua influência é uma instituição modesta com apenas 450 funcionários, dos quais uns 50 são economistas – analistas que publicam, entre outras coisas, um relatório anual muito respeitado sobre a situação do sistema financeiro internacional. No passado, ele ficou famoso por ter “apagado incêndios” algumas vezes, e com certeza ele fará parte das brigadas de incêndio do futuro, também.

Nesta seção vimos uma foto instantânea dos principais atores, mas se alguém teve a impressão de que o jogo do dinheiro é estático, esta ideia vai desaparecer assim que juntarmos todas as peças do quebra-cabeça.

O dinheiro como sistema
O jogo está mudando debaixo do nosso nariz. Trata-se da maior, mais complexa e mais rápida transformação de todos os tempos. Isto pode ser mostrado de duas perspectivas diferentes: a dos bombeiros e a do resto de nós.

O ponto de vista dos bombeiros
Da perspectiva dos bancos centrais, o mundo se torna mais difícil e complexo a cada ano. Em particular, os processos explosivos ocorridos nos mercados de câmbio têm uma série de implicações, que dividirei em três tópicos:

  • Deslocamento do poder
  • Aumento da volatilidade
  • Estável ou instável, essa é a questão

O deslocamento do poder
No sistema mundial já houve um importante deslocamento do poder. Todos os governos do mundo, mesmo os mais poderosos, como o dos Estados Unidos, são hoje vigiados pelos mercados de câmbio mundiais. Se qualquer governo do planeta se atrever a questionar seus comandos, a fuga de capitais o obriga a voltar imediatamente para o caminho ortodoxo. Muitos tiveram que pagar esse preço altíssimo: o presidente francês François Mitterrand na década de 80; John Major na Grã Bretanha e os escandinavos em 1992; os mexicanos em 1994; os governos da Tailândia, da Malásia, da Indonésia e da Coréia do Sul em 1997; os russos em 1998.

Até uma revista como a Business Week chega à seguinte conclusão: “Neste novo mercado […] bilhões de dólares podem entrar ou sair de uma economia em questão de segundos. Tão poderosa se tornou esta ação do dinheiro, que, segundo alguns observadores, o “hot money” (fundos que passam instantaneamente de um país a outro) está se tornando uma espécie de governo mundial oculto, causando uma erosão irreversível no conceito do poder soberano do Estado nacional”.76 Os tempos de mudança do poder são os que exigem de nós mais atenção; eles por definição, são tempos de incerteza. E a volatilidade da moeda é a incerteza que os bancos centrais e outros guardiões da ordem monetária mais temem.

O aumento da volatilidade da moeda
A volatilidade da moeda mede quanto o seu valor varia em relação às demais. Como é de se supor, um banco central não gosta nada da volatilidade da sua moeda, mas acontece que a volatilidade é uma das consequências inesperadas do grande aumento da especulação. Lá pela década de 1960, os defensores da livre flutuação das taxas de câmbio argumentavam que quando se implantasse a liberdade de mercado, a volatilidade desapareceria. Na realidade, hoje os mercados de divisas são muito mais abertos e livres que nos anos 60, quando estava em vigor o sistema de taxas de câmbio fixas estabelecido pelo acordo de Bretton Woods. No entanto, as conclusões de um estudo estatístico da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) dão o que pensar – elas contradiziam frontalmente o prognóstico teórico.77 Nos últimos 25 anos, enquanto imperaram as taxas de câmbio flutuantes, a volatilidade das divisas foi quatro vezes mais alta que na época do sistema de Bretton Woods.

Não é preciso ser um gênio em estatística para entender por que a volatilidade aumenta quando aumenta o volume das transações especulativas. Agora suponha que uma moeda sofra pressões e que não mais de 5% dos principais corretores de câmbio tenham uma opinião negativa sobre a essa moeda. Na prática, isso significa que os que tiverem essa moeda se desfarão dela, e os corretores que não tiverem, a venderão “a descoberto”.78 Em 1986, quando o volume diário total do mercado de câmbio era cerca de US$60 bilhões, esse movimento de 5% do mercado teria representado US$3 bilhões, valor que sem dúvida é um desafio para qualquer banco central, mas ainda assim é administrável. Hoje, com um volume de US$2 trilhões diários, o movimento equivalente geraria uma transferência esmagadora de US$100 bilhões contra nossa moeda, e nenhum banco central estaria em condições de suportar isto.

Estável ou instável, essa é a questão
Disto tudo se deduz que a situação dos bancos centrais é cada vez mais incômoda. Eles não apenas estão imersos em um mundo de incerteza e volatilidade crescentes, como também foram superados em poder de fogo pelos mercados monetários. As reservas cambiais de um banco central são as divisas que podem ser usadas para intervir nos mercados. Elas são precisamente o que as reservas de água são para os bombeiros. Em geral, quando uma moeda está sob pressão e um banco central quer estabilizar a taxa de câmbio, ele pode aumentar o valor da moeda comprando-a no mercado. “O uso mais espetacular que se fez das reservas aconteceu em 1992 e 1993, quando as moedas da União Européia sofreram um grande ataque. Em 1992 foram mobilizados uns 400 bilhões de marcos alemães (mais de US$225 bilhões) e uma quantia um pouco menor em 1993; ambas reduziam a uma magnitude minúscula os valores investidos em qualquer período anterior. Mas apesar desse gasto gigantesco, os bancos centrais terminaram perdendo e os mercados, ganhando.”79

Hoje, o valor total de todas as reservas de todos os bancos centrais (aproximadamente US$2 trilhões, incluídos os 340 bilhões em reservas de ouro a preços de mercado) seria consumida em menos de um dia normal do mercado de câmbio. Compare esta situação com a de 1983 (veja a figura 2.6), quando as reservas ainda eram um amortecedor bastante seguro.

Em bilhões de US$
Comércio diário de moedas estrangeiras
Reservas dos bancos centrais
Fontes: BIS, FMI, The Economist. Os dados de 1998 são estimativas
Figura 2.6 Reservas dos bancos centrais dos países industrializados comparadas com o comércio diário de divisas

Se somarmos a este total a estimativa de US$15 trilhões, o melhor valor aproximado que podemos obter para os fundos de administração privados, e depois adicionarmos uma quantidade desconhecida de derivativos financeiros, obteremos um volume potencial de divisas que– embora seja impossível de medir – é insustentável. Em caso de dificuldades, os bancos centrais estariam na mesma situação que um quartel de bombeiros de Nova York que tentasse apagar um incêndio em um grande arranha-céu com as antigas mangueiras manuais de bronze.

Até quem se beneficia com esta especulação explosiva está seriamente preocupado. Por exemplo, George Soros, reconhecidamente um dos principais nomes neste jogo, afirma: “As taxas de câmbio livremente flutuantes são, por natureza, instáveis; e, além disto, a instabilidade delas é cumulativa, de modo que em um sistema de taxas de câmbio livremente flutuantes é virtualmente garantido um colapso num dado momento”.80 Joel Kurtzman, editor de negócios do New York Times, tem uma postura ainda mais condenatória; ele intitulou seu último livro The Death of Money: How the Electronic Economy has Destabilized the World’s Markets [A morte do dinheiro: como a economia eletrônica desestabilizou os mercados mundiais].81

Paul Volcker, ex-diretor da Reserva Federal, um mestre do eufemismo, expressou sua preocupação com o aumento do número dos “partidários da instabilidade”, ou seja, os interesses financeiros cujos lucros dependem do aumento da volatilidade.82 Só para ilustrar, um comentário típico de um operador de câmbio, publicado no Washington Post, que revela como são para essas pessoas os períodos de relativa estabilidade: “Desta maneira não se faz dinheiro… O movimento do dólar está muito limitado. Ninguém que especule ou negocie com dólares ou qualquer outra moeda pode ganhar nem perder em uma situação assim. Não se pode fazer nada. É um horror”.83

O efeito líquido da ação desses “partidários da instabilidade” é a sucessão das crises monetárias que ocupam a primeira página dos jornais. (Veja no próximo quadro um fragmento do New York Times no qual os principais atores, que já foram apresentados aqui, representam um drama da vida real). A pergunta que ninguém se atreve a fazer é: quem é a bola da vez? A América Latina, a Europa ocidental, a China? Em que momento o alvo será os Estados Unidos, o país com a maior dívida do planeta? E se isso ocorrer, o que significará?

A maré monetária é vista como uma ameaça contínua
(extraído do New York Times 22/12/1997)84
Se há uma clara lição no turbilhão que tanto abalou a Ásia, é que os sistemas financeiros de muitos países que estão crescendo rapidamente não são páreo para a enorme quantidade de dinheiro que eles atraem.

Ficou comprovado que os sistemas nacionais criados para supervisionar os bancos são incapazes de acompanhar o ritmo de desenvolvimento frenético de um mercado financeiro mundial que não presta atenção em fronteiras. Não existe nenhum organismo internacional capaz de funcionar como agente regulador em escala planetária. E por isto, os países, e toda a economia global de repente estão mais vulneráveis, sujeitos à ineficácia da regulamentação obscura que rege a atividade bancária em países remotos.

Organizações multinacionais e governos, liderados pelo FMI, comprometeram mais de US$100 bilhões para salvar os países asiáticos, no resgate internacional mais caro da história. Porém, paradoxalmente, ainda não existe um organismo mundial dotado de capacidade ou autoridade para lidar com estas questões.

Andrew Crockett, presidente do BIS, afirma o seguinte: “Nos últimos anos percebemos – e os senhores dirão que muito tarde – que hoje a estabilidade dos bancos é mais importante para uma gama mais ampla de países. E é o setor público dos países que estão com seu dinheiro em risco quem impede que haja uma catástrofe financeira, de modo que o setor público deve ter voz. Como podemos fazer para que os países aceitem tais normas? A resposta é: Nós não podemos”.

“A supervisão no nível nacional de empresas e mercados globais complexos é insuficiente frente ao desafio dos nossos tempos” afirmou John G. Helmann, responsável mundial pela área de instituições financeiras da Merrill Lynch.

Este não é o único desafio que o sistema monetário está enfrentando. Mais adiante veremos que os bancos e os serviços financeiros passaram por outra mudança, desta vez pressionados pela cybereconomia. Comprovaremos que certas inovações do mercado, como o Open Finance, tornam mais difícil do que nunca para os reguladores definir o que é um banco ou qual é o dinheiro que eles estão em condições de regular.

Depois deste giro panorâmico, retornamos a você
Comecei esta cartilha com as seguintes perguntas: Como se determina o valor do dinheiro? Quem está verdadeiramente no comando das suas poupanças? Já podemos respondê-las:

  1. O valor do dinheiro se determina, em última instância, em um cassino global cada vez mais volátil no qual 98% das operações se baseiam em especulação.
  2. A cesta onde você coloca seus ovos pode ser sua moradia, uma carteira de investimentos ou dinheiro no bolso, dá na mesma, dentro do sistema monetário todas as poupanças estão interconectadas. Por isso, qualquer que seja a forma da poupança, seu futuro depende em grande medida do que ocorre com a moeda do seu país.

Nenhum mercado mundial é uma ilha85
O New York Times rastreou o dinheiro do casal Paoni, uma típica família do Meio Oeste dos Estados Unidos, desde o fundo de investimentos local onde o colocaram, o A.G.Edwards Money Market Fund, até a Bangkok Land – uma empresa de projetos imobiliários da Tailândia que faliu após a hecatombe do baht – e à J.P.Morgan – uma das instituições que mais venderam derivativos durante a crise asiática. O casal tinha fundos, também, na Caixa de Pensões do Estado de Illinois, que em parte terminaram no Gum, (o prestigioso supermercado de Moscou que faliu depois do colapso do rublo), e também no Peregrine Investments (um banco de investimentos de Hong Kong que surgiu do nada em 1996, alcançou lucros no valor de US$25 bilhões, e faliu dois anos mais tarde, devendo US$4 bilhões a mais de dois mil credores). Hoje, todos esses tipos de investimento perderam totalmente seu valor.


Com a globalização dos mercados financeiros, o mais provável é que qualquer pessoa esteja no jogo monetário mundial, mesmo sem saber, e que esteja, portanto, sujeita às consequências das instabilidades dele.

  1. Por mais que uma pessoa pense que não tem nada a ver com as “finanças internacionais” porque não se dedica a esse jogo, em geral é uma ilusão, pois tanto seu banco como sua aposentadoria estão, direta ou indiretamente, envolvidos nestas atividades. Em uma série de quatro artigos de fôlego o New York Times retratou uma situação típica: a de Mary Jo Paoni, uma secretaria de 59 anos, e seu marido George, um funcionário de frigorífico aposentado, da pequena cidade de Cantrall, no Illinois, que resolveram que “jamais investiriam na Ásia”. Esses artigos descrevem como o dinheiro deste casal, sai das caixas de aposentadoria e dos fundos de investimento comuns onde foram depositados, passam pelos investimentos feitos por essas instituições na Indonésia, na Tailândia e na Rússia, enquanto seus donos ignoravam totalmente isto (veja o quadro anterior).
  2. Mesmo que um indivíduo não tenha investido nem poupado de forma alguma, se em algum lugar do planeta o dinheiro enfrenta problemas graves, sua vida será afetada, porque seu país como um todo será afetado. A figura 2.7 mostra a compra de ações estrangeiras em percentual sobre o PIB em três países. Alemanha, por exemplo, tem atualmente o equivalente a duas vezes e meia sua produção anual em ações estrangeiras.

Percentual do PIB
Japão
Estados Unidos
Alemanha

Figura 2.7 Compra de ações estrangeiras percentualmente sobre o PIB, 1975-199886

Os riscos são enormes. Em última instância, o dinheiro é confiança mútua, e a confiança só vive e só morre na mente e no coração das pessoas. Os sistemas monetários, incluindo o atual, são mecanismos e símbolos que visam manter viva essa confiança. Historicamente, civilizações inteiras foram construídas sobre confiança recíproca, porque a confiança é o elemento central da segurança necessária para que uma civilização cresça, ou mesmo para que sobreviva. O aspecto grave de tudo isto é que quando uma sociedade perde confiança no seu dinheiro, perde confiança em si mesma.

No debate sobre o futuro do dinheiro a questão não é inflação ou deflação, taxas de câmbio fixas ou flexíveis, padrão ouro ou papel moeda, mas em que tipo de sociedade o dinheiro irá operar.87

CAPÍTULO 3

O dinheiro na atualidade

Mais que qualquer outro campo da economia, o estudo do dinheiro utiliza a complexidade para encobrir a verdade ou evitar a verdade, mas nunca para revelá-la.
– John Kenneth Galbraith88

O dinheiro é o que distingue o ser humano dos animais.
– Gertrude Stein, 1936

A única coisa que o dinheiro não pode comprar é o significado.
– Jacob Needleman89

“Mãe, me dá dinheiro para comprar balas?” No nosso primeiro contato com o dinheiro, o entendemos como algo necessário para obter o que queremos nas lojas. E com o pragmatismo de uma criança inocente, usamos o dinheiro sem perceber que há um mistério por trás desta transação.

À medida que crescemos, começamos a lidar com muitos dos mistérios do mundo adulto. Aprendemos de onde vêm os bebês e participamos desse processo; e que tudo o que vive, com o tempo, morre; presenciamos a morte de um familiar, um amigo, um animal de estimação; e nos ensinam como funciona o governo e quem elabora as leis que regulam a vida.

Porém, quase ninguém consegue solucionar um dos mistérios mais importantes da nossa vida: o dinheiro. Provavelmente a maior parte das pessoas supõe que a resposta sobre a natureza do dinheiro pode ser encontrada estudando-se economia ou teoria monetária, e todos sabemos como são monótonas estas matérias, cheias de equações, desprovidas de qualquer molho emocional.

A ironia é que o dinheiro é um tema com um molho muito emocional. Jogar dinheiro em um lugar público chama tanto a atenção como tirar a roupa. Os operadores do mercado financeiro reconhecem que na maioria dos assuntos relacionados com o dinheiro entram em jogo emoções poderosas, universais, violentas, voláteis e avassaladoras. Mas apesar de tudo isto, nem a economia nem as teorias monetárias levam em conta a natureza emocional do dinheiro. Na realidade, para estudar o dinheiro cientificamente, suprimem deliberadamente sua base emocional. Por que?

A criação do dinheiro é em grande medida invisível para olhos pouco treinados, e parece quase milagrosa. A maioria das pessoas, quando entende a verdadeira origem do dinheiro, se mostra tão descrente como algumas crianças que ao descobrir de onde vêm os bebês se perguntam: “Como é possível?”

Os livros de economia falam o que o dinheiro faz, mas não o que ele é. Ao formular a pergunta enganosamente simples “O que é o dinheiro?”, enfrentamos seu poder mágico e antigo. Neste capítulo, lançarei luz sobre esse mistério, demonstrando que o dinheiro não é uma coisa, é um acordo que em geral realizamos inconscientemente.

Na sociedade contemporânea, não só concordamos – inconscientemente – em participar do sistema monetário existente, além disto damos a ele um poder extraordinário. Aqui exploraremos a natureza desse poder, assim como as quatro características chave do dinheiro atual, que frequentemente tratamos como se fossem naturais e inquestionáveis.

Por exemplo: as moedas nacionais tornam a interação com nossos compatriotas mais desejável que com os “estrangeiros”, cultivando deste modo a consciência nacional. Um mecanismo menos óbvio é o do juro, que, como veremos, fomenta a competição entre os usuários de uma moeda.

Uma pergunta “simples”
O economista mais famoso do século XX, John Maynard Keynes, deve ter compreendido o que é o dinheiro. Afinal, ele foi presidente da equipe que projetou o sistema monetário, conhecido como o acordo de Bretton Woods. Em uma carta a Keynes, Marcel Labordère, um jornalista francês especializado em finanças, postulou: “É evidente que o ser humano nunca poderá entender o que é o dinheiro, assim como não pode, no âmbito espiritual, saber o que é Deus. O dinheiro não é o infinito, mas o indefinido, uma surpreendente combinação de todos os tipos de reações materiais e psicológicas”.90

A resposta de Keynes a estas afirmações não foi documentada, mas podemos deduzir sua opinião sobre o tema a partir desta sua observação espirituosa: “Só sei de três pessoas que compreendem realmente o dinheiro: um professor de outra universidade, um de meus alunos e um funcionário um tanto subalterno do Banco da Inglaterra”. Foi prudente ele não dar nomes. O que essa frase mostra é que é possível estar no topo da hierarquia dos especialistas deste assunto e não saber a resposta a essa pergunta enganosamente simples: “O que é o dinheiro?”.

De onde vem o mistério do dinheiro?
A representante do governo de Clinton no FMI formulou esta definição reveladora: “O dinheiro é magia. Os que trabalham no Banco Central são magos. Como todos os magos, preferem não mostrar seus truques”. Ela se referia a magia verdadeira ou a simples truques de salão? A resposta é: as duas coisas. A magia e o mistério rodearam o processo do dinheiro durante toda a sua evolução. Há dois motivos para o dinheiro parecer misterioso:

  • A história do dinheiro
  • A necessidade de perpetuar o jogo da confiança

A história do dinheiro
Keynes destacou que “o dinheiro, assim como outros elementos da civilização, é uma instituição muito mais antiga do que nos fizeram acreditar. Suas raízes se perdem na neblina do descongelamento dos glaciares, e podem bem chegar aos intervalos interglaciais da história humana, quando o clima era agradável e a mente livre para ser fértil e gerar novas ideias – nas Ilhas Hespérides ou na Atlântida, ou em algum éden da Ásia Central”.91

Em um grande jarro de alabastro de 3100-2900 a.C. está representado um homem nu carregando uma grande cesta cheia de alimentos para Innana. A deusa está de pé frente a uma entrada com batente duplo, que simboliza seu templo. Vê-se acima da cabeça dela, que o vaso foi reparado à época com rebites de cobre, isto indica que este objeto era considerado um tesouro.

Embora as origens exatas do dinheiro sejam desconhecidas, suas primeiras formas se relacionavam intimamente com os mistérios do sagrado, e sua primeira função foi de símbolo. Segundo o Oxford English Dictionary, um símbolo é “algo que representa outra coisa imaterial ou abstrata”, este dicionário adiciona que todos os primeiros símbolos se relacionaram com conceitos religiosos.

O mistério do Shekel
A primeira moeda sumeriana se chamava “shekel” porque “she” significava trigo, e “kel” era uma medida similar a um alqueire. Assim, essa moeda simbolizava o valor de um alqueire de trigo. (A palavra sobreviveu até hoje no hebraico moderno – “shekel” é o nome da moeda oficial de Israel).

Originalmente, o shekel era usado para pagar os rituais sexuais sagrados do templo de Innana, deusa da vida, da morte e da fertilidade (a Isthar dos babilônios). Além de ser um centro ritualista, era neste templo que se armazenava o trigo reservado para alimentar sacerdotisas e a comunidade nos tempos difíceis.

Naquela época, os agricultores cumpriam obrigações religiosas perante a sociedade e a deusa oferecendo ao templo uma quantidade de trigo e recebendo, em troca, o shekel, que os autorizava a ter um encontro com as sacerdotisas na época das celebrações. Dois mil anos depois, quando o sistema patriarcal alterou o significado e a natureza desses rituais, a Bíblia descreveria estas sacerdotisas como “prostitutas do templo”. Porém, tudo isso precisa ser compreendido no seu contexto cultural próprio. As “prostitutas sagradas” eram representantes da deusa; manter relações sexuais com elas equivalia a manter relações com a deusa da fertilidade, não era algo que se pudesse encarar com leviandade. Naqueles tempos, a fertilidade era genuinamente um assunto de vida ou morte. Se a colheita fracassasse, não havia alternativa, e todos morriam de inanição ou ao menos passavam fome até o ano seguinte. Claro estava que realizar o ritual mágico garantia fertilidade nos cultivos, nos animais e garantia filhos, ou seja, os pré-requisitos para um futuro próspero.

O motivo pelo qual dinheiro, sexo e morte se tornaram três tabus poderosos no Ocidente tem a ver com eles serem atributos do arquétipo da Grande Mãe da antiguidade, conforme se pode ver pelas associações que se faz com o shekel. Em outros escritos, exploro as implicações deste vínculo para a psicologia coletiva.92

Uma das moedas mais antigas (cerca de 3200 a.C.) é o “shekel” sumeriano de bronze com o desenho de uma espiga de trigo de um lado, e do outro a deusa Innana (ou Ishtar), deusa da vida, da morte e da fertilidade. Era um símbolo sagrado dos mistérios da fertilidade (veja o quadro). É uma moeda bem típica. Ao longo da história, quase todas as sociedades atribuíram um valor sagrado e misterioso às moedas.

Mais de 2500 anos depois do Shekel sumeriano, surgiram as primeiras moedas gregas, que, na realidade, eram fichas dadas aos cidadãos como comprovante de pagamento das suas dívidas. Essas fichas davam direito à participação na ceia sagrada anual, chamada hecatombe, que era compartilhada com as deidades.

Ibn Khaldun, um estudioso árabe, afirmou que “Deus criou os dois metais preciosos, o ouro e a prata, para servirem de medida de todas as mercadorias…”. O ouro e a prata não precisaram da ajuda de nenhuma instituição religiosa para continuarem sendo associados com o Sol e a Lua. Durante séculos, os preços destes dois metais mantiveram misteriosamente uma proporção fixa de 1/13,5, determinada astrologicamente de forma a refletir os ciclos celestiais. Ambos os metais continuaram valendo como moedas ordenadas por deus, muito depois de ter sido esquecida a justificativa astrológica. Até hoje, muitas pessoas pensam que um dinheiro “real” seria um retorno ao padrão ouro. Há até quem ainda invoque suas origens bíblicas.93

De certa forma, é irônico que o todo-poderoso dólar não seja uma exceção deste fenômeno místico. Emitida por um país que desde sua fundação estabeleceu uma separação escrupulosa entre Igreja e Estado, a mais que conhecida nota de um dólar ostenta um lema peculiar: “In God we Trust”[Em Deus confiamos] e foi ilustrada com as duas faces do Grande Selo dos Estados Unidos. Joseph Campbell diz que este selo tem uma quantidade extraordinária de símbolos esotéricos (veja o quadro).

A dimensão esotérica da nota de um dólar
(Resumo de uma conferência de Joseph Campbell)

Convido vocês a observarem atentamente a conhecida nota de um dólar. Seu lado mais interessante não é o que tem a figura de George Washington, mas o do Grande Selo dos Estados Unidos.

À esquerda, o verso (normalmente escondido) do Grande Selo
mostra uma imagem da Fonte da Manifestação tal como foi interpretada pelos Pais Fundadores. Aparece a pirâmide truncada coroada pelo Delta de Luz com o olho de Deus que tudo vê, que representa o poder espiritual comandando a criação da matéria; o olho representa a “abertura do olho” de Javé ou de Brahma, que permitiu a Deus criar o mundo material e se relaciona com o olho que manifestou o mundo inicial – o que na linguagem científica contemporânea denominamos “o Big Bang”. A frase em latim Annuit Coeptis significa “favorece nosso empreendimento”. É interessante destacar que nessa frase em latim o gênero é neutro, não implicando portanto um Deus necessariamente “masculino”. A cédula contém também a frase Novus Ordo Seclorum que significa “A nova ordem dos séculos”.

A outra face do selo (a visível oficialmente) mostra a Fonte da Ação, que representa Zeus, aqui simbolizada pela águia, a única ave que pode olhar o Sol. Ela segura 13 flechas (simbolizando poder) em sua garra esquerda e na direita, um ramo de oliveira (símbolo de paz).

No nível exotérico, o número 13, o número da transformação, representa o total de estados fundados originalmente. No entanto, esse número aqui também deve ser considerado no seu aspecto esotérico, dada a enorme quantidade de vezes que ele se repete na figura: não menos que sete vezes! Na quantidade de linhas de pedras da pirâmide; no total de estrelas; de folhas no ramo de oliveira; de flechas na garra da águia; de letras da frase “annuit coeptis”; e mais duas vezes 13 porque as demais letras que aparecem na figura (incluídos os números romanos que indicam a data), totalizam outras 26 letras.

Para que uma das frases em latim tivesse 13 letras, foi introduzido um “erro” ortográfico (seclorum em lugar de seculorum). As 13 estrelas localizadas sobre a águia formando o “Selo de Salomão” (também denominado “Estrela de David”) nos dão algumas pistas adicionais. Essa estrela de 6 pontas é, de fato, um dos símbolos cabalísticos e alquímicos mais ricos. Quanto mais precisamos pesquisar para provar que, inclusive no mundo atual, que é totalmente laico, a nota de maior circulação do globo tem “aspectos sagrados misteriosos”?

São fascinantes as várias místicas associadas ao dinheiro. A Libéria, por exemplo, emitia notas com retratos dos capitães James T.Kirk e Jean-Luc Picard, da nave Enterprise [empresa em inglês], (pagando direitos autorais à Viacom, dona das marcas registradas da Star Trek [Jornada nas Estrelas]).94 Até pouco tempo atrás, a moda era projetar bancos parecendo templos, criando no interior dos edifícios um ambiente de reverência permanente. Inclusive, o primeiro banco da Internet, o First Security National Bank, que se constituía unicamente em um endereço na Internet e não tinha nenhuma agência, sentiu a necessidade de se curvar a essa tradição usando como símbolo na sua primeira página na Internet a imagem de um edifício de banco neoclássico.

Os funcionários dos bancos, e em particular os dos bancos centrais, até hoje envolvem seus afazeres em um mistério sacerdotal. Uma sabatina do presidente da Reserva Federal no Congresso dos Estados Unidos tem tantos traços ritualísticos e tantas ambiguidades deliberadas como os oráculos dos sacerdotes de Apolo em Delfos, na Grécia antiga. Há duas passagens que ilustram isto com perfeição. A primeira é a minha prova preferida da engenhosidade de Alan Greenspan: “Se você me compreendeu, não devo ter me expressado com clareza”. A outra pertence a William Greider, e apareceu em seu best-seller sobre a Reserva Federal intitulado, acertadamente, Secrets of the Temple [segredos do templo]: “Assim como o templo, a Reserva Federal não dá respostas às pessoas: fala por elas. Suas declarações se expressam em uma linguagem misteriosa que as pessoas não podem compreender, embora saibam que sua voz é poderosa e importante”.95

Apesar disto, há muito mais para ser dito sobre o mistério do dinheiro, que esta reflexão sobre o arraigado conservadorismo do mundo financeiro.

O que é preciso para o jogo da confiança
Se um amigo lhe dissesse para escolher entre uma nota de 20 dólares e um pedaço de papel onde se lê “Prometo pagar 20 dólares ao portador deste bilhete”, o que você escolheria? Talvez considere seu amigo uma pessoa estupenda e confiável, mas se tentar comprar uma mangueira para o jardim usando o bilhete, ele não será aceito pelas pessoas da loja, embora elas também conheçam seu amigo, mas não estariam muito seguras de poder pagar seus fornecedores com o bilhete. Por isto, é natural que se prefira a nota de 20 dólares, porque a experiência ensinou que todo o mundo a aceitará. Você tem uma crença muito arraigada – e aqui está a chave – não no valor da nota de 20, o que você crê firmemente é que todo mundo a aceita. Não importa realmente o que você pense sobre esse dinheiro seu, porque de todo modo, você sabe que pode gastá-lo. Você acredita que os outros acreditam que esse dinheiro vale. Trata-se, portanto, da crença em uma crença.

As crenças e convenções sociais podem ser poderosas e praticamente indestrutíveis. Existe uma infinidade de exemplos históricos de pessoas que preferiram a tortura e a morte a mudar suas crenças. Além disto, sabemos que algumas pessoas escolhem seguir crendo em algo, por mais que haja muitas provas demonstrando o contrário. É por isso que as crenças têm uma presença enorme na psique humana.

Porém, a crença em uma crença é algo totalmente distinto. É uma coisa frágil e efêmera. Talvez nada possa fazer minha crença cambalear, mas minha crença em sua crença pode ser afetada por um rumor, uma mera intuição, um sentimento. E uma corrente de crenças em crenças é tão sólida quanto seu elo mais frágil. Se eu ficar sabendo que do outro lado do planeta alguém deixou de crer no peso mexicano, ou no baht ou no rublo, vou temer que os vizinhos também deixarão de confiar. Em decorrência disto, cairão todos os dominós, como aconteceu no México em dezembro de 1994, na Tailândia ao final de 1997 e na Rússia em agosto de 1998.

Por exemplo, em junho de 1977, o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Michael Blumenthal, se referiu ao problema do valor do dólar. Bastou que ele manifestasse sua preocupação para que o dólar entrasse em parafuso e despencasse durante dois anos seguidos.

Resumindo, o jogo do dinheiro é, assim como os oráculos da Grécia antiga, um jogo de credibilidade. Sempre que o rei fica nu diante das pessoas (ou seja, sempre que surge uma “crise de confiança”), os que estão percebendo esperam que nenhuma criança astuta faça um comentário impróprio. Nestas circunstâncias, uma fachada de confiança, mistério, decoro e rituais majestosos servem para preservar uma longa e frágil cadeia de crenças.

O dinheiro não é uma coisa
Agora vamos eliminar uma ilusão fundamental para a magia que envolve o dinheiro: O dinheiro não é uma coisa.

Grande parte da história atesta que o dinheiro decididamente parece ser uma coisa, ou melhor dizendo, uma variedade incrível de coisas (veja o quadro a seguir). Sem sequer mencionar as formas de dinheiro que prevaleceram nos últimos séculos, como o papel moeda, o ouro, a prata, o bronze, Glyn Davies criou um abecedário completo “Amber, Beads, Cowries, Drums”… [ mbar, Búzios, Contas], com objetos que já foram símbolos de valor, incluindo Tambores, Ovos, Plumas, Gongos, Enxadas, Marfim, Jade, Chaleiras, Couro, Tapetes, Pregos, Bois, Porcos, Quartzo, Arroz, Sal, Dedais, até Zappozats, [machados decorados].96

Do menor ao maior
A natureza dos objetos usados como dinheiro mudou, e não só isso, o tamanho dos objetos também mudou. Provavelmente, as menores moedas foram as de Lidia, onde, segundo Heródoto foi inventada a moeda “moderna” em 687 a.C. As de menor valor rondavam os 0,14 grama (um quinzeavo do peso do centavo de dólar atual) e eram fabricadas em electrum, uma liga natural de ouro e prata.

A moeda mais pesada de que se tem registro é, sem dúvida, a da ilha Yap, do arquipélago das Carolinas, na Micronésia. Eram gigantescos blocos arredondados de quase dois metros de diâmetro, extraídos de uma rocha calcária especial de ilhas distantes cerca de setecentos quilômetros. Era uma moeda “de macho”, usada pelos homens nas cerimônias sem movê-las do seu lugar (as mulheres usavam moedas mais práticas: colares de mexilhões).

É interessante como um simples experimento da imaginação pode tirar a aura de dinheiro de qualquer destes objetos, ou de todos eles. Suponha que você está só em uma ilha deserta e tenha no seu bolso, por exemplo, uma faca. Na ilha, ela serviria para as mesmas coisas de sempre. Agora imaginemos que você tenha consigo US$1 milhão em qualquer forma que seja: em dinheiro, cheques, cartões de crédito, lingotes de ouro, Francos Suíços ou em qualquer dos objetos do abecedário de moedas de Glyn Davies. Não importa qual você escolher, na ilha esse dinheiro vira papel, plástico, metal, contas, ou o que for, mas deixa de ser dinheiro. Daí vem a dificuldade que os exploradores de terras desconhecidas tinham na hora de escolher um tipo de moeda para levar em suas viagens (veja o quadro a seguir).

O dinheiro de Stanley
“Quando em 1871 Stanley se dispôs a encontrar Livingstone na África, levou consigo três tipos de ‘dinheiro’: arames, tecidos e contas, porque , no seu entender, era isso o que os africanos iriam fazer com ouro, prata ou cobre vindos de Londres. Porém, depois de arrastar para cima e para baixo por metade do continente por duzentos carregadores, ele não usou muito desse seu dinheiro – se é que se pode chamar assim – ele acabou recorrendo a outra moeda do século XIX: as balas.”97

Para ser mais preciso, Stanley levou consigo artigos diversos da Índia e da América que, postos um ao lado do outro, somariam quase 25.000 metros, 22 bolsas com onze variedades diferentes de contas e cerca de 150 quilos de arame. Ao final, Stanley deixou para Livingstone em Ujiji em torno de 450 quilos de contas e todo o arame, que ninguém quis comprar. Fora isto, ele havia levado um grande carregamento de munição que ele usou para balear os animais e humanos que não se dispuseram a cooperar com seu projeto.98

Diversos eventos ocorridos nas últimas décadas nos revelam a natureza imaterial do dinheiro. Em 1971, os Estados Unidos deixaram de definir o valor do dólar em função do preço do ouro. Desde então, o dólar representa a promessa do governo dos Estados Unidos de reembolsar a quem apresente um dólar… outro dólar. Quando os EUA convertiam o dólar por uma quantidade fixa de ouro, era mais fácil crer que ele tinha certo valor objetivo, agora que eles abandonaram a equivalência dólar-ouro, ficou mais difícil este auto-engano.

Outra analogia entre dinheiro e magia: nenhum mágico conclui sua apresentação sem fazer desaparecer algo. O dinheiro fez este truque de maneira bastante particular. Num lugar distante há muito tempo, quando o dinheiro era na maioria das vezes um montão de moedas de ouro e prata, os bancos começaram a emitir pedaços de papel que informavam onde o metal estava guardado. O passo seguinte dessa magia vem sendo realizado faz tempo. A grande maioria das nossas notas se desmaterializou, transformando-se em bits binários nos computadores dos nossos banqueiros, corretoras ou outras instituições financeiras, e está sendo seriamente debatida a possibilidade de que em pouco tempo tudo passe a pertencer ao mundo virtual. Vamos precisar esperar até a última nota de dinheiro desaparecer num grande bolso virtual para perceber a verdadeira natureza imaterial do dinheiro?

Uma definição funcional do dinheiro

Neste ponto nossa definição funcional do dinheiro pode ser muito simples:

O dinheiro é um acordo entre os integrantes de uma comunidade com o fim de usar algo como meio de pagamento.

Cada um dos termos destacados em negrito nesta definição é essencial. Visto como um acordo, o dinheiro tem muito em comum com outros contratos sociais, como os partidos políticos, a nacionalidade, ou o casamento. São construções reais, embora só existam na mente das pessoas. O contrato do dinheiro pode ser pactuado de maneira formal ou informal, em liberdade ou sob pressão, conscientemente ou inconscientemente. Mais adiante neste capítulo descreverei em que condições ocorre o contrato do dinheiro no mundo contemporâneo.

O dinheiro como acordo só tem validade dentro de uma comunidade. Algumas moedas funcionam unicamente dentro de um grupo reduzido de amigos (como as fichas usadas nos jogos de cartas), ou por um determinado período (por exemplo o cigarro para os soldados na frente de combate), ou em uma nação (como a maioria das moedas nacionais “normais” que existem atualmente). Essa comunidade pode ser o mundo inteiro (como é o caso do dólar dos Estados Unidos, enquanto ele for aceito como moeda de reserva) ou um grupo não geográfico (os usuários da Internet, por exemplo).

Por último, a função chave que transforma o objeto escolhido em moeda é ele servir como meio de pagamento. Note que usei o termo “meio de pagamento” e não “meio de intercâmbio”, de significado mais circunscrito (veja o quadro a seguir). A nuance é útil para incluir não só as transações comerciais, mas as que têm propósitos relacionados com rituais ou hábitos. Afinal, foi só na cultura ocidental moderna que se deu prioridade absoluta aos intercâmbios comerciais, negligenciando outras finalidades dos pagamentos.

Meio de pagamento versus meio de intercâmbio
Jonathan Williams, curador do Departamento de Moedas e Medalhas do Museu Britânico esclarece: “É possível afirmar que a cultura ocidental e seus sistemas monetários longe de serem “normais” são na verdade uma anomalia histórica, tendo em vista a fixação no aspecto comercial das coisas. Partindo deste princípio, seria um erro maior ainda os ocidentais interpretarem que os outros sistemas monetários são uma versão mais primitiva do sistema deles”.

Ele dá como exemplo o uso de tecidos como moeda na tribo lele no Congo, até meados do século XX . Supunha-se que pagar com determinados tecidos feitos em ráfia fortalecia ou restaurava os laços sociais entre os lele. Entre outras coisas, este meio era usado para pagar as taxas cobradas pela iniciação em grupos religiosos, deveres relacionados ao matrimônio, recompensas para mulheres após um parto, reparações por lutas ou feridas causadas a outros, ou render tributos a chefes. Além disto, a mesma moeda de tecido podia ser usada para pagamentos de mercadorias, mas esta função de meio para trocas era considerada marginal, em comparação aos outros usos sociais. 99

Além disto, atualmente o dinheiro tende a desempenhar algumas outras funções, como unidade contábil, reserva de valor, instrumento para a especulação, etc. Porém, para o propósito deste livro, essas funções são consideradas secundárias, comparativamente, tendo em vista que existiram moedas perfeitamente eficazes que não desempenhavam algumas ou todas estas outras funções.

Resumindo: para conferir a “magia” do dinheiro a uma “coisa” basta que uma comunidade concorde em usar esta coisa como meio de pagamento.

De onde vem o poder do dinheiro

Além de conferir magia ao dinheiro, nós o dotamos de poder. Marcel Proust observou que “Os objetos materiais em si não têm poder, mas temos o costume de lhes atribuir […]”.100 E James Buchan descreveu com eloquência a razão pela qual fazemos isto: “A diferença entre uma palavra e uma cédula é que a cédula sempre simbolizou e simbolizará coisas diferentes para pessoas diferentes: pode ser que para uma pessoa ela signifique um trago em um bar, para outra uma aposta em uma corrida de cavalos, para uma terceira um anel de diamantes, um ato de caridade para uma quarta, uma fiança para uma quinta e para a sexta simplesmente a possibilidade de ter conforto e segurança. Porque o dinheiro é desejo congelado. […] esse processo de desejo e imaginação, que se inicia e se conclui um milhão de vezes por segundo, é o motor da nossa civilização. […] Pois os objetos do desejo humano são ilimitados, ou, estão limitados unicamente pela nossa imaginação, o que da no mesmo”.101

Muda o dinheiro, muda o poder
O dinheiro é, pois, muito mais que um assunto técnico. Sempre que se aceita uma moeda em uma comunidade, está se estabelecendo nela implicitamente um acordo de poder. Quando os sacerdotes ou sacerdotisas estavam no poder, eram os templos que emitiam dinheiro. Quando os reis dominavam, o próprio Aristóteles atribuía a eles o “direito soberano a emitir uma moeda”. Na Era Industrial, os Estados nacionais se converteram no protótipo do poder, e por esta razão automaticamente passaram a predominar as moedas nacionais.

Atualmente, o poder dos Estados nacionais está diminuindo, portanto não deveria nos surpreender o surgimento de moedas não nacionais. Algumas pessoas ainda supõem que só existe um tipo de dinheiro possível no mundo moderno: a moeda nacional comum, em forma de notas ou moedas. O primeiro truque do mágico com relação ao dinheiro é nos fazer crer que para gerá-lo precisamos da ajuda dele, do mágico. Mas isto é totalmente falso. Hoje, como no passado, coexistem diferentes formas de dinheiro. As milhas que as companhias aéreas dão aos clientes habituais ou o dinheiro virtual da Internet, para começar, são alguns exemplos dos tipos de moedas emitidas por empresas que podem aparecer na Era da Informação. No próximo capítulo eu apresento outros exemplos.

Antes de explorar estas moedas novas, menos comuns, precisamos de uma base firme para poder comparar as características das novas moedas com as principais características de todas as moedas nacionais tradicionais, e examinar os efeitos sociais que elas tendem a gerar.

O dinheiro de hoje
Todos os sistemas monetários servem para facilitar intercâmbios entre pessoas. Sempre que um sistema financeiro é inventado, o extraordinário poder estimulante do dinheiro é usado, invariavelmente, para uma série de objetivos (algumas vezes inconscientes) que vão desde o prestígio dos deuses ou do governante de plantão, até motivações socioeconômicas coletivas.

As principais características do sistema atual foram reunidas na Inglaterra pré-vitoriana, pouco antes da Revolução Industrial, deixando como legado o sistema monetário que prevalece atualmente. Ele parece responder uma pergunta hipotética feita pelas pessoas que o arquitetaram: Como podemos criar um sistema monetário que fortaleça nosso Estado nacional e concentre recursos para permitir um desenvolvimento industrial vigoroso, sistemático e competitivo? Mesmo que os criadores do nosso sistema nunca tenham se feito essa pergunta, ele demonstrou ser muito eficaz para estes objetivos. Todos os países do mundo, qualquer que seja seu nível de desenvolvimento ou sua orientação política, adotaram este construto pré-vitoriano. Até os países comunistas reproduziram todas as suas características principais, com exceção de os bancos se tornarem estatais, em vez de privados, o que na prática não resultou em vantagens.

Quatro características chave desta arquitetura
Todas as moedas da Era Industrial têm em comum quatro características que se desenvolveram gradualmente e passaram a ser consideradas inquestionáveis pela primeira vez na Inglaterra entre os séculos XVII e começo do XVIII. Não é que o sistema monetário atual tenha sido inventado por um grupo de ingleses conspiradores em uma sala escura e enfumaçada, o que houve foi uma evolução paulatina nos hábitos de pagamento e práticas bancárias. Além disto, ocorreram mudanças significativas nas formas de pensar, bem como crises coletivas, como a necessidade de financiar guerras ou reações políticas ante a Bolha do Pacífico Sul na década de 1720. Esta combinação de escolhas mais ou menos conscientes feitas pela elite governante e pelas massas moldou um sistema muito afinado com o zeitgeist102 pré-vitoriano inglês; com as prioridades e a mentalidade de um país insular prestes a expandir seu império no mundo todo.

Muitos aspectos do sistema monetário atual remontam aos empréstimos dos ourives medievais ou aos bancos renascentistas da Toscana ou da Lombardia. Apesar disto, muitas destas tradições consagradas foram deixadas de lado e substituídas por outras novas quando não se ajustavam a esse zeitgeist. Por exemplo, a cobrança de juros, que havia estado proibida por razões morais e legais durante mais de 20 séculos, se converteu repentinamente em uma prática normal e aceita.

Embora as tecnologias de pagamento e bancárias (isto é: como funcionamos) foram mudando e melhorando significativamente, os objetivos fundamentais do sistema (isto é: por que funcionamento) parecem não ter sido revisados desde a Inglaterra vitoriana. Do ponto de vista dos objetivos do sistema monetário, o que nos impulsiona hoje ainda é o mesmo motor tão eficaz da Revolução Industrial.

Nosso sistema “normal” ainda tem quatro características chave que continuam não sendo questionadas: Tipicamente, o dinheiro 1) depende de um Estado nacional geograficamente delimitado e 2) é fiduciário, isto é, criado do nada, mediante 3) dívida bancária a troco do pagamento de 4) juros.

Isto pode parecer óbvio, trivial, até. Mas as consequências de cada uma destas características estão bem menos evidentes. Questionando estes pressupostos podem cair várias fichas. Repassemos brevemente cada um deles.

Moedas nacionais
Hoje é difícil imaginar outro tipo de moeda que não seja a emitida por um país, ou, no caso do euro, por um grupo de países. Mas é bom lembrar que o conceito de estado-nação surgiu faz apenas um par de séculos.103 A grande maioria das moedas que existiram na história foram, de fato, emissões privadas feitas por algum soberano ou alguma outra autoridade local.

Porém, a criação de uma moeda nacional é uma das ferramentas mais poderosas para fomentar consciência nacional. Ela torna evidente na vida cotidiana fronteiras, que do contrário só podem ser vistas nos atlas. Um exemplo recente: após a dissolução da União Soviética, um dos primeiros atos das novas repúblicas foi emitir moedas próprias. “Uma moeda comum resulta em um sistema de informação compartilhada, de modo que as partes podem medir e comparar o que sai e o que entra.”104 Usar uma mesma moeda gera um vínculo invisível, mas muito eficaz, entre todos os setores da sociedade, e traça uma fronteira de informação, entre o “nós” e o “eles”. E da mesma forma, um dos objetivos do euro – a moeda única que substituiu oficialmente às moedas nacionais de onze países Europeus em janeiro de 1999 – é criar uma consciência Européia mais unificada.

Hoje há moedas nacionais em toda parte. Mas não devemos esquecer que mesmo nesses poucos séculos de moedas nacionais, sempre houve uma moeda transnacional, disponível para o comércio global: o ouro. A única exceção ocorreu nos últimos 25 anos, aproximadamente, quando uma moeda nacional – o dólar dos Estados Unidos – se converteu na moeda mundial. Este ordenamento teve sérias consequências negativas para todos os envolvidos, inclusive para os Estados Unidos.

Por último, as comunidades não geográficas que estão surgindo, como a Internet, sinalizam grandes mudanças no que se refere à moeda transnacional. Veremos este assunto mais adiante nos capítulos 4 e 8.

Dinheiro “fiduciário”
A simples pergunta “De onde vem o dinheiro?” nos remete ao mundo da magia. O dinheiro não só desaparece e reaparece, mas, muito literalmente, é criado do nada. Para compreender definitivamente este processo, é preciso ir além das aparências. À primeira vista, as moedas nacionais parecem vir das gráficas dos bancos centrais ou, no caso dos Estados Unidos, do Departamento do Tesouro, mas não é assim. O coelho não vem da cartola, para saber de onde ele sai, precisamos investigar a manga do mágico.

Se uma pessoa quer 100 dólares em dinheiro, o que faz? Vai ao banco e pede. Quem o atender – seja um funcionário ou um caixa automático –verifica o saldo da conta, se houver 100 dólares ou mais, debita esse valor e entrega o dinheiro. Se o saldo for insuficiente, a pessoa recebe um sorriso de desculpas ou alguma outra mensagem, mas não leva nada.

Na realidade, o dinheiro é o que há na conta bancária, porque a pessoa só receberá as notas se o saldo da conta for positivo. Assim, também, o Banco Central dá ao banco desta pessoa todas as notas que pedir, mas debitará da conta do banco o valor correspondente.

Então, de onde provém o dinheiro da conta bancária de uma pessoa? A maior parte das vezes, de algum depósito de salário ou de outra fonte de renda. Mas, de onde nosso empregador obtém tal dinheiro? Para usar a frase famosa do presidente Truman dos Estados Unidos: “Em última instância, de onde vem cada nota?”.

Dívida bancária
No capítulo 2 mencionei um fato que para alguns pode ser surpreendente. Todos os dólares, euros ou qualquer outra moeda nacional em circulação surgiram a partir de um empréstimo bancário. Por exemplo, se uma pessoa cumpre os pré-requisitos para obter uma hipoteca de US$100.000 para comprar uma casa, o banco faz um crédito em conta e literalmente cria US$100.000 do nada. Esta é a verdadeira origem do dinheiro. Os empréstimos bancários costumam ter como garantia uma propriedade, como uma casa, um automóvel ou uma garantia empresarial. Depois de obter o crédito, paga-se o vendedor da casa com um cheque, que ele depositará em sua conta bancária, e o dinheiro começará a circular infinitamente no sistema até que alguém devolva um empréstimo. Nesse ponto, o dinheiro se destrói e retorna ao vazio de onde foi originado (veja o quadro a seguir).

O nada no centro
O autor norte-americano Ayn Rand formulou esta pergunta: “Então, você pensa que o dinheiro é a origem de todo mal. Já se perguntou alguma vez qual é a origem de todo o dinheiro?”. Uma das diferenças principais entre a filosofia oriental e a ocidental é que no Oriente o vazio é a origem explícita de todas as coisas, enquanto no Ocidente sempre há um Deus, um Logos (o Verbo), uma Mônada (o Uno) como princípio originário e organizador.

Na verdade, no Ocidente foi ocultado o vazio que ocupa o centro do sistema monetário. Será esta uma das razões de seu poder hipnótico?

Por isto, o papel moeda é na realidade “a parte da dívida nacional sobre a qual não se paga juros”, conforme resumiu a Comissão Radcliffe do parlamento britânico.105 A este processo simples de criação do dinheiro foi dado o acertado nome de “fiat money”, (dinheiro “fiduciário”). Segundo o Genesis, as primeiras palavras pronunciadas por Deus foram “Fiat lux” (“Faça-se a luz” em latim). A oração seguinte diz: “E a luz se fez, e Ele viu que era boa”. Trata-se de uma função na verdade divina, de criar algo do nada (ex-nihilo) por meio do poder da palavra.

Não seria de se estranhar se na próxima vez que você for pedir respeitosamente um empréstimo você se sentir intimidado pelo banqueiro! Assim como o mágico precisa um lenço para agitar por cima da cartola ao tirar o coelho, o banqueiro tem um véu adicional. No processo de criação do dinheiro, nossa atenção será dirigida aos monótonos aspectos técnicos, como os mecanismos que fazem os bancos competirem pelos depósitos, os recolhimentos compulsórios e o papel da Reserva Federal no ajuste preciso das válvulas do sistema. Todos estes dispositivos têm, (como o lenço do mágico), um propósito perfeitamente válido: regular a quantidade de dinheiro fiduciário que cada banco é capaz de criar (isto é, o número de coelhos que podem ser tirados de cada cartola).

Um aspecto particularmente inventivo deste esquema – já presente na Inglaterra pré-vitoriana – é sua capacidade de possibilitar às sociedades resolver a aparente contradição entre o objetivos de criar e fortalecer os Estados nacionais e o de confiar o desenvolvimento à iniciativa privada e à concorrência. Esta característica facilitou o caminho necessário para dar ao sistema bancário como um todo o privilégio da emissão privada da moeda nacional (teoricamente, uma função pública) mantendo, ao mesmo tempo, a competição entre os bancos pelos depósitos dos clientes.

Jackson e McConnell resumiram em poucas palavras outro aspecto muito importante embutido no dinheiro “fiduciário”: “O valor do dinheiro criado a partir de uma dívida decorre da escassez dele em relação à sua utilidade”.106 em outras palavras, para que uma moeda fiduciária baseada em dívida bancária funcione, é preciso criar artificialmente e manter sistematicamente a escassez. Esta é uma das razões pelas quais o sistema monetário atual não se auto-regula e depende da intervenção ativa dos bancos centrais para conservar a escassez. Pode-se dizer, inclusive, que os bancos centrais competem entre si na preservação da escassez da sua moeda no âmbito internacional. Isto serve para sustentar a escassez e também o valor relativo das moedas.

Mais adiante veremos que além deste tipo de moeda, existem outros, denominados “sistemas de crédito mútuo”, que se auto-regulam mais que as moedas nacionais, e o valor delas é preservado pelos bens e serviços que elas representam dentro das comunidades que as aceitam. Estas moedas, podem se dar ao luxo de estarem disponíveis em quantidades suficientes, em lugar de precisarem de escassez artificial.107

Juro
A última característica óbvia que todas as moedas nacionais compartilham é o juro. Aqui novamente acreditamos que o juro é uma característica intrínseca do processo, esquecendo que não foi assim absolutamente na maior parte da história humana. Na verdade, as três escrituras sagradas (do judaísmo, do cristianismo e do islamismo) proibiam enfaticamente a usura, e a definiam como a cobrança de qualquer juro pelo dinheiro prestado. Atualmente, só os muçulmanos estão atentos a esta regra. Por momentos parece ter sido esquecido que, por exemplo, a Igreja Católica combateu o “pecado da usura” até o século XIX (veja o quadro a seguir).

Usura e religiões
Tecnicamente, o judaísmo só proibia a usura entre os judeus. “Do estrangeiro poderás exigir juros, porém do teu irmão não os exigirás, para que o Senhor teu Deus te abençoe em tudo a que puseres a mão, na terra para a qual vais para a possuíres” (Bíblia, Deuteronômio 23: 20). Isto permitiu que os judeus emprestassem com juros aos não judeus, o que era uma das razões de sua impopularidade na Idade Média.

O Islã condena o juro de forma mais generalizada: “Quando emprestardes algo com usura, para que vos aumente às expensas dos bens alheios, não aumentarão perante Deus” (Corão, Sura 30: 39).

Como a evolução da maior parte do mundo moderno foi influenciada, pelo cristianismo, é a mudança de rumo desta religião ao longo do tempo o que é relevante para nossos fins. A importância dada historicamente à usura nos ensinamentos da Igreja Católica só é comparável com a dada hoje a pecados sexuais e abortos. Foi, sem dúvida, um dos dogmas mais persistentes da Igreja. Clemente de Alexandria, um dos primeiros Padres da Igreja, explicou que “a lei proíbe que um irmão exerça a usura. E não considereis irmão só o que é nascido dos mesmos pais, mas também o que compartilha a raça e os sentimentos. […] Não acrediteis que este mandamento foi inspirado na filantropia”.

É realmente impressionante a repetição de concílios condenando esta prática como sendo um dos pecados mais desprezíveis: os concílios de Elvira (305-306 d. C.), Arles (314), Nice (325), Cartago (348), Tarragona (516), Aachen (789), Paris (829), Tours (1153), o Concílio Laterano (1179) e os de Lyon (1274) e Viena (1311). Este último foi ainda muito mais rigoroso que os anteriores: qualquer governante que não punisse criminalmente quem cometesse usura em seu distrito seria excomungado (ainda que ele próprio não tivesse incorrido nesse pecado). Como frequentemente esta prática era ocultada por diversos artifícios, os emprestadores eram obrigados a mostrar suas contas às autoridades eclesiásticas. O quinto Concílio Laterano (1512-1517) tornou a definir o pecado da usura como “a cobrança de qualquer juro sobre o dinheiro”.

Quem legalizou primeiro o juro no Ocidente foi Henrique VIII, em 1545, depois de romper com o Papa. Na Igreja Católica, a primeira vez que se questionou a doutrina original foi em 1822. Uma mulher de Lyon, na França, recebeu juros sobre o dinheiro que havia emprestado e a igreja passou a negar a ela a absolvição até que devolvesse os ganhos ilegais. O bispo Rhedon exigiu uma explicação das autoridades de Roma, que lhe responderam: “informamos que a demandante receberá uma resposta à sua pergunta no momento adequado […]. Enquanto isso, ela poderá receber a absolvição sacramental se estiver totalmente disposta a se submeter às instruções da Santa Sé”. Em 1830 houve uma segunda promessa de solução do problema, e mais tarde, em 1873, a Congregação Católica Romana para a Propagação da Fé emitiu uma terceira, mas elas nunca foram cumpridas. O pecado da usura não foi revogado oficialmente, mas deixaram que ele caísse no esquecimento. A Lei Canônica de 1917 (Cânon 1543), ainda vigente, obriga os bispos a realizarem investimentos: “assim como os administradores devem desempenhar sua função com a solicitude de um bom pai de família, eles devem investir o excedente das receitas da igreja em benefício da igreja”. Não se menciona o tema do juro. Porém, mais adiante se define a usura como a cobrança de juros excessivos.

Em 1985, Estelle e Mário Carota, dois católicos mexicanos, na esperança de proporcionar um alívio a países latino-americanos afetados pela crise da dívida dos anos 80, fizeram um pedido formal ao Vaticano para que esclarecesse sua posição frente à usura. Eles foram informados por nada menos que o Escritório da Congregação para a Doutrina da Fe, na ocasião sob a responsabilidade do Cardeal Ratzinger (o atual Papa Bento XVI), que a doutrina da usura nunca havia sido redefinida, isto é, não havia sofrido nenhuma mudança. Eles tentaram encontrar uma opinião abalizada entre jesuítas, agostinianos, dominicanos e salvatorianos. Eles consultaram, inclusive, em seminários no Terceiro Mundo, professores de Teologia Moral dedicados a lecionar Teologia da Justiça Econômica, mas não conseguiram descobrir alguém que lembrasse da esquecida Doutrina da Usura.

Os efeitos do juro
A característica menos compreendida das quatro é um conjunto de impactos que decorre da cobrança de juros sobre os empréstimos que criam o dinheiro apesar de esses efeitos sobre a sociedade serem generalizados e poderosos. Por isto, eles merecem uma análise mais detalhada. O funcionamento do juro no sistema monetário tem três consequências:

  1. indiretamente, o juro estimula a competição sistemática entre os participantes do sistema.
  2. O juro estimula de forma constante um crescimento econômico permanente, mesmo quando na verdade os níveis de vida permaneçam estancados.
  3. O juro concentra a riqueza fazendo uma grande maioria pagar a uma pequena minoria.

A seguir, explicaremos cada um desses pontos.

  1. Estímulo à competição
    O relato a seguir, originário da Austrália, ilustra o funcionamento do juro no nosso sistema e como ele fomenta a concorrência entre os usuários da moeda.

O décimo primeiro círculo
Era uma vez uma aldeia do interior onde se usava o escambo para todas as transações. Nos dias de feira, as pessoas iam e vinham com frangos, ovos, presuntos e pães nas mãos e negociavam durante um longo tempo, trocando mercadorias com seus compatriotas.

Nos períodos mais importantes, como na época das colheitas, ou quando se tinha que reparar um celeiro depois de uma tormenta, eles retomavam o costume da tradição antiga e ajudavam uns aos outros. Todos sabiam que em caso de problema, os outros ajudariam.

Num dia de feira, um estrangeiro calçado com sapatos negros reluzentes e um elegante chapéu branco se aproximou e observou a cena com um sorriso sarcástico. Quando viu um camponês correndo atrás de 6 frangos para ir trocá-los por um grande presunto, não pode evitar de soltar uma gargalhada: “Pobre gente”, disse, “tão primitiva”. A mulher do camponês escutou estas palavras e o desafiou perguntando: “O Sr. acha que é melhor com os frangos que meu marido?”. “Com os frangos não, mas tenho um jeito melhor de resolver esse problema”. “E qual?”, perguntou a mulher. “Vê aquela árvore ali em frente? Bom, vou ali esperar que um de vocês me traga um grande couro de vaca. Depois, diga para todas as famílias irem lá me ver e eu vou explicar uma maneira melhor”.
Quando lhe deram o couro de vaca, ele recortou círculos perfeitos, e marcou todos eles com um lindo selo. E ofereceu a cada família 10 círculos explicando que cada círculo representava o valor de um frango. Disse: “Agora podem negociar e comerciar com os círculos em lugar de usar os frangos ariscos”.

Seu argumento era convincente. O homem de sapatos brilhantes e chapéu imponente impressionou a todos.

A propósito… depois que todas as famílias receberam seus 10 círculos, o homem completou:

“Ah! …por falar nisso… dentro de um ano vou voltar e vou sentar debaixo desta mesma árvore. Quero que cada um dos senhores me devolva onze círculos. O décimo primeiro círculo será em recompensa pela melhoria que acabo de introduzir na vida dos senhores”. O camponês dos 6 frangos perguntou: “Como vamos conseguir o décimo primeiro círculo?”. “Já verão”, respondeu o homem, com um sorriso tranquilizador.


Se nesse ano a população e a produção anual desse lugar tivessem se mantido estáveis, o que teria acontecido? Lembrem que esse décimo primeiro círculo nunca foi recortado. Portanto, o resultado é que mesmo que todos fossem bem em seus negócios, uma em cada onze famílias teve que perder todos os seus círculos para que as outras tivessem o décimo primeiro.

A partir de então, quando uma tormenta ameaçava a colheita de uma das famílias, as pessoas já não eram mais tão generosas na hora de oferecerem tempo umas para as outras, e não ajudavam a recolher a produção antes de que viesse um desastre. Embora fosse mais prático usar círculos no dia da feira, ao invés de frangos, este novo jogo tinha o efeito indesejado de refrear muito a cooperação espontânea tradicional, gerando, no lugar dela uma fúria competitiva sistêmica.

É assim que o sistema monetário atual coloca as pessoas umas contra as outras. O relato “O Décimo Primeiro Círculo” isola o papel que o juro desempenha na produção do dinheiro, e o impacto dele sobre os participantes.108

Quando o banco credita um valor na sua conta concedendo um empréstimo hipotecário de US$100.000, ele cria só a quantia chamada principal. Porém, ele espera que em 20 anos mais ou menos, você devolva US$200.000 ou você perde sua casa. O valor correspondente aos juros o banco não cria, ele espera que você vá à luta, batalhar contra todo mundo para voltar a ele com os US$100.000 que faltam. Como todos os bancos operam exatamente da mesma forma, para dar-nos estes US$100.000 o sistema faz com que alguns participantes quebrem. Resumindo: só se paga juros de um empréstimo, usando o principal de outra pessoa.

Em outras palavras, o dispositivo usado para criar a escassez indispensável para o funcionamento de um sistema baseado em dívida bancária implica haver competição por um dinheiro que não foi criado, e pune com a falência os que não atingem o objetivo.

As decisões dos bancos centrais sobre a taxa de juros nos chamam a atenção entre outras cosias porque o custo adicional causado por uma taxa maior produz automaticamente um aumento proporcional de falências num futuro próximo. Isto nos remete à época em que os altos sacerdotes decidiam se iriam sacrificar aos deuses uma cabra ou um primogênito. Em um nível mais baixo da escala, quando os bancos analisam nossa conta bancária, o propósito deles é verificar se somos capazes de competir e vencer outros jogadores (ou seja, tirar dos outros algo que nunca foi criado).

O que é o natural, a competição ou a cooperação?
Kinji Imanishi, professor de bio-sociologia da Universidade de Kyoto, demonstrou que a visão darwiniana da natureza como luta pela sobrevivência era totalmente cega em relação aos casos muito mais frequentes de co-evolução, simbiose, desenvolvimento compartilhado e coexistência harmoniosa que prevalecem em todos os campos. Nem o corpo humano consegue sobreviver muito tempo sem a colaboração simbiótica de bilhões de microorganismos no trato digestivo.109

Elisabet Sahtouris, especialista em biologia da evolução, indica que a conduta predominantemente competitiva é uma característica essencial das espécies jovens durante suas primeiras incursões no mundo. Por outro lado, em sistemas maduros como um velho bosque, a competição pela luz é equilibrada por um intenso grau de cooperação entre todas as espécies. E invariavelmente, desaparecem as que não aprendem a cooperar com as espécies das quais são interdependentes.110


O sistema das nossas moedas atuais é tendencioso quanto à competição. Por isto precisamos de sistemas de moedas complementares (que descreveremos a seguir), que equilibrem esta tendência incentivando a cooperação.

Resumindo, o sistema monetário atual nos obriga a contrair uma dívida coletiva, e a competir em nossa comunidade, pelos instrumentos que usamos só para fazer trocas. Não é de se estranhar que se diga que “a coisa está feia”, e que a observação de Darwin sobre “sobrevivência do mais adaptado” tenha sido aceita prontamente como uma verdade evidente pelos ingleses do século XIX, assim como por todas as sociedades que aderiram, sem objeções, aos pressupostos do nosso atual sistema de moedas. Felizmente já existe, hoje, uma grande quantidade de provas que dão sustentação a interpretações menos cruéis do “mundo natural” (veja o quadro ao lado).

  1. Necessidade de crescimento permanente
    A principal premissa simplificadora nos “Onze Círculos” é que tudo seguirá igual até o ano seguinte. Na realidade, não vivemos em um mundo no qual a população, a produção ou dinheiro em circulação tenham crescimento zero. No mundo real, todas estas variáveis costumam crescer em certa medida, e o que o sistema monetário faz é simplesmente se antecipar para se apossar do primeiro fruto deste crescimento para o pagamento dos juros. Também neste aspecto, o sistema atual tem precedentes de caráter religiosos esquecidos há muito tempo. Em muitas sociedades antigas, o “primeiro fruto da colheita” era sacrificado como oferenda aos deuses.

Por causa desta dinâmica é mais difícil perceber o que acontece na realidade do que no conto australiano. Mas de fato, no mundo material, o juro composto indefinidamente é uma impossibilidade matemática (veja o quadro ao lado).
O centavo de José
ou a inviabilidade matemática do juro composto
O juro composto indefinidamente no mundo real é uma impossibilidade matemática. Por exemplo, se José tivesse investido US$0,01 com um juro composto de 4% anuais desde o nascimento de Jesus Cristo até a independência dos Estados Unidos, seu valor teria atingido o de uma bola de ouro com o peso equivalente à metade do planeta Terra.111 Atualmente, teria o valor de 2252 bolas de ouro com o peso da Terra. Com um juro composto de 5%, no ano 2002 o centavo de José poderia comprar 470 bilhões de bolas de ouro com o peso da Terra!!!

Desta perspectiva dinâmica, mesmo que o nível de vida real permaneça estancado, o sistema monetário é como um a esteira rolante, ele exige um crescimento econômico contínuo. A taxa de juro estabelece o nível de crescimento médio necessário para se ficar no mesmo lugar. Esta necessidade de crescimento perpétuo é outro fato da vida que tendemos a achar inevitável e indiscutível, e que, em geral, não associamos nem com o juro nem com o sistema de moedas atualmente em uso.

  1. Concentração de Riqueza
    Um terceiro efeito sistemático do juro na sociedade é a transferência continua de riqueza de uma grande maioria a uma pequena minoria. As pessoas e as organizações mais ricas são donas de ativos que rendem juros. Recebem uma renda permanente de qualquer pessoa que precise de um empréstimo para obter o meio de troca de que necessita. O melhor estudo sobre a transferência de riqueza de um grupo social a outro por meio dos juros foi realizado na Alemanha em 1982, quando as taxas de juros eram só 5,5%.112 Foram agrupados todos os alemães em 10 categorias de receitas compreendendo cada uma cerca de 2,5 milhões de domicílios ou unidades familiares. Durante aquele ano, as transferências entre estes 10 grupos constituíram um total bruto de DM270 bilhões em juros pagos e recebidos. Uma forma de representação cabal desse processo é um gráfico das transferências de juro líquidas (juro recebido menos juro pago) para cada uma dos 10 grupos de renda (veja a figura 3.1).

DM bilhões
Transferências líquidas de juros
Figura 3.1 Transferências líquidas de juros (em DM bilhões) para 10 grupos de aproximadamente 2,5 milhões de domicílios, Alemanha, 1982

A classe média (categorias 3 a 8) foi a que transferiu o maior volume de dinheiro na forma de juros; cada uma destas categorias contribuiu com cerca de DM5 bilhões para os 10% de domicílios mais ricos (categoria 10). Inclusive os domicílios com menos renda (categoria 1, que no geral não têm acesso fácil a crédito) transferiram em juros no ano DM1,8 bilhão para o grupo mais abastado. O efeito líquido foi que os 10% mais ricos das unidades familiares receberam nesse ano uma transferência líquida de DM34,2 bilhões de marcos alemães em juros do resto da sociedade.

Este gráfico mostra com clareza a transferência sistemática de dinheiro dos 80% mais pobres da população aos 10% mais ricos. Esta transferência é consequência exclusivamente do sistema monetário em uso, ela independe totalmente do grau de inteligência ou de esforço no trabalho por parte dos indivíduos (argumento clássico para justificar as grandes diferenças na renda).

Não encontrei um estudo sobre transferências de juros entre os diferentes segmentos da sociedade dos Estados Unidos, mas o censo nos dá uma ideia da redistribuição total da renda nos últimos 20 anos. Os resultados totais são ainda mais graves que os da Alemanha. Lamentavelmente, os dados disponíveis nos Estados Unidos não permitem isolar o componente de transferência de juros na redistribuição da renda. Nos dados representados na figura 3.2, estão misturados os valores de juros pagos e recebidos com todas as demais formas de rendimento, como aluguéis e dividendos. A tese de John F. Kennedy segundo a qual “com a maré alta todos os barcos sobem” não se confirma com estes dados. Pode-se dizer no mínimo que os barcos não sobem todos o mesmo tanto.

Nos Estados Unidos, o único grupo que teve elevação da porcentagem de receitas totais nos últimos 20 anos é o dos 5% de unidades familiares mais ricas. Na prática, os 15% seguintes mantiveram o mesmo nível. Todos os demais grupos sofreram redução da parcela que lhes coube no bolo nacional. O gráfico das variações líquidas na renda de 1975 a 1995 (figura 3.2) esclarece este ponto definitivamente. Entre esses anos, a renda total dos domicílios nos Estados Unidos aumentou de US$2,7 trilhões para US$4,5 trilhões (em dólares constantes de 1995). Mas os benefícios deste crescimento não foram iguais para todos, porque os 5% mais ricos tiveram um aumento da renda média de espetaculares 54,1%, absorvendo, assim, a maior parte do novo crescimento, às custas, principalmente, dos 60% da população que pertencem às classes médias.

Variação percentual, 1975-95
20% inferiores
20% médios inferiores
20% médios
20% médios superiores
15% alta renda
5% elite

Figura 3.2 Variação porcentual (1975-1995) da participação dos domicílios nos Estados Unidos na renda nacional, segundo o grupo de renda (em dólares constantes)113

O resultado cumulativo deste processo explica o desequilíbrio extraordinário que há na distribuição da riqueza nos Estados Unidos. A riqueza financeira é, por definição, o acúmulo de rendimentos ao longo do tempo. O resultado final é a acentuação dos desequilíbrios na distribuição da riqueza. Por exemplo, “o 1% mais rico da população dos Estados Unidos tem atualmente mais riqueza pessoal que os 92% mais pobres juntos”.114 Esta concentração continua se processando em todos os níveis. Entre 1983 e 1989, os ativos do ínfimo grupo das 500 famílias mais endinheiradas dos Estados Unidos passaram de US$2,5 trilhões a US$5 trilhões.115 No âmbito mundial, os 447 bilionários existentes no planeta possuem, juntos, mais ativos financeiros que a soma da renda anual de cerca da metade da população da Terra.116

Atualmente, os três bilionários mais ricos do mundo têm uma riqueza maior que o PIB dos 48 países mais pobres juntos.117 E segundo se estima, por volta de 2005, 60% do poder aquisitivo dos Estados Unidos estará em mãos dos milionários.

O panorama geral da nossa realidade
O evolucionista Steven Jay Gould chama de “Grande Assimetria” a notável capacidade que a evolução tem para criar, em média, um pouco mais do que ela destrói. A biosfera está criando complexidade e crescimento cumulativamente no sentido oposto da entropia na física. A espécie humana participa da “Grande Assimetria” por meio da economia.118

Neste esquema grandioso de evolução, o dinheiro é o sistema de informação através do qual o ser humano contribui para essa Grande Assimetria. Ele desempenha a função de um DNA social. A Idade Moderna criou um sistema de moedas que faz os indivíduos aderirem ao seu ideal de progresso econômico contínuo por meio de hierarquias, controle e centralização.

Alterações no DNA têm um papel vital, embora invisível a olho nu, nas mutações e evoluções. De forma similar, as mudanças no dinheiro podem reconfigurar profundamente os valores e prioridades do mundo pós-industrial pós-moderno.

Terá sido a preocupação com a justiça social e com a estabilidade o que motivou as três religiões mais importantes (judaísmo, cristianismo e islamismo) a proibirem unanimemente a cobrança de juros? É intrigante pensar que depois que o juro se tornou legal oficialmente, quase todos os países perceberam a necessidade de criar esquemas para redistribuir renda, neutralizando pelo menos em parte o processo de concentração. Alguns destes esquemas, como o sistema de previdência social e a tributação progressiva, estão sendo cada vez mais criticados por sua ineficácia. Será que a culpa é da excessiva eficácia do atual sistema das nossas moedas ou é dos esquemas de redistribuição? Ou as duas coisas?

E agora?
Os três efeitos colaterais dos juros – a competição; a necessidade de crescimento permanente; e a concentração da riqueza – são os motores ocultos que nos transportaram para a Revolução Industrial. Com esses motores, também, pudemos chegar até aqui. Por isto, podemos atribuir indiretamente aos efeitos ocultos do juro (esta característica aparentemente banal do sistema das nossas moedas atuais), o que a Idade Moderna nos trouxe de melhor e de pior.

É cada vez mais consenso que a Era Industrial está chegando ao fim. Começamos a navegar nas águas ignotas da Era da Informação. Curiosamente, em uma dúzia de países de todo o mundo, estão se multiplicando experimentos monetários despercebidos pelos meios de comunicação dominantes e pelas universidades. Do meu ponto de vista, estas inovações oferecem possibilidades realistas de correção gradual dos excessos e desequilíbrios do sistema de moedas atual, sem revoluções nem violência. Mais importante ainda é que, atuando paralelamente ao sistema dominante, das moedas nacionais, estas moedas complementares novas criam prosperidade, tanto financeira como social. Além disto, elas já demonstraram que podem fazer frente a alguns dos nossos problemas sociais mais urgentes, sem recorrer a impostos nem regulamentação. Não é coincidência que estas novas moedas em geral não tenham as quatro características óbvias das moedas nacionais que acabo de descrever. Por exemplo, concretamente, elas não envolvem juros.

Vale lembrar a advertência de John F. Kennedy:
Os que tornam impossível a revolução pacífica tornarão inevitável a revolução violenta.

CAPÍTULO 4

Cyberesfera: a nova fronteira do dinheiro

• O dinheiro evoluiu de conchas a notas verdes, e das notas à combinação engenhosa de dígitos binários.
– Dee Hock, presidente da VISA, 1968119

• A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos.
– Marcel Proust

• Confusão é a palavra que inventamos para nos referir a uma ordem que ainda não entendemos.
– Henry Miller

Em menos de duas décadas, o que Daniel Bell chamou originalmente de “sociedade pós-industrial” agora é o que se chama comumente de Era da Informação, do Conhecimento ou das Comunicações. À medida que a informação se converte no nosso recurso fundamental, as consequências são significativas não só para a economia, mas para o próprio tecido da sociedade.

Vimos no capítulo 1 que nossos sistemas de informação mais antigos são sistemas monetários –lembre que até a escrita foi inventada num primeiro momento para registrar transações financeiras. Não surpreende, então, que o dinheiro esteja novamente na vanguarda do ciberespaço.

É previsível não só que ocorram mudanças fundamentais nos sistemas de pagamento com moedas convencionais, mas que, além disto, surjam novos tipos de dinheiro.

Sociedade Pós-industrial = Era do Conhecimento
Na década de 1940, primeiro presidente da IBM, Thomas Watson, previu que a demanda mundial seria de “talvez uns cinco computadores”. Em 1975, havia 50.000 em funcionamento, e em 1997, mais de 140 milhões.120 Há outros 170 milhões de computadores miniaturizados em uso hoje no mundo,121 bem como incontáveis “computadores invisíveis” nos aparelhos de uso cotidiano: um automóvel hoje tem mais poder de processamento de dados que a primeira nave espacial que pousou na Lua em 1969.

A razão para esta proliferação explosiva é simples: nunca se havia visto uma queda tão vertiginosa no preço de um produto industrial. Nos acostumamos com a ideia de que hoje um notebook de US$ 2000 tem mais capacidade de armazenamento de dados que os mainframes de 20 anos atrás, que custavam US$10 milhões. Se a eficiência e os custos dos carros tivessem evoluído no mesmo ritmo, hoje você poderia dirigir da costa do Atlântico ao Pacífico nos Estados Unidos com uma fração de uma gota de gasolina a um custo de menos de um dólar.

Quando a máquina a vapor foi introduzida, seu custo não era muito menor que o da energia hidráulica, e levou de 1790 a 1850 para que seu preço real fosse reduzido à metade.122 Da mesma forma, o preço da eletricidade levou de 1890 a 1930 para recuar a pouco mais da metade.123 Já o custo da capacidade da informática cai pela metade a cada 18 meses. Segundo a “lei de Moore” – que tem esse nome em homenagem ao presidente da Intel – a taxa de evolução na realidade é mais impressionante ainda: a cada 18 meses, a velocidade de processamento dobra, e o preço cai pela metade.

Só uma das facetas deste desenvolvimento – a Internet – é assunto, segundo se estima, de 12.000 artigos todos os meses, na imprensa dos Estados Unidos, apenas. Sem contar o que se escreve sobre a Internet na própria Internet. Nunca antes uma mudança tecnológica foi anunciada por uma avalanche de informação como essa. George Gilder, chama isto de “o maior rolo compressor tecnológico da história”. Bill Gates afirmou que “os benefícios e os problemas que aparecerão com a Revolução da Internet serão muito maiores que os surgidos com a revolução do PC”. Vale repetir que o que impulsiona a mudança são as enormes quedas nos custos e a velocidade, não só dos chips, mas das comunicações em geral (veja o quadro a seguir).

Comparações entre os custos das comunicações
• Enviar um documento de 42 páginas de Nova York a Tóquio por correio aéreo leva cerca de cinco dias e custa US$7,40.
• Você pode enviar mais rápido, mas a um custo muito maior: uma empresa de encomendas entrega em 24 horas por US$26,25; ou você pode mandar por fax em 31 minutos por US$28,85.
• Compare tudo isto com um e-mail, que envia o documento em dois minutos por 9,5 centavos de dólar. Não surpreende que o tráfego da Internet dobre a cada 100 dias!
• Em 1980, os fios de cobre das linhas telefônicas podiam transportar uma página de informação por segundo. Hoje um finíssimo filamento de fibra óptica pode transmitir 90.000 volumes em um segundo. A queda dos custos nas comunicações vai se acelerar ainda mais à medida que aumente a amplitude de banda disponível.
• As redes de transmissão de alta velocidade e de alta capacidade estão em vias de criar um “reino da banda larga”, no qual será eficiente do ponto de vista dos custo ficar on-line ininterruptamente, no trabalho e/ou em casa. Várias tecnologias competem com as fibras ópticas para gerar este novo mundo: incluindo os sistemas de transmissão de dados de alta velocidade com distribuição através da TV a cabo, as tecnologias de linhas digitais por assinatura (digital subscriber line, DSL), que possibilitam um drástico aumento da velocidade de transmissão usando os fios de telefone tradicionais de cobre, assim como os operadores via satélite e as redes sem fio. Toda esta concorrência significa que num futuro imediato o custo da transmissão de dados continuará diminuindo muito.

Embora seja saudável sermos céticos diante de tanto estardalhaço, pode ser que fique demonstrado mais adiante, que se trata de fato de uma verdadeira revolução. Bibliotecas inteiras estão sendo escritas acerca destas espetaculares tecnologias, mas aqui o foco será unicamente o que esta Revolução da Informação significa e a oportunidade que ela representa para a escolha dos nossos sistemas de moedas num futuro próximo.

Para facilitar a exploração desse tema, este capítulo foi organizado em cinco tópicos:
– A natureza da informação
– Consequências para a economia e a sociedade
– Consequências para o dinheiro
– Consequências para os bancos e instituições financeiras
– Sabedoria na Era da Informação?

A natureza da informação
Em cada um dos sistemas econômicos, a estrutura de poder foi arquitetada de modo a controlar algum recurso fundamental: a terra, a água, etc. A informação, matéria-prima da criação do conhecimento, é a próxima candidata. “No futuro mais longínquo que podemos vislumbrar, a informação será a protagonista da história econômica, terá o mesmo papel que já foi do trabalho físico, da pedra, do bronze, da terra, dos minerais, dos metais e da energia.”124

À medida que a informação vai se tornando esse recurso fundamental, suas características singulares vão configurando uma sociedade muito diferente. Para nossos fins, os melhores inventários feitos destas características foram os feitos por Harlan Cleveland125 e Howard Rheingold126:

  • A informação não se intercambia, se compartilha. Em se tratando de qualquer dos recursos básicos anteriores – desde uma ponta de lança de pedra – até a terra, de um cavalo a um barril de petróleo – se você comprou algo de mim, eu fiquei sem esse algo e você ficou com ele. Com a informação, ambas as partes conservam o objeto depois de uma troca. Por exemplo, a compra deste livro, de uma revista ou de uma chave de acesso a uma base de dados pode parecer um intercâmbio tradicional. Mas o que se compra ou vende e passa à propriedade do outro é o mecanismo de transmissão e não a informação em si. Quem vende conserva a mensagem entregue depois de compartilhá-la com o comprador. Quando usamos um software, não impedimos outros milhões de pessoas de o usarem também, como ocorria com os recursos fundamentais do passado. Por isto a informação é o que os economistas chamam de “bem não-rival”.

O catalisador mais poderoso da transformação não é a informação, mas a revolução das comunicações. Durante a última década, as comunicações eletrônicas do planeta quadruplicaram. Porém, na próxima década, segundo se estima, elas se multiplicarão novamente, só que desta vez por 45!127 A comunicação da informação multiplica, literalmente, o poder da informação. As telecomunicações tornaram a informação transportável: ela viaja através de redes eletrônicas a uma velocidade similar à da luz por um custo muito baixo. É da natureza da informação, portanto, que ela tenda a vazar. Quanto mais ela vaza, mais temos informação e mais pessoas têm também. Segredos comerciais, de estado, direitos de propriedade intelectual e confidencialidade são tentativas de reduzir artificialmente esta inclinação natural da informação a se infiltrar. E essas tentativas fracassam cada dia mais porque ninguém pode “possuir” a informação em si, no máximo os canais do sistema de entrega da informação. Para Cleveland, “a expressão ‘propriedade intelectual’ é um oximoro, uma contradição”,128 mas ele ainda não achou um advogado especializado em patentes que concorde com ele.

  • Decorre desses dois pontos anteriores que a informação se expande com o uso. Ela tende espontaneamente à abundância, não à escassez. E isto, em certo sentido, está, rapidamente, se tornando uma desvantagem: todos nos queixamos da sobrecarga de informação. O que segue sendo algo escasso e competitivo é a atenção das pessoas, assim como nossa capacidade de compreender a informação, transformá-la em conhecimento e usar toda a informação disponível.

Os manuais de economia convencionais descrevem a teoria da “concorrência perfeita” como sendo a possibilidade ideal. Ela se baseia nos seguintes pressupostos: as partes têm toda a informação necessária para otimizar uma dada compra; os custos de transação são nulos; e não há barreiras para a entrada de novos fornecedores. Nas transações do mundo real, raramente estas condições são satisfeitas. É interessante destacar que a cibereconomia pode se tornar o primeiro “mercado quase perfeito” em grande escala no mundo real. Sem dúvida, no ciberespaço a informação pode ser mais abundante e acessível a um maior número de pessoas. A Internet reduz os custos a níveis nunca antes atingidos antes, e atenua muitas das barreiras que dificultam a entrada de novos agentes econômicos, como o local, as necessidades de capital, etc. Nela, é tão fácil comparar antes de comprar que a rede mundial promete ser um mercado muito sensível em termos de preços. Ainda assim, o ambiente de mercado que está surgindo com a Era da Informação parece se ajustar perfeitamente à teoria econômica convencional.

  • Em outros aspectos importantes, a economia da informação inverte totalmente a teoria econômica tradicional. Uma ruptura é a tomada de consciência de que a informação e o conhecimento são os únicos fatores de produção não sujeitos à lei de rendimentos decrescentes, 129 na verdade, elas, pelo contrário, obedecem a uma lei de rendimentos crescentes.130 Na prática, isto significa que, à medida que a informação se torna mais acessível, seu valor aumenta. Isto foi batizado de “efeito fax”. Imagine que você comprou a primeira máquina de fax do mercado. Que valor tem? Na prática nenhum, porque você ainda não pode se comunicar com ninguém com a máquina. Mas a cada máquina de fax que seja comprada, o valor da nossa aumenta. É exatamente o oposto ao que afirma a economia tradicional, segundo a qual a escassez faz aumentar o valor (por exemplo, ouro ou diamantes, terra ou qualquer commodity quanto maior a escassez, maior o valor).

A figura 4.1 mostra a relação conceitual entre o recurso e seu uso em três tipos de sistemas diferentes: físicos, biológicos e de informação.

Figura 4.1 Relação entre os recursos e seu uso em sistemas físicos, biológicos e de informação

A teoria econômica vem se baseando na observação do universo físico/material, no qual o uso de um recurso faz com que ele diminua. O desafio é desenvolver um marco teórico que também leve em consideração realidades nas quais o uso faz com que o recurso ou se transforme (como nos sistemas biológicos) ou aumente (como nos sistemas de informação).

Consequências para a economia e para a sociedade
Quais as consequências destas características para uma sociedade que utiliza a informação como seu principal recurso econômico? Em primeiro lugar, este tipo de economia está literalmente se desmaterializando. Em 1996, Alan Greenspan destacou o seguinte: “Medida em toneladas, a produção atual dos Estados Unidos é a mesma que faz cem anos, enquanto nesse mesmo período seu PIB131 se multiplicou por 20”. Atualmente, o peso médio das exportações dos Estados Unidos no valor de um dólar caiu a menos da metade em relação a 1970. Inclusive no que se refere aos bens “manufaturados”, 75% de seu valor atual corresponde a serviços incluídos na sua produção (pesquisa, design, vendas, publicidade, etc.), muitos dos quais podem ser “des-localizados” para qualquer parte do planeta e podem ser enviados a outros lugares por linhas de transmissão de dados de alta velocidade. Este processo de desmaterialização, combinado com todos os demais fatores, dificulta muito mais a tarefa do Estado ou dos organismos reguladores encarregados de medir, tributar ou controlar o que acontece. Por exemplo, será mais difícil para o governo francês impedir que os produtos dos meios de comunicação dos Estados Unidos entrem na França aplicando barreiras à importação, já que estes produtos podem ser transmitidos por TV via satélite ou via Internet. Quando informação passa a ser recurso, diminuem as condições que os governos têm de intervir (ou – dependendo de como se analise a questão – de se intrometer) no trem de alta velocidade da transformação social que está vindo na nossa direção.

As forças positivas
Harlan Cleveland esclarece muito sucintamente as consequências positivas: “Uma sociedade que de repente se torna rica em matéria de informação não é necessariamente mais justa nem mais exploradora, nem mais limpa nem mais suja, feliz ou infeliz que as sociedades anteriores, industriais ou agrícolas”. Nada garante a qualidade, precisão, relevância e utilidade da informação: depende da pessoa que utilize este novo recurso dominante, da sua perspicácia e dos seus propósitos. O que sim, difere, é que as informações passam a ser mais acessíveis a mais pessoas, em todas as formas possíveis, que qualquer dos recursos que já foram fundamentais na história. Era próprio da natureza das coisas que as elites tivessem acesso aos recursos chave e as massas não. As características inerentes aos recursos materiais (os naturais e os produzidos pelo ser humano) possibilitaram o desenvolvimento de hierarquias de poder baseado no controle (das novas armas, dos recursos energéticos, dos meios de transporte, das rotas comerciais, dos mercados e, em especial, do conhecimento); hierarquias de influência baseada no segredo; hierarquias de classes baseadas na propriedade; hierarquias de privilégios baseadas em ter acesso antes que os demais a determinadas porções de terra ou a recursos especialmente valiosos; e hierarquias políticas baseadas na situação geográfica.

[aos revisores: Na versão argentina destaques em itálicos e negrito não coincidem inteiramente com os do original, porém, mais adiante a nota 132 esclarece que o itálico deste trecho é do autor citado.
Importante: CONFIRMAR OS ITALICOS E NEGRITOS DO LIVRO COMO UM TODO NA VERSAO EM INGLÊS]

Hoje, estes cinco fatores, bem como a discriminação estão cambaleando porque os velhos meios de controle estão ficando ineficazes. É cada vez mais difícil manter segredos, e está diminuindo a importância da propriedade, de chegar primeiro e da geografia para acessar, analisar e usar conhecimento e sabedoria – que são as verdadeiras moedas de curso legal valiosas da nossa época.

Na Era da Agricultura, a pobreza e a discriminação eram explicadas e justificadas pela escassez de terras cultiváveis. As mulheres e os forasteiros quase não tinham acesso a um recurso tão escasso. […] Na Era Industrial, a pobreza era atribuída à escassez de coisas: não havia minerais, alimentos, fibras e manufaturas em quantidade suficiente.

Pelo menos teoricamente, se a informação substitui bens materiais como recurso econômico ela deveria estimular:

  • A distribuição dos ganhos, mais que a concentração da riqueza (a informação é mais fácil de ser compartilhar que petróleo, ouro ou mesmo a água).
  • A maximização das opções mais que a supressão da diversidade (é mais difícil arregimentar pessoas informadas que desinformadas”).132

As forças negativas
Paradoxalmente, a dinâmica da economia da informação pode criar também a maior concentração de poder de todos os tempos nas mãos de uns poucos bilionários da Era da Informação: magnatas dos negócios que se assemelham muito pouco aos que criaram riqueza na Era Industrial. Algumas pessoas preveem a expansão de um ambiente econômico no qual “o vencedor leva tudo”.133 É notória a tendência a uma compensação cada vez mais exorbitante para as reduzidíssimas elites. Começou com os astros do cinema, do espetáculo e do esporte, e na última década alcançou os presidentes das empresas, empresários, advogados e médicos de alto desempenho. Trata-se de uma mudança estranha nos valores sociais, apenas, ou é, além disto, consequência de forças muito arraigadas na economia da informação?

Brian Arthur, economista especializado em redes, afirma que algumas corporações podem passar a exercer um monopólio quase inexpugnável devido às suas taxas marginais de retorno positivas, por exemplo, uma vez que um programa de computação começa a ser adotado como padrão em um setor, ele automaticamente tende a tirar o lugar dos concorrentes até capturar 100% do mercado. Um exemplo deste processo, que costuma ser citado é o domínio da Microsoft. Será que começou uma era na qual é mais fácil o surgimento de monopólios que nas economias industriais tradicionais? As legislações antitruste pensadas para a Era Industrial se tornaram ineficazes no ciberespaço?

Não será que esta euforia nas remunerações e os novos tipos de monopólio são só os últimos suspiros da Era Industrial? Isto é parecido ao que aconteceu com os tecelãos especializados no início da industrialização: quando a fiação a mão foi mecanizada, seus salários dispararam, mas foram derrubados em seguida, quando novas máquinas substituíram seu trabalho também. Isto é o que o economista Paul Krugman, do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), afirma que vai acontecer. Tomemos o caso dos atores ou atrizes mais cotados: a Mirage Entertainment Sciences descreve a si mesma como a primeira “agência de talentos pós-humanos”.134 Já está disponível a sua primeira “personificação sintética de uma atriz”, uma beleza loira de busto proeminente chamada Justine, criada com um programa de design gráfico chamado Life F/x. “podemos até enrugar um pouco sua pele para que pareça um tecido orgânico”, diz Ivan Gulas, o psicólogo clínico diplomado em Harvard encarregado de modelar a nova atriz para os propósitos de Hollywood. Os atores de hoje podem descobrir de um momento para o outro que estão competindo com Marilyn Monroe ou Humphrey Bogart, ou inclusive com uma sintetização “ideal” de vários dos melhores artistas de todos os tempos.

Técnicas similares estão começando a ser usadas em outros trabalhos muito bem pagos: por exemplo, robôs que realizam cirurgias de substituição de quadris, sistemas inteligentes que planejam testamentos ou elaboram declarações de impostos. Estão sendo implementadas as primeiras aplicações de redes neurais adaptativas bem sucedidas capazes de substituir um corretor de câmbio ou de títulos, porque “os humanos não conseguem acompanhar a alta velocidade desses sistemas que dependem de informação”.

Resumindo, ninguém deveria achar que vai ficar imune para sempre à obsolescência inerente à Era da Informação. Todos deveríamos estar interessados em uma sociedade viável para todos. Afinal, estamos dando os primeiros lances, apenas, no xadrez da nova Era da Informação global, e ninguém sabe realmente como será esta partida.

Eletricidade
Rádio
TV
Computadores Pessoais

Figura 4.2 Curva de adesão a novas tecnologias nos Estados Unidos
(Fonte: IBM)

Como ainda estamos nas primeiras etapas, e as consequências da Revolução da Informação têm duas tendências frontalmente opostas, qual será o resultado final? Sem dúvida, aqui há espaço para projetar nossos maiores sonhos e piores pesadelos. E faremos isso, em certa medida, no próximo capítulo. Isto faz lembrar o comentário bem-humorado de Samuel Beckett: “Tudo vai acabar bem, a não ser que aconteça algo previsto”.

Distribuição e venda no varejo
A Rede já está mudando totalmente a economia do gigantesco setor de distribuição e venda no varejo, que é, de longe, o setor que mais emprega. No ciberespaço, cada vez mais pessoas pesquisam, comparam e compram a preços de atacado, sem fazer outro esforço além de clicar. Em vez de uma economia de varejo com processos físicos, estamos rumando para uma economia de venda no atacado com processos digitais. Em outras palavras, o procedimento antigo consistia em transportar fisicamente um produto do produtor ao atacadista, deste ao varejista e finalmente ao consumidor. No novo sistema, o intermediário só lida com informação, ele a disponibiliza ao consumidor de forma palatável e depois comunica os pedidos ao produtor, que envia a mercadoria diretamente ao consumidor (o estudo de caso da Cendant, no capítulo 5, explica detalhadamente este processo). Isto não implica necessariamente a desaparição das pequenas operações personalizadas de venda no varejo (veja o quadro a seguir), mas com uma mudança destas, nada permanece igual. Os preços cobrados do consumidor, por exemplo, podem ser radicalmente diferentes.

Internet e o poder do pequeno
Internet não significa necessariamente que os mega-comerciantes cibernéticos vão tomar o poder. Ela possibilita, por exemplo, melhores condições para pequenas lojas especializadas concorrerem com as enormes cadeias do varejo. Um exemplo disso são os aparelhos de som de alta qualidade. Uma associação de pequenos comerciantes especializados em produtos de áudio de alta qualidade, a PARA135 (Professional Audio Retailer Association), usou a Internet para reconquistar o protagonismo na definição das novas tendências. Cooperando entre si, 300 membros da PARA criaram na Internet a base de dados comparativos mais sofisticada do mercado contendo todos os equipamentos disponíveis, assim como novas ferramentas para personalizar os sistemas segundo as necessidades do cliente, e também sistemas de treinamento contínuo on-line para os funcionários. As cadeias de grandes lojas são mais competitivas em termos de preços de produtos padronizados, aspecto no qual, precisamente, a Internet é invencível. Por outro lado, nem as cadeias nem os distribuidores da Internet podem dar informações de forma personalizada sobre um produto, o serviço ao cliente, as demonstrações e os serviços de assistência técnica que as pequenas lojas especializadas oferecem. A PARA está aproveitando a Internet para fomentar a cooperação entre seus membros e dar aos profissionais ferramentas melhores e cursos de aperfeiçoamento visando aumentar a capacidade para responder às necessidades específicas dos clientes. Desta maneira, se diferenciam ainda mais, tanto das grandes cadeias como dos distribuidores via Internet.

É um caso de Davi derrotando Golias graças a um melhor uso dos novos instrumentos?

Mais barato que no atacado?
O exemplo abaixo dá uma ideia do que vem por aí.136 Você pode comprar o game Turbo Blackjack, da Virtual Vegas em uma loja por US$ 29,95 ou baixar na Internet por US$ 2,95 (um décimo do valor “normal” no varejo) [aos revisores: no original aqui tem o número de footnote 140, mas a nota 139 está repetida, e a referência desapareceu no original em inglês, por isto, o número de nota que havia aqui foi suprimido, conforme indicação do autor por e-mail]. O presidente da Virtual Vegas, David Herschman, calculou que, mesmo com este preço tão reduzido na Internet, o lucro é maior via Internet que através das lojas. O valor recebido na venda de cada exemplar do game em CDRom por 29,95 dólares é repartido entre os varejistas e distribuidores, e paga custos de produção, embalagem e envio, comissões de vendedores e outras despesas. Depois de tudo isto, a Virtual Vegas recebe US$ 4,50, destes, Herschman destina uma parte à folha de pagamento e à infraestrutura com a qual controla os intermediários das distintas etapas de produção e distribuição. Por outro lado cada exemplar do game de 2,95 dólares pago em moeda cibernética e entregue através da Rede custa a ele só US$ 0,26: o lucro é de US$ 2,69 dólares. Ao preço da Internet muitas mais unidades são vendidas. Herschman resume a situação assim: “A margem de lucro na Internet é gigantesca. Fazemos o produto uma vez e […] podemos vendê-lo daqui até a eternidade”.

Mas o tema da redução dos custos não se esgota aqui: a Digital Equipment Corporation está em vias de lançar seu Millicent, um meio de pagamento que competirá com a CyberCoin, e que promete diminuir mais ainda os custos das transações via Internet: de US$ 0,26 a cerca de 0,1 centavo (sim, a um décimo de um centavo!). Outras companhias, como Citibank, Verifone e Microsoft, estão desenvolvendo produtos similares, o que assegura que estes custos se manterão realmente baixos.

“posso te ligar depois? Estou fazendo supermercado”

Ilustração do New Yorker: “Compras cibernéticas”.

Produtos novos?
Ainda assim, seria um erro considerar a cibereconomia apenas um showroom de atacadistas extraordinariamente vantajoso do ponto de vista dos custos, ou um “país” muito especial e em rápido crescimento para onde exportar produtos existentes. A cibereconomia promete, além do mais, possibilitar a criação de produtos totalmente diferentes. Por exemplo, as novas tecnologias de micropagamento já colocada no mercado pela CyberCash tornam interessante economicamente “desmembrar” produtos que sempre compramos como sendo uma unidade. Pode-se cobrar do consumidor um valor muito pequeno para dar a ele exatamente o que ele quer. Em lugar de comprar um livro de cozinha, uma revista, um CD ou até um jornal inteiro, você pode comprar por alguns centavos só as seções, artigos ou canções que realmente você quer.

A nova revolução de Gutenberg?
A empresa que pretende ser a vendedora número um de livros no mundo, a Amazon.com, não tem uma loja sequer. Ela começou a funcionar em 1994, e em 1996 suas vendas já atingiam US$ 16 milhões; passando a US$ 148 milhões em 1997, disparando em 1998 para a assombrosa soma de US$ 460 milhões. Ela oferece mais de dois milhões de títulos 24 horas por dia ao alcance de um clique. Algumas pessoas gostariam de extrapolar para sempre este tipo de tendência vertiginosa; em novembro de 1998, o valor da Amazon.com na bolsa era US$ 6,3 bilhões. Em 1998, a maior editora do planeta, a alemã Bertelsmann, decidiu comprar a divisão de Internet da Barnes & Nobles para entrar na briga eletrônica.

Apesar disto, a verdadeira revolução em matéria de livros na Internet ainda não apareceu no mercado. Foi patenteado um “livro eletrônico” de folhas finas, um “e-book” que parece um livro comum com algumas centenas de páginas em papel fino, mas cada página “inteligente” é controlada por um chip próprio e está coberta com milhões de partículas microscópicas de duas tonalidades. A “espinha” do livro contém os chips, a fonte de energia e os plugues de conexão.137 Diferentemente do que ocorre em uma tela de computador, pode-se virar de página de trás para frente e vice-versa, e lembrar onde se estava. É um sistema totalmente flexível e pode ser reutilizado indefinidamente. Neste livro eletrônico multiuso pode ser carregado qualquer conteúdo que se necessite e a resolução gráfica é melhor que a do texto que você está lendo. Ele vem em diferentes tamanhos e formatos: do tamanho de um jornal ao de uma edição de bolso, em material impermeável ou inclusive inquebrável para crianças. Você pode jogá-lo na mochila e ler no ônibus ou na praia (é mais resistente que o livro que está na sua mão).
Trata-se de do embrião de uma segunda revolução gutenberguiana. Todos podem se tornar autores e vender seu livro ao preço dos direitos de autor vigentes no momento. As livrarias poderiam ser convertidas em cafés onde as pessoas comparariam anotações e dicas sobre os sites mais interessantes com avaliações detalhadas sobre a infinita variedade de publicações disponíveis. Para os que preferem os bons e velhos livros de papel, um impressor-encadernador, no fundo da “livraria”, na agência dos correios ou numa gráfica de conveniência aberta 24 horas, pode inclusive preparar sob encomenda uma versão no formato desejado, com capa dura ou não, com letra grande ou pequena, e “o estoque” sempre vai ter o que o cliente pedir. A primeira demonstração pública de um livro “impresso sob encomenda” (print-on-demand) foi na Exposição de Livros de Chicago em 1998. Não leva mais de 5 minutos, entre o pedido e a entrega do livro e ele pode ser vendido ao mesmo preço que um livro publicado em série. Nestes 5 minutos, o livro é baixado, impresso e encadernado, e o resultado é um clone exato da edição normal.138 Estamos diante de outro pesadelo ou é um sonho? É outro exemplo de um setor (o editorial) afetado pela revolução da informação? Ou outro sinal da aurora de uma era que cumprirá a previsão de Cleveland, de mais possibilidades de escolha e democratização do acesso à informação como recurso básico?

Consequências para o dinheiro
No hall da Biblioteca de Ciência, Indústria e Negócios de Nova York se lê a seguinte inscrição: “Informação sobre o dinheiro se tornou quase tão importante como o próprio dinheiro”. A citação é de Walter Wriston, ex-presidente do Citibank. Ele deve saber. Sob seu comando e do seu sucessor, o Citibank se tornou o banco que mais investe em tecnologia informática de todos (US$ 1,75 bilhão em 1995).

O dinheiro foi um dos primeiros campos a ingressar na Era da Informação. Faz décadas que a maior parte das transações financeiras está computadorizada. É provável que a maioria do seu dinheiro esteja em um banco ou na conta de uma corretora de valores, ou seja, num computador em algum lugar. O desenvolvimento da cibereconomia significa simplesmente que outros aspectos da atividade econômica finalmente estão alcançando o dinheiro no ciberespaço.

Dinheiro novo
A verdadeira revolução de possibilidades desencadeada pela Era da Informação começará quando diferentes tipos de moeda sigam a trilha eletrônica pela qual as moedas nacionais estão avançando hoje com vigor. O Tesco Clubcard, no Reino Unido (veja o quadro a seguir) é um exemplo deste tipo de criatividade. Mas as fronteiras estão se dissipando mais ainda. Agora há linhas aéreas se tornando empresas de varejo (por exemplo, as milhas da British Airlines podem ser trocadas por vales para compras na Sainsbury) ou envolvidas com serviços telefônicos (por exemplo, os novos cartões Senator da Lufthansa servem não só para comprar passagens e manter um controle da milhagem dos seus clientes habituais, mas para pagar telefonemas, alugar automóveis e outros serviços para os passageiros). Companhias telefônicas atuam em sistemas de pagamento de varejo (por ex., os 1.200.000 celulares da France Telecom são usados para cobrar bens e serviços). A operadora irlandesa de telecomunicações faz mais dinheiro investindo o “float” – os saldos não usados dos cartões telefônicos – que com as chamadas efetuadas.139 A TV a cabo se transforma em redes de comércio eletrônico (o Canal Plus, na França, já oferece hoje este serviço, e em 2003 haverá, só na Europa, 29 milhões de “set-top boxes” [dispositivos para a comunicação interativa colocados sobre os aparelhos de TV que funcionam com smart cards], 10 vezes o total de terminais de vendas).140 Os smart cards Zambian já têm programas para 10 diferentes moedas. Todos os novos PCs produzidos no ano 2000 terão entrada para smart cards, e os novos smart cards utilizam a mesma plataforma Multos para possibilitar downloads por telefone nos cartões quando o cliente precisar, por exemplo, de um aplicativo do metrô de Paris, ou da companhia ferroviária que opera a linha Londres-Paris, um de programa para empréstimos da biblioteca pública local, pagamentos da lavanderia, dados sobre seguros de saúde ou o que for necessário para que ele se converta em um cartão telefônico utilizável na Itália.

O caso do varejista que se transformou em banqueiro: o Tesco Clubcard141
A Tesco, uma das maiores cadeias de varejo do Reino Unido, lançou o Tesco Clubcard, um programa de fidelidade extremamente bem sucedido que obrigou as rivais a imitá-lo e ajudou a empresa a superar sua concorrente, a Sainsbury, tornando a Tesco a varejista mais próspera do seu o país.

Cada vez que um membro do Tesco Clubcard gasta uma libra numa loja Tesco, ganha um “ponto”. Estes “pontos” são convertidos em vales ou cupons de produtos específicos. Isto fez a Tesco aumentar em um terço sua base de clientes no ano de 1998. Hoje, um de cada três domicílios do Reino Unido é membro do clube, e a revista Clubcard é a maior revista em termos de circulação na sua modalidade na Europa. Desde 1999, os membros recebem, também, uma “chave” para cada compra de 25 Libras, e com 100 chaves, passam a ter um desconto que pode chegar a 75% nas transações com Clubcard.

Um elemento essencial do Clubcard é o Financiamento Pessoal Tesco, que compete diretamente com os bancos tradicionais dando melhor atendimento ao cliente. Os 8,5 milhões de membros recebem comunicados trimestrais, há 100.000 variações personalizadas. A Tesco não cobra dos seus clientes por saques em dinheiro convencional dos 350 caixas automáticos em operação no Reino Unido. E em todas as lojas há folhetos e serviços telefônicos gratuitos para informações sobre outros produtos financeiros, como poupança, empréstimos, seguros, previdência privada e cartão VISA.

Já o Clubcard Plus, funciona como um cartão de banco em todos os sentidos, além de ser um “cartão de fidelidade”, com ele o cliente recebe dois pontos de Clubcard para cada Libra gasta (o dobro do benefício do cartão Clubcard padrão).

Resumindo, telefones celulares, TV a cabo, computadores, smart cards, moedas complementares e os sistemas de pagamento tradicionais começam a convergir e este processo está criando um mundo monetário novo.

Por que iríamos supor que um dos legados mais significativos da Era Industrial – a moedas nacionais –permaneceria imune às mudanças? Até banqueiros, como o presidente do Citibank, John Reed, concordam que “a atividade bancária vai se tornar um bit de um aplicativo dentro de uma rede inteligente”.142 A fusão do Citibank com a Travelers Insurance em 1998 é uma prova de que ele estava falando sério. E a integração dos programas de milhagem com os cartões de crédito baseados em moedas nacionais tradicionais mostra a tendência futura. Na verdade, 40% dessas milhas gratuitas hoje não são trocadas por voos, como no passado, por exemplo, na British Airlines, cerca de dois terços das milhas emitidas são resgatadas de alguma outra forma.

Consequências para os bancos e serviços financeiros
No capítulo 2 vimos que, da década de 1980 em adiante, os bancos se viram forçados a entrar em novas áreas de negócios, desempenhando funções totalmente distintas e enfrentando concorrentes diferentes. Hoje, em lugar de fazer dinheiro com o spread entre as poupanças dos clientes e os empréstimos para empresas, eles estão prestando “serviços financeiros”. É provável que suas maiores fontes de lucros sejam os cartões de crédito, o câmbio, os derivativos, a securitização (conversão de empréstimos em títulos), produtos especializados na área de seguros, ou outros “produtos financeiros” exóticos para pessoas físicas e jurídicas. Por isto, seus concorrentes agora – além dos outros bancos, caixas e financeiras – são corretoras como a Merrill Lynch Cash Management Accounts, as companhias de seguros, os fundos mútuos, os corretores de empréstimos hipotecários e as empresas de pagamentos de serviços, como a Automatic Data Processing (que em 1995 processou as folhas de pagamento de 18 milhões de trabalhadores nos Estados Unidos).

À medida que a Internet se expande, ela gera uma segunda onda de informatização que inclui os serviços de “Open Finance”. A definição do instituto de pesquisas Forrester Research para “Open Finance” é: “novos consumidores prósperos desfrutando do que há de melhor em serviços financeiros combinados com uma fácil movimentação eletrônica do dinheiro. Open Finance significa usar tecnologia para estender à maioria dos investidores os serviços financeiros de alta qualidade desfrutados pela elite”.143 Isto vai abrir toda uma série de novos questionamentos para todos nós, inclusive para as autoridades tributárias (veja o quadro a seguir).

Impostos no ciberespaço?
Com a Lei de Liberdade Tributária da Internet de outubro de 1998, o governo dos Estados Unidos declarou moratória de três anos para impostos de todas as transações via Internet. Apesar disto, mesmo quando esta moratória expirar, os problemas relacionados com incidência de impostos no ciberespaço nem de longe serão triviais:

  1. É possível que os países que cobrem impostos no ciberespaço percam a oportunidade de serem líderes na nova economia mundial.
  2. Quem tributa o que, quando um inglês compra algo de uma empresa da Índia e paga usando uma boa proteção criptográfica? Outro ponto tão crucial quanto é: se conseguirem cobrar impostos, como evitarão a dupla tributação?
  3. Privacidade e “tributabilidade” são duas faces da mesma moeda. Uma transação que pode ser localizada é fácil de ser tributada, mas elimina a privacidade. Se a privacidade for respeitada, dificulta-se o recolhimento de impostos. Este dilema estrutural não tem uma solução simples!
  4. Além disto, estima-se que um sexto da riqueza do planeta já está em “paraísos fiscais”.144 Com Open Finance estes mecanismos passam a estar ao alcance de uma população muito maior.

Creio que a solução definitiva é repensar os fundamentos da tributação. Na Era Industrial, tributava-se o trabalho, uma tributação contraproducente do ponto de vista do nível de emprego; tributava-se a renda pessoal, ferindo a privacidade; e o imposto sobre o valor agregado é uma tributação socialmente regressiva (quanto mais rico menor o percentual pago sobre a renda). Todas estas formas serão cada vez mais difíceis de definir e de arrecadar no ciberespaço.

Os impostos da Era do Conhecimento terão que ser os mais fáceis comparativamente de identificar e arrecadar, que ofereçam algum outro incentivo social ou vinculado à sustentabilidade, por exemplo, imposto sobre a contaminação e o uso da terra, sobre a energia ou qualquer outro recurso não renovável. Inclusive do ponto de vista da teoria econômica, este enfoque faz mais sentido, já que tais impostos tornam explícitos certos custos reais que o mercado atual não registra. Algumas nações que planejam a longo prazo, como a Holanda, já começaram a implantar esta mudança sistêmica em sua base tributável.

Outro ponto igualmente crítico é que a Internet também eliminará a proteção geográfica que a maioria das instituições financeiras parece considerar um fato imutável. A Internet começou claramente como um fenômeno dos Estados Unidos; mas por que os bancos ou financeiras suíças, do triângulo das Bermudas ou de Cingapura não deveriam prestar serviços de pagamento ou assessoria de investimento para todo o globo via Internet? Usando como indicadores os valores dos investimentos das instituições financeiras de todo o mundo em informática, vemos que atualmente as instituições financeiras européias investem anualmente mais que o conjunto dos bancos e instituições financeiras não bancárias dos Estados Unidos. Inclusive se prevê que em 2005, mesmo as concorrentes do resto do mundo superarão os gastos das instituições dos Estados Unidos (veja a figura 4.3). É provável que estes enormes investimentos se traduzam em uma presença mais agressiva na cibereconomia.

Outros
Europa
Entidades não bancárias dos Estados Unidos
Entidades bancárias dos Estados Unidos
Figura 4.3 Investimento anual em informática (em bilhões de dólares). Fonte: The Tower Group.

Além das instituições financeiras tradicionais, é provável que entre no jogo dos serviços financeiros todo um novo grupo incluindo, entre outras, grandes empresas de áreas adjacentes, como a DEC, IBM, British Airways, Tesco, Sainsbury145 ou Microsoft. Sem contar as empresas até então desconhecidas criadas exclusivamente para operar na Internet (por exemplo, Accutrade, eBroker, E*Trade e Datek).

Tudo isto vai decolar de fato em algum momento da primeira década do terceiro milênio, quando uma porcentagem significativa dos novos internautas abastados, que usam computadores desde crianças, chegar à idade de ganhar dinheiro. Mas até lá os primeiros a chegar já terão cercado o território do Open Finance e fincado suas marcas registradas.

Mais fundamental ainda, quanto ao Open Finance, é que as instituições que estarão à frente serão as que tiverem se posicionado para transferir valor via Internet e não apenas moedas nacionais. Por exemplo, será uma vantagem importante ter capacidade para gerir sem complicações moedas não tradicionais nos sistemas de pagamento, como complemento das nacionais. Os sistemas de pagamento que tentem operar exclusivamente com moedas nacionais estarão em desvantagem estrutural. Imagine, por exemplo, poder enviar um e-mail a uma filha no exterior, com alguns dólares e milhas para uma passagem aérea de volta. E pagar algo na Internet com uma mistura de dólares e corporate scrips ou moedas complementares.

Tudo isto pode soar estranho para os líderes do mercado atual, porém, como disse Eric Hoffer: Em tempos de mudança, quem estiver pronto para aprender herdará o mundo, e os que acham que sabem estarão maravilhosamente preparados para lidar com um mundo que terá deixado de existir.

Sabedoria na Era da Informação?
O advento da Era da Informação não tem só consequências positivas. A única certeza é que trará mudanças. Está comprovado que resistir às mudanças torna o processo mais traumático ainda no longo prazo. A estrutura de custos da Internet é tão incrivelmente vantajosa, que a onda será irresistível. Além disto, ela abarcará o mundo todo muito mais rapidamente que a Revolução Industrial.

É importante lembrar que a informação como recurso é só uma matéria-prima, como era um saco de carvão mineral na Era Industrial. Ela só se torna útil realmente quando transformada em conhecimento e tratada com sabedoria. Por isso é preciso definir as diferenças sutis porém cruciais entre os seguintes conceitos próximos: dado, informação, conhecimento e sabedoria.

Um bom ponto de partida é a pergunta de T.S.Eliot: Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação? A esta pergunta Harlan Cleveland adiciona: “Onde está a informação que perdemos nos dados?”.146

Dadas são observações não digeridas, sem contexto. Um exemplo de dados não processados é uma porção de números de telefone.

Informações são dados organizados por outra pessoa, não por nós, com algum sistema que os torne recuperáveis, na esperança de que sejam úteis a pessoas como nós. Uma lista alfabética em uma agenda telefônica organiza dados de modo que eles possam ser úteis.

Conhecimento é informação internalizada, integrada a todo o resto das coisas que uma pessoa conhece por experiência ou estudo, e que, em decorrência disto, está disponível para servir de base para agir na vida. Sabemos que esse número telefônico particular é o de um amigo, e isto se vincula a tudo o que já conhecemos do nosso amigo. Uma forma cada vez mais importante de conhecimento é aprender a maneira de encontrar a informação que nos é útil.

Sabedoria adiciona profundidade, perspectiva e significado ao conhecimento integrando outras formas de conhecer distintas da lógica e da análise, como a intuição ou a inteligência e a compaixão que vem do coração. A sabedoria é multidimensional por definição, já que atravessa as fronteiras dos diferentes campos e formas de conhecimento. É a síntese suprema, definitiva, que não pode ser ensinada nem imposta pela força.

“Podemos aumentar nosso conhecimento com o conhecimento alheio, mas não ser sábios com a sabedoria dos demais.” (Michel de Montaigne, 1533-1592).

Recorrendo à metáfora do carvão na Era Industrial, os dados correspondem ao veio de carvão ainda no fundo da mina. A informação é um saco de carvão pronto para ser usado. O conhecimento, o aço obtido a partir dele. A sabedoria é a ponte construída com esse aço, e as novas conexões que ele permite entre as pessoas; – e as conexões são o verdadeiro propósito de todo o processo.

Para que os benefícios da Sociedade da Informação se materializem, precisaremos navegar pela transição com conhecimento e sabedoria. Se optarmos por fazer prevalecer a sabedoria, a Revolução da Informação pode colaborar na criação da Abundância Sustentável e não dos outros cenários possíveis que descreveremos no próximo capítulo. Por isto eu chamo a Abundância Sustentável de crescimento sábio, também.

Para a leitura do restante deste livro, é importante lembrar quatro pontos chave deste capítulo:

  • Queiramos ou não, uma revolução da informação está em andamento. Tentativas neoludditas de deter o processo serão ainda mais inúteis na transição atual que os esforços dos opositores da Revolução Industrial.
  • A tecnologia da informação não é uma poção mágica que resolverá todos os nossos problemas instantaneamente, nem um Frankenstein que devorará seus criadores. Ela é potencialmente as duas coisas, e agora é a hora de ficarmos atentos e precavidos em relação às questões subjacentes mais profundas. Esta tecnologia desencadeia ao mesmo tempo duas dinâmicas opostas poderosas. Uma conduz à “revolução da justiça” prognosticada por Cleveland, na qual o recurso informação se converterá em uma oportunidade para aumentar e distribuir riqueza em uma escala nunca antes vista. A outra dinâmica nos leva a uma sociedade na qual os “barões da informação” farão o papel que fizeram os “barões do roubo” no início da Era Industrial, nos leva a um “Milênio Corporativo” (próximo capítulo).
  • O que importa, na verdade, não é a tecnologia, mas nossa forma de utilizá-la. Tudo vai mudar no jogo do dinheiro. O surgimento de outras opções além das moedas nacionais é necessário e inevitável. Este processo começou antes de termos as novas tecnologias, e o que elas têm é o poder de ampliar a difusão e a escala das mudanças. Pela primeira vez em vários séculos, novos protagonistas estão em movimento criando formas totalmente novas de definir, gerar e usar o dinheiro. Esta nova fronteira monetária nos dá uma oportunidade que nunca tivemos antes de repensar o tipo de moeda que queremos e de incorporar certas características que contribuam para a solução dos problemas que nossas sociedades enfrentarão num futuro próximo. Por exemplo, as possibilidades que os novos sistemas monetários oferecem para resolver o desemprego que virá durante a transição para o “admirável mundo novo” da informação, isto deveria interessar a todo mundo, inclusive a quem atualmente pertence à elite que recebe remunerações privilegiadas. Além disto, cuidados para idosos, restauração ambiental e do espírito comunitário são metas às quais a maioria das pessoas deveria aderir.

As moedas de empresas privadas em si não são um problema. Afinal, como vimos nos capítulos 2 e 3, nossas conhecidas moedas “nacionais” são moedas de dívida bancária. Isto significa que na realidade são moedas privadas (emitidas por empresas) que foram homogeneizadas em escala nacional. O problema começa quando as moedas emitidas por empresas se transformam em monopólios, seja devido à intenção da legislação, seja pelas circunstâncias.

O lado positivo é que tendo o recurso informação as pessoas hoje mais que nunca podem criar moedas próprias que reflitam seus valores. O ponto de partida é ser consciente de que existe a possibilidade de escolher e que é importante escolher entre os diferentes sistemas de moedas. Ao longo da história, as características dos sistemas monetários em geral não foram arquitetadas conscientemente, elas evoluíram e terminaram refletindo tudo o que a estrutura de poder e o inconsciente coletivo das diferentes sociedades projetavam sobre elas. Desta vez temos a oportunidade de fazer diferente. Sabemos o suficiente sobre o dinheiro e sobre o inconsciente coletivo para iniciar conversas sobre as opções existentes. Muito possivelmente, o fator mais decisivo para que as oportunidades da Era da Informação produzam Abundância Sustentável (ou outro resultado) – seja no nível global, nacional, empresarial, comunitário ou individual – é a escolha consciente dos sistemas de moedas.

No próximo capítulo exploraremos as consequências do predomínio das moedas criadas pelos diferentes atores. Talvez comprovemos que esta indagação é a melhor maneira de compreender o dinheiro. Como destacou Kart Lewis: “Se você quer realmente compreender uma coisa, tente mudá-la…”.

CAPÍTULO 5

Cinco cenários hipotéticos para o futuro

Nunca a humanidade combinou tanto poder com tanta desordem, tanta angústia com tantos entretenimentos, tanto conhecimento com tanta incerteza. – Paul Valéry147

Ao descrever cenários hipotéticos, criamos mitos – novos e velhos – que serão importantes no futuro.
– Peter Schwartz148

A humanidade está entrando em um período de alternativas extremas. – Botkin, Elmandjra e Malitza149

Neste capítulo analisaremos as possibilidades futuras através de cenários hipotéticos ambientados dentro de aproximadamente uma geração, por volta do ano 2020.

O cenário “Futuro Oficial” é uma mera extrapolação da vida das duas últimas décadas; você verá por que não há probabilidade alguma de este cenário se materializar. Depois, apresento quatro cenários mais plausíveis. Em cada um são destacadas as consequências das diferentes mudanças possíveis no sistema de moedas. Os quatro cenários são: Milênio Corporativo, Comunidades Cuidadoras, Inferno na Terra e Abundância Sustentável. Primeiro, um relato emblemático resume a essência do estilo de vida de cada cenário. Em todos estes casos, foram incluídos dados ilustrados graficamente, dentro do possível, sustentando a probabilidade de esse cenário vir a predominar.

Na conclusão coloco os quatro cenários e as forças que os determinam em uma perspectiva mais ampla.

Cenários hipotéticos: uma janela para o futuro
Os cenários são ferramentas que nos ajudam a pensar de maneira coerente usando eventos encadeados e relações complexas. Eles hoje determinam nossas decisões e escolhas e seu objetivo é criar um futuro melhor. O uso de cenários hipotéticos possibilita tomar decisões sólidas baseadas em informações, mais resistentes a uma gama mais ampla de possibilidades futuras. Há muito tempo, Aristóteles afirmou que se conhecemos o futuro, não podemos alterá-lo; e se podemos alterá-lo, não podemos conhecê-lo. Por isto os cenários não são simples extrapolações, previsões ou prognósticos.

Um dos precursores na criação de cenários, Napier Collyns, chamou este processo de “dar um salto imaginário até o futuro”. Seu colega, Peter Schwartz, presidente da Global Business Network, os descreve como “ferramentas para ver o longo prazo; são relatos sobre como o mundo pode vir a ser. [Estes relatos] se referem ao sentido das coisas; Eles explicam por que as coisas podem acontecer, eles dão ordem e coerência aos eventos Os relatos são a maneira mais antiga da história de organizar e comunicar o conhecimento, e um dos canais mais claros para se alcançar a compreensão”.150

A criação de um cenário deste tipo visa três objetivos:

  1. Questionar os hábitos incorporados a uma maneira de pensar, um modelo mental, a imagens ou crenças. Todos temos uma forma habitual de ver o mundo que condiz com nossas atitudes e crenças. Esta forma de pensar pode deixar de lado perspectivas úteis. Os cenários hipotéticos nos permitem eliminar momentaneamente esses filtros e revelar os pontos cegos, as premissas ocultas e abrir novas janelas para o futuro.
  2. Identificar e compreender melhor as forças que estão por trás dos eventos decisivos. Especificamente, em nosso caso, ressaltaremos como uma mudança no controle dos sistemas de moedas afetaria vários novos atores na sociedade.
  3. Trabalhar com estas descobertas de maneira criativa e usar a clareza que elas promovem para delinear um futuro mais desejável.

Cenários não são exercícios acadêmicos. Graças a um destes processos de construção de cenário, a Shell pôde prognosticar e se preparar para o colapso da ex-União Soviética, e evitar com isto erros em investimentos de bilhões de dólares no Mar do Norte. A Shell continua atualizando seus cenários aproximadamente a cada três anos.

Este processo também contribuiu para o “Milagre da África do Sul”, a transição pacífica após o Apartheid (veja quadro a seguir). Estes métodos foram posteriormente aperfeiçoados pela rede mundial de empresas, a Global Business Network, fundada por vários executivos provenientes da Shell, e publicados mais adiante por Peter Schwartz.151

O voo dos flamingos
A vários anos atrás, profissionais capacitados pela Shell como facilitadores de elaboração de cenários promoveram reuniões confidenciais com representantes de todos os partidos da África do Sul, entre os quais quatro futuros ministros de Nelson Mandela. O cenário que se implementou na África do Sul foi chamado “o voo dos flamingos”, uma metáfora representando todos os partidos levantando voo lentamente, mas juntos. Clem Sunter, que atualmente trabalha na Anglo-American, publicou fragmentos desses cenários.152

O Futuro Oficial: “mais do mesmo”
O Futuro Oficial que nos dizem que podemos esperar para as próximas décadas se baseia, em geral, em uma extrapolação do que vem ocorrendo nos últimos 20 anos, aproximadamente.

Por exemplo, no Futuro Oficial se espera que os mesmos partidos políticos sigam lutando pelo poder nos mesmos lugares. Os alunos das escolas primárias seguirão aprendendo mais ou menos o mesmo de sempre. Serão plantados, colhidos, vendidos, preparados e comidos praticamente os mesmos grãos que no passado. Os computadores continuarão se tornando mais velozes, mais econômicos e mais compactos. Pagaremos nossas compras com dólares, pesos, libras, francos, reais ou ienes. Talvez usemos “smart cards” (cartões com chip)153 em vez das velhas notas, cartões de crédito magnéticos ou cheques, e talvez não guardemos o dinheiro trocado em carteiras de couro, mas eletrônicas. Os europeus terão se adaptado a usar a moeda comum que substituiu as dos diferentes países. Porém, dito e feito tudo isto, que importância real tem a maioria dessas mudanças?

Nas esferas mais rarefeitas do sistema monetário global, cabe prever que uma crise de tanto em tanto sacudirá algum país, como ocorreu na Grã Bretanha em 1991, nos países escandinavos em 1992, no México em dezembro de 1994, na Tailândia em junho de 1997, na Indonésia em dezembro de 1997, na Rússia em setembro de 1998 e no Brasil em janeiro de 1999. Talvez a cada tanto a imprensa anuncie um “plano grandioso” que, como todos os anteriores, receberá o nome do lugar onde foi celebrado o acordo – o Acordo do Plaza,154 o Tratado de Maastricht155 – mas sem que nos expliquem que implicações práticas eles têm para nós.

O Futuro Oficial156 não é mais que a continuação do que temos vivido nas duas décadas anteriores. Mas o problema do Futuro Oficial é que, na verdade, a probabilidades de ele vir a acontecer é zero. Como disse Willis Harman: “Nossas sociedades alcançaram um ponto no qual a transformação já não é opcional”.

Por que o Futuro Oficial não vai acontecer?
As palavras de Willis Harman são proféticas por duas razões:
A primeira já foi sintetizada no capítulo 1, quando falamos da Máquina Compactadora do Tempo (veja a figura 1.3). A convergência histórica sem precedentes das quatro megatendências – Onda do Envelhecimento; a Revolução da Informação; a Mudança Climática e Extinção da biodiversidade; e a Instabilidade da Moeda – indica que não é realista a probabilidade de que “tudo siga igual”. Qualquer uma destas quatro tendências é suficiente para perturbar significativamente os padrões da sociedade. Se elas se combinarem, não há chance alguma de continuarmos no mesmo caminho.

A segunda razão pela qual o Futuro Oficial não ocorrerá se relaciona diretamente com o tema deste livro: o futuro do dinheiro. Mesmo antes que qualquer uma destas megatendências se manifestasse plenamente, já estavam em andamento na década de 90 vários experimentos importantes no sentido de modificar a natureza do dinheiro; e de fato, ninguém duvida que as novas tecnologias modificarão a forma (isto é, os aspectos ainda mais etéreos que a nossa moeda local pode assumir, como bits eletrônicos nos sistemas de pagamento automático, nos smart cards ou na Internet). Quando a revista Time pública uma matéria de capa sobre “O futuro do dinheiro”, ela se refere aos dólares eletrônicos,157 mas isto é só uma parte do que está acontecendo.

Paralelamente a estes avanços no dinheiro eletrônico, está surgindo algo totalmente distinto. Há no mundo pessoas que lançaram, ou estão experimentando, tipos radicalmente diferentes de dinheiro. Eles estão transformando a essência do dinheiro, quem o gera, seu significado, as emoções que ele estimula e como as pessoas se comportarão umas com as outras e com o ambiente ao usar um dinheiro.

Sabemos que as inovações tecnológicas que produzem o maior impacto na sociedade, o impacto mais radical e revolucionário, são as que modificam os instrumentos com os quais as pessoas se relacionam entre si. As mudanças fundamentais na civilização remontam à invenção da escrita,158 do alfabeto159 e da imprensa.160 As incríveis consequências sociais, políticas e econômicas produzidas pela invenção do telefone, do automóvel e da TV161 são exemplos clássicos das transformações ocorridas no século XX.

As mudanças na natureza do dinheiro produzirão um impacto pelo menos tão importante como o dos exemplos dados. O dinheiro é nossa ferramenta fundamental para os intercâmbios materiais com pessoas fora do nosso círculo imediato. De todos os instrumentos que podem modificar as relações humanas, qual pode ser mais central em uma sociedade capitalista que o dinheiro? O capitalismo usa o fluxo do dinheiro no mercado para alocar recursos entre os participantes da sociedade. No capitalismo, o dinheiro não só é o meio, mas o fim da avassaladora maioria dos intercâmbios. A invenção do motor a combustão mudou somente a natureza do nosso sistema de transporte… e olhem os resultados! Em nossa sociedade capitalista atual, alterar a natureza do dinheiro equivaleria a mudar tanto o combustível da maioria dos nossos atos, como a motivação subjacente. Portanto, é provável que as consequências da transformação da natureza do nosso dinheiro tenham um alcance maior do que imaginamos.

Neste momento estão em andamento centenas de projetos que empregam novos tipos de dinheiro e gerarão transformações deste tipo. Esse conjunto de iniciativas dá sinais nítidos de que o próprio conceito do dinheiro vai mudar. Alguns envolvem as organizações mais poderosas do mundo e investimentos de bilhões de dólares. Outros foram implementados com custos muito baixos por ativistas sociais em uma dezena de países, ou por algum “nerd” solitário no Vale do Silício. Meu prognóstico é que 90% ou 95% desses projetos não sobreviverão, mas os 5% restantes conseguirão modificar para sempre a economia, a sociedade, a civilização e o mundo em que vivemos.

Assim como a pólvora foi determinante para o destino do sistema feudal no final da Idade Média, os projetos com moedas que sobreviverem darão a direção que o poder vai seguir no próximo século. O estimulante – ou preocupante – nisso tudo, dependendo do ponto de vista, é que é não temos como saber qual enfoque vai prevalecer. Não serão os governos, nem as grandes empresas, nem sequer os projetos com mais fundos ou com as melhores equipes de trabalho, os que terão necessariamente as melhores possibilidades. Há empreendedores trabalhando em garagens e triunfando em áreas onde gigantes já fracassaram162. Por muito tempo a sabedoria convencional afirmou que só as empresas maiores podiam atrair os melhores talentos e financiamentos significativos, porque o tamanho assegura automaticamente poder de mercado. Na década de 90, nenhuma dessas premissas se comprovou.

Quando falamos sobre o futuro do dinheiro, não podemos evitar de nos referir, também, ao futuro das nossas sociedades e do mundo. Esta afirmação não deve ser entendida como uma relação mecânica de causa e efeito entre os sistemas de moedas e as grandes mudanças sociais. As sociedades são sistemas extremamente complexos que escapam a toda interpretação simplista. Hoje esta afirmação é mais verdadeira que nunca, pois pela primeira vez desde que se tem notícia, o jogo do dinheiro assumiu um caráter verdadeiramente global. Agora que nos países antes comunistas, e inclusive na China “comunista” atual, o dinheiro se tornou irreversivelmente o fator preferido de motivação social, alterar nosso sistema de moedas pode ser a forma mais poderosa de modificar conscientemente, mundialmente, nossa conduta coletiva. Além disto, pela primeira vez na história, os efeitos de qualquer mudança monetária serão multiplicados pelas tecnologias da informação e das comunicações, nos lançando a grande velocidade para territórios em grande medida desconhecidos.

O Futuro Oficial não vai ocorrer. Então, quais são os futuros mais plausíveis? A seguir veremos quatro rumos diferentes que nossa vida poderia tomar conforme as diferentes mudanças nos sistemas monetários:
O Milênio Corporativo: um mundo onde as moedas corporativas das empresas privadas assumem o papel das usuais moedas nacionais de dívida bancária.
Comunidades Cuidadoras: nas quais, em função de um colapso do sistema monetário global, as moedas comunitárias locais se convertem na força dominante que determina as características do dinheiro.
O Inferno na Terra: onde não surgiu uma nova ordem social nem monetária depois do colapso do dinheiro oficial.
Abundância Sustentável: um mundo onde vários tipos de inovações monetárias – descritas na Segunda Parte deste livro – constituem uma medida preventiva bem sucedida contra o colapso monetário, criando uma “Economia Integral” na qual os sistemas de moedas velhas e novas conseguem se complementar e se equilibrar mutuamente.

O Milênio Corporativo
O cenário do Milênio Corporativo descreve como o poder, incluindo o poder de criar dinheiro, poderia ser transferido nas próximas décadas para as grandes multinacionais.

Um jornalista nos relata esta história depois entrevistar o último primeiro-ministro britânico no ano 2020.

Adeus ao último primeiro-ministro163
Londres, 7 de fevereiro de 2020
Enquanto o último primeiro-ministro britânico contemplava as tochas que ardiam na margem sul do Tâmisa, conversamos em seu velho gabinete no Palácio de Westminster. Foi a entrevista mais sincera e informal que tive com ele, talvez porque ter sido a última.
– Não é mais problema meu – foi a primeira coisa que ele disse. Ele havia assinado os últimos documentos naquele mesmo dia. À meia-noite, Securicor haveria de assumir o serviço policial no Reino Unido.
Era a última peça do quebra-cabeça. A Executive Solutions já havia obtido a concessão para as Forças Armadas em troca do controle das jazidas petrolíferas da plataforma marítima em Cornwell. Desde que a Sony assumiu o comando do império Microsoft, após a trágica morte de Bill Gates, os Serviços Sociais estavam sendo administrados pela Sonysoft. A Consolidated Banks assumiu a economia e a NewsCorp, o Departamento de Educação. Até as câmaras do Parlamento – que haviam perdido utilidade, pois os representantes eleitos haviam deixado de ter funções significativas – estavam nas mãos da Virgin. Amanhã os agentes imobiliários virão ver a casa da Rua Downing número 10 e o primeiro-ministro vai passar à vida de aposentado, da mesma forma como seu poder foi passado às mãos das grandes empresas.

Ele me mostrou um livro com velhos recortes de jornais. O primeiro era um artigo sobre seu primeiro discurso na Câmara dos Comuns em 1992, no qual ele atacava a perda da soberania britânica para a União Européia. E sorriu ao recordar sua ingenuidade.
– Eu falava de imigração, exigia controles mais estritos. Era querer o impossível. Hoje entrar em um país, qualquer país, é fácil: basta comprar uma passagem de avião. Mas para entrar nos grandes centros empresariais, como Islington, Belgrávia ou a baixa Manhattan, é preciso um agendamento eletrônico e uma “identificação positiva”. – Seu rosto se tornou sombrio. – Esta tecnologia de “identificação positiva” é realmente eficaz. Como ocorre com a maioria das coisas importantes da história, sua aceitação geral resultou da convergência de vários fatores, neste caso três: uma escolha consciente, um acidente e uma necessidade. A escolha consciente foi a justificativa inicial para testar os smart cards por razões administrativas: incluiriam o nome, o número da Seguridade Social, o da carteira de habilitação e de um seguro para situações de emergência, assim como informações médicas. O acidente foi a Guerra Relâmpago dos cartões de crédito, quando um grupo de hackers criou pacientemente uma base de dados com números de cartões de crédito, limites de crédito e códigos de aprovação e desapareceu num dia de 2001 depois de debitar centenas de milhões de dólares de centenas de milhares de contas. Depois disto, a tecnologia do pagamento com smart cards se impôs por si mesma, quase que da noite para o dia, e a conexão usando a identificação eletrônica se tornou muito relevante, porque aumenta a segurança. Porém, após os distúrbios sociais ocorridos em todo o mundo em 2006, foram adicionados (em primeiro lugar nos Estados Unidos) outros dois tipos de dados: o nível PSC* e a ordem PEC, que funcionam tanto no espaço físico como na ciberesfera. 173 [Aos revisores: favor verificar – Na edição argentina aparece duas vezes o número 173, no título deste quadro e aqui. O número aqui foi retirado na tradução para português. No original há duas notas sem número, indicadas por “*” Entendo que não se trata de notas que devam estar ao final do livro, nem de notas de rodapé, como no original, são observações que devem estar ao final do relato, dentro do quadro, indicadas por asteriscos ]

O último primeiro-ministro prosseguiu, com certa tristeza na voz: – Eu me lembro de ter visto por volta de 1996 um noticiário da BBC sobre as tendências dominantes nos Estados Unidos, mencionando que o Shopping das Américas em Minneapolis (que na ocasião era o maior shopping do planeta), por razões de segurança e a pedido dos clientes adultos, proibiu o acesso de adolescentes desacompanhados de uma pessoa maior. De qualquer forma, esses jovens não tinham poder aquisitivo que justificasse sua presença no lugar. Eu me lembro de ter pensado que no Reino Unido jamais poderia ocorrer algo semelhante. A Finlândia, nos últimos dias do século XX, foi o primeiro país a implementar o uso generalizado da identificação positiva com smart cards. Os Estados Unidos imitaram esse experimento, no início nas principais zonas metropolitanas, para controlar a crescente violência urbana. A Coréia aprovou uma lei que autorizava a inserir cirurgicamente um chip de identificação eletrônica na mão de uma pessoa ao nascer. Agora, o contrato que acabo de assinar com a Securicor especifica que, em conformidade com o convênio firmado com a Interpolnet, os implantes deverão ser estendidos ao mundo todo, incluindo o Reino Unido. O argumento que eles sustentam é irrefutável: como se pode manter o controle policial da ciberesfera havendo áreas não resguardadas e que podem ser acessadas sem necessidade de implantes identificatórios individuais?
Ele fez uma pausa e seguiu dizendo: –Também foi inevitável criar uma ponte de informação entre o código de barras dos produtos e os documentos de identidade pessoais. Na década de 90, já sabíamos que a informação sobre compradores e os artigos comprados era mais valiosa que os próprios lucros. Nem sequer Orwell havia previsto um Grande Irmão capaz de reconstruir a vida de todas as pessoas até em seus mais mínimos detalhes. As compras todas, os pagamentos de pedágio ou de telefonema com dinheiro rastreável são armazenados sistematicamente em bases de dados gigantescas para consultas futuras. E este é o tesouro mais valioso para o marketing das grandes empresas na Era da Informação. Porém, hoje, o mais importante ainda é verificar cada pessoa e checar se há conexões suspeitas do ponto de vista da segurança. [aos revisores: na edição argentina, nesse parágrafo havia os números 174 e 175, o autor pediu para retirar] Ele insistiu que constasse que ele fez uma última tentativa de conter a investida das grandes empresas.
– Mas realmente, já não havia alternativa. Os primeiros alarmes foram tocados quando as “forças do mercado” empurraram a Grã Bretanha para fora do Sistema Monetário Europeu, em 1991. Depois veio o bug do milênio, que impôs um sistema de seleção de urgência para identificar quais empresas estavam preparadas para a virada do milênio e eliminar as demais. Isto concentrou o poder em ainda menos mãos. Poucos anos depois, o presidente “esquerdista” da França tentou aumentar os impostos para ter fundos para os serviços básicos: os capitais sumiram da noite pra o dia. Os ricos, e inclusive pessoas em uma situação econômica relativamente boa, migraram para lugares com outra legislação tributária. Em poucos meses, as empresas multinacionais fecharam suas operações na França e transferiram a maioria das atividades para lugares mais convenientes. Em 1996, Glen Peters, que era “Director of Future” da PriceWaterhouse, as chamou de nômades. “Elas se apropriam de tudo o que estiver abundante, enquanto puderem –destacou Peters– depois, fecham as portas e vão para a próxima parada.” ”Depois desse episódio – continuou– todos os países se sentiram compelidos a competir cortando ao máximo os orçamentos. Os últimos itens a desaparecer foram os subsídios para atrair investimentos estrangeiros. O motor de tudo isto foi, na verdade, a revolução digital. Bill Gates se tornou o novo Karl Marx ou o novo George Washington, (depende de com quem você esteja falando) foi quem nos conduziu até o Milênio Corporativo.

Talvez fosse previsível que a Sociedade do Conhecimento se converteria na Sociedade das Grandes Empresas. Afinal, as que chegaram ao topo eram invariavelmente as mais eficazes no uso estratégico e organizacional do conhecimento. Conhecimento, poder e dinheiro sempre estiveram fortemente vinculados, e agora são diretamente intercambiáveis. E nesses três fatores, os governos se tornaram irrelevantes.

”Daria para termos imaginado” – ele refletiu. “Já na década de 90, o Diretor Geral do Instituto de Diretores, Tim Melville-Ross, afirmou que a possibilidade de o Terceiro Milênio ser dominado pelas grandes empresas era uma “preocupação legítima”. E Glen Peters concluiu que “Tudo parece indicar que a onda é impossível de deter”. Nem todos concordaram que seria tão drástico, pensaram que o Estado recuperaria funções tradicionais como legislar e fazer guerras. Mas todos prevíamos que a Era da Informação seria tão impactante como a Revolução Industrial… e pense como ficaram os aristocratas, sem falar dos camponeses. Uma grande quantidade de gurus empresariais cantaram esta bola durante décadas. Charles Handy, o autor de “The Empty Raincoat” [A Capa de Chuva Vazia] observou: “As empresas ainda são administradas como os Estados totalitários”.164

”O golpe fatal – prosseguiu – foi quando as grandes empresas passaram a colocar moedas próprias em circulação, em vez de se limitarem a competir pelo dinheiro emitido pelos bancos sob supervisão estatal. Começou de forma inocente com as milhas oferecidas pelas linhas aéreas, que no começo só eram obtidas com a compra de passagens para serem trocadas por outras milhas. A American Express ampliou a ideia criando seu “dinheiro do passageiro internacional, que pode ser trocado em qualquer lugar”. Estes protótipos e o auge da cibereconomia juntos desencadearam praticamente um vale-tudo. Mas através de alianças e acordos sobre a convertibilidade pactuados entre as empresas maiores, criamos a realidade atual: um punhado de moedas corporativas “fortes”, respaldados por bens e serviços reais, que substituem cada vez mais as instáveis moedas nacionais respaldadas puramente por uma dívida.

O primeiro-ministro limpou o pó do parapeito da janela. Fazia tempo que ninguém ia ao Palácio de Buckingham. Há quase uma década que os debates da Câmara dos Comuns acontecem via Internet, para que os políticos passem mais tempo com seus eleitores – pelo menos essa é a razão. Mas os eleitores não se importam também, todos sabem que, de qualquer forma, os políticos não têm poder para influenciar de fato os acontecimentos. Ele continuou dizendo: “Para os meios de comunicação, o momento da virada foi quando descobriram que o que as pessoas queriam, na realidade, era se distrair dela. Por isso, os noticiários foram se transformando cada vez mais em entretenimento. 165 Eu aposto que serão usadas mais imagens dos distúrbios de rua que a NewsCorp filmou esta noite no último capítulo da minissérie sobre polícia e bandidos cibernéticos, que no noticiário. Matérias sobre empresas e jornalismo de entretenimento substituíram a cobertura dos temas políticos. E caiu para 5% a proporção de cidadãos que votam nas eleições. Meu governo tem menos legitimidade que uma ditadura atrasada. Quando tentei aprovar uma lei para anular a fusão entre a NewsCorp e a BBC, riram de mim. Só me restou deixar este assunto cair no esquecimento. Nem tudo é mau, com certeza. Outras instituições, grandes entidades sem fins lucrativos, museus, universidades, foram favorecidas com o novo regime. A maioria dos trabalhadores trabalha em casa, ou de lugares mais agradáveis que as grandes cidades. A população de Londres está diminuindo há quase um século e as televiagens deram o empurrão final para o êxodo. As ruas estão cheias mais que nada de turistas. Mas o Palácio de Westminster seguirá sendo um velho edifício senhorial, agora que a Disney o converteu em parque coberto, com o tema perfeito, como diz o folheto: “A história do governo representativo: desde a Carta Magna até o ano 2000”. Como de costume, tomaram algumas liberdades com os fatos históricos e destacam só os episódios mais atrativos; mas eu, na verdade, me senti excluído: pararam o relógio da história em 2000 por uma questão de marketing. Ficava mais simples.”

Sim, os edifícios ficarão bem; mas… e as pessoas? Não é que as megaempresas tratem mal das pessoas. Em muitos aspectos, ser um cidadão da Goldman Sachs ou da Chrysler-Daimler-Benz tem mais vantagens que ser cidadão do Reino Unido, da Alemanha ou dos Estados Unidos. Certo tipo de funcionário desfruta de uma vida comparável à da realeza no passado. Os salários da The City são enormes para quem têm as qualificações certas. O problema é que ninguém convenceu os gigantes globais que eles devem ter responsabilidade social. No século passado, as grandes empresas tentavam driblar as regras; agora não há regras, a não ser as que eles criam. Tim Melville-Ross advertia nos anos 90: “É preciso se perguntar se é provável que grandes empresas e organizações representativas como as nossas controlarão o poder de forma benigna, e disso não temos garantia alguma.” Ele pensava que divulgação e escrutínio por parte do público assegurariam uma boa conduta das empresas. Também Glen Peters afirmava que o consumidor tinha mais poder que a maior das corporações. O público boicotava as empresas das quais não gostava, mas esta abordagem oca não podia funcionar. Afinal, são grandes empresas que controlam, também, a maior parte da informação que as pessoas recebem (diretamente, porque os veículos de comunicação também são empresas, ou indiretamente, pela influência que os anunciantes têm nas empresas de comunicação). Elas conseguiram, inclusive, colonizar quase toda a ciberesfera.”Além do mais, sempre há um fator que escapa a todo controle: o ciber-submundo que lidera a revanche. Comparados com eles, os primeiros atentados com bombas do IRA em Londres eram fichinha. Quem teria imaginado que as armas de desorientação em massa substituiriam as armas de destruição em massa? … histerias nas bolsas detonadas a partir das sombras por piratas da informática, os descalabros nos sistemas de pagamento, aviões colidindo, trens de passageiros se chocando contra trens de carga. E quando ocorre uma desordem de grandes proporções não se pode chamar uma ambulância porque a Internet 911 foi desmantelada por um vírus. E as formas mais antigas de violência continuam nos ameaçando. Até a segurança pessoal de Bill Gates, com seu séquito de guardacostas, não conseguiu impedir de que ele fosse explodido junto com seu carro blindado.”

Mas o que esperar quando um terço da população, incluindo alguns dos nossos jovens mais brilhantes, não encontra trabalho, não tem lugar em nossa mesa, não se encaixa no mundo cada vez mais paranóico das empresas? A reação do mundo empresarial contra as pessoas mais sensíveis foi cruel. As mulheres ficaram fora por não entender que é um mundo muito duro, que as empresas estão em guerra contra os ciberterroistas. A regra tácita é “ame-o ou deixe-o”, muito eficaz para gerar submissão entre quem está “dentro”.

Uma vez mais, o primeiro-ministro deu uma olhada no rio e estremeceu. Uma multidão caminhava na margem oposta com tochas acesas.
–Esse é o problema: o número cada vez maior dos “de fora”. A classe baixa foi sendo deixada para trás durante décadas. Quando eu era criança já havia homens morando nas ruas; depois vieram as crianças; mais tarde, famílias inteiras; agora parecem hordas. O professor Handy havia estimado que 20% da população seria “inempregável”, ele subestimou a realidade: em um ambiente de maior incerteza social e criminalidade, as grandes empresas tiveram que ser mais seletivas que nunca antes de contratar alguém que possa pôr em risco a segurança. O desemprego continua aumentando entre os que ultrapassaram o limite da idade, ou não se atualizaram, ou despertam suspeita.”

O último primeiro-ministro do Reino Unido fechou seu livro de recortes, recolocou na caixa vermelha e deixou o Parlamento pela última vez. Ao sair, levantou o olhar. Por trás do anúncio luminoso da Seiko na torre do Big Ben, as tochas resplandeciam ao fundo. Ainda expressou sua profunda sensação de derrota pessoal e de fracasso de um sistema de governo. Uma página da história foi virada… para sempre.

[aos revisores: aqui ao final do quadro, devem ser colocadas as observações indicadas pelos asteriscos]

*O PSC ou Personal Security Clearance (acesso de segurança pessoal) define as áreas às quais uma pessoa pode ter acesso — zonas da cidade, certos edifícios, quais salas nas instalações de determinadas empresas. Tudo isto é organizado primorosamente através de sistema de segurança atualizados automaticamente quando se tem um horário agendado com alguém nos enclaves de alguma empresa. O aparelho reconhece o status da sua ‘Identificação Positiva’ enquanto a pessoa se desloca, sem interromper sua passagem se tiver os devidos acessos. O mesmo PSC controla, também, o accesso à ciberesfera. Foi necessário elevar os padrões gerais de segurança à medida que segmentos mais numerosos da sociedade –excluídos dos benefícios dos empregos em empresas – foram se tornando cada vez mais violentos para sobreviver (passando dos velhos pequenos crimes de rua ao seqüestro de executivos, ciberterrorismo, extorsão sob ameaça de perturbações da ordem em grande escala, etc.)
**O PEC ou Personal Economic Clearance (acesso de segurança econômico) define o nível de crédito de um indivíduo para fazer uso de várias moedas corporativas nas quais ele participe. Sem o devido acesso econômico, não é possível entrar em determinadas lojas ou centros comerciais, seja na cidade ou nos cybershoppings (não há muita coisa que uma pessoa com um acesso de nível inferior tenha condições de adquirir)
*** No jargão cibernético de 2020, ciberesfera é o espaço virtual onde todas as tecnologias eletrônicas – sistemas de pagamento, telefones, computadores, sistemas de segurança, Internet – convergem para um único sistema perfeitamente integrado.

Cronograma para a transição
O cronograma abaixo mostra em detalhes uma transição plausível entre a Era da Informação e o Milênio Corporativo. Todos os fatos acontecidos até 2000 são reais; os posteriores são projeções.

Cronograma da revolução
Década de 1970: Introdução experimental de programas de milhagem e de códigos de barras em produtos.
Anos 80: generaliza-se o uso dos “cartões de fidelidade” e dos códigos de barras. Na França são lançados os smart cards para pagamentos.
1992: A Amex inicia uma estratégia de alianças para que passageiros frequentes possam converter milhas em “Connect Plus” e vice-versa, dando início à tendência a ampliar as aplicações das moedas privadas.
1994: no Vale do Silício são comercializados com êxito os primeiros chips de Identificação Positiva implantados cirurgicamente no pescoço de cães.
1995: pela primeira vez o total em aberto das moedas corporativas “com fins limitados” atinge o teto de US$30 bilhões. Na França há em circulação 30 milhões de smart cards recarregáveis para pagamentos; na Alemanha são emitidos 88 milhões de smart cards para administrar os registros do sistema de saúde do país; na Finlândia, o Banco Central emite um cartão eletrônico único para pagamentos, seguridade social e sistema de saúde.
1996: Microsoft e Barclays criam uma joint venture para projetar sistemas de dinheiro eletrônico. A Fusão da CNN com a Time-Warner gera o maior império de “conteúdos”. No Reino Unido são criadas estações públicas de acesso à Internet. É implementado o novo tratado da Organização Mundial do Comércio (OMC) eliminando a maioria das barreiras nacionais remanescentes no comércio internacional. A Sensar, empresa pioneira em biométrica, firma contratos com a NCR e a Oki Electric Industry para introduzir scanners de identificação de íris em caixas automáticos.
1997: Os primeiros britânicos acessam a Internet em suas casas com monitores de TV. No Japão e em Londres são implantados leitores biométricos de íris. Um projeto piloto entre os Estados Unidos e as autoridades de imigração das ilhas Bermudas emprega dispositivos de escaneamento das mãos para agilizar os trâmites dos passageiros frequentes. A Microsoft apresenta a Virtual Wallet (carteira virtual) no seu Explorer 4.0. Confirmada a fusão da Worldcom com a MCI – a maior transação da história financeira e maior fusão de operadoras de telecomunicações da história. Os smart cards em uso no mundo atingem 170 milhões.
1998: O Citibank introduz nos Estados Unidos os leitores biométricos de íris. É implementada a identificação eletrônica por impressões digitais. Fusão da British Telephone com a ATT, superando a MCI-Worldcom e criando a maior operadora de telecomunicações do planeta.
1999: A tendência das fusões entre empresas produtoras de conteúdo e operadoras de telecomunicações se acelera.
2000: Pela primeira vez, o volume de correio eletrônico excede o do correio convencional; estão sendo usados no mundo 600 milhões de smart cards.
2010: As moedas emitidas pelas grandes empresas privadas superam pela primeira vez as nacionais em volume de intercâmbio comercial.
2015: Cumprem-se as promessas de reduções de impostos com a privatização dos últimos serviços básicos britânicos.
2020: o último primeiro-ministro da Grã Bretanha se aposenta.

Como é possível isto?
Este cenário hipotético descreve como a Revolução da Informação poderia deslocar definitivamente o poder, tornando irrelevante o conceito de estado nacional. Em vez de as grandes corporações mudarem internamente para se adaptar a uma função social mais ampla, elas redesenharam o mundo segundo suas prioridades.166
[aos revisores: O original diz, “corporates reshaped the world to their own priorities. 174
Na edição argentina está faltando o número indicando esta nota.] Grandes empresas assumirem funções do Estado pode ser uma faca de dois gumes, dependendo da área e de como se administre a prestação do serviço. Por exemplo, ninguém lamenta a privatização dos serviços telefônicos dos países onde ele era estatal, pois as empresas privadas prestam um serviço melhor e com custo menor. O mesmo se pode dizer do aparecimento dos serviços postais privados como os da FedEx ou da UPS, que são mais confiáveis e melhores.

Em outros âmbitos, o resultado não é tão evidente. Quando a First Data Resources estabeleceu uma faculdade de engenharia com um currículo sob-medida para suas necessidades na Universidade de Nebraska, o pulo foi arriscado. Quando alunos do ensino médio recebem aulas de finanças de uma empresa de cartões de crédito e aprendem que é uma “prática financeira saudável” destinar 20% ou 30% da renda para o pagamento das dívidas de cartões de crédito, aí passamos dos os limites.

Moedas especiais das grandes empresas, como os programas de milhagem só são concebíveis graças à capacidade de processamento barata e onipresente. É questão de tempo até que alguém (a American Express, a Microsoft, ou algumas das empresas cibernéticas constituídas recentemente, ou um consórcio de grandes corporações?) emita uma moeda corporativa plena, lastreada nos bens e serviços da(s) própria(s) empresa(s). O próprio Alan Greenspan afirma que ele “prevê em um futuro próximo, que os emissores de pagamentos eletrônicos (como os cartões de “dinheiro digital”) proporão a criação de corporações especializadas na emissão de meios de pagamentos que tenham balanços patrimoniais sólidos e sejam escrutinadas pelas agências de rating de crédito”, e também, “que existirão no século XXI novos mercados de moedas privadas”167.

Resumindo, em vez de competir pelas moedas nacionais respaldadas pela dívida pública, as grandes empresas emitirão sua moeda própria respaldando-a com bens e serviços reais. O mais provável é que os governos não sejam os únicos perdedores quando o poder mudar de mãos. Por exemplo, um Milênio Corporativo pode diminuir ainda mais a privacidade pessoal e os direitos individuais em benefício das grandes empresas em decorrência da convergência de três tendências mencionadas no cenário:

  1. A percepção de haver necessidade de identificação dos indivíduos (“identificação positiva”) para garantir segurança nos pagamentos eletrônicos. Quanto mais se expandir a cibereconomia, e com ela os crimes cibernéticos, mais se fortalece este raciocínio. (veja o quadro a seguir).

Um comunicado à imprensa da WorldNetDaily.com
de 20 de novembro de 2000
A Applied Digital Solutions, Inc., empresa negociada na Nasdaq, apresentou hoje seu dispositivo “Digital Angel” [anjo digital] ante um público aglomerado de mais de trezentos convidados, entre os quais o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Norman Mineta. A tecnologia consiste em um pequeno sensor sem fios, projetado para ser implantado debaixo da pele, captar e transmitir a uma estação terrestre conectada à Internet informações sobre as funções vitais do organismo do portador, como a temperatura corporal ou a pulsação. De um satélite GPS a antena recebe informação sobre a localização do indivíduo. Ambos os tipos de dados – os de saúde e de localização – são então transmitidos usando uma tecnologia sem fio para uma estação terrestre e podem ser acessados por qualquer computador conectado à Internet, um laptop ou dispositivos móveis. Trata-se de uma versão mais sofisticada da tecnologia de microchip de identificação eletrônica para animais de estimação, o Digital Angel é acionado eletromecanicamente através do movimento muscular, ou pode ser ativado desde uma central de controle externa. Segundo a WorldNetDaily, além de localizar as pessoas perdidas e controlar dados fisiológicos, o Digital Angel será comercializado como meio para verificar on-line a identidade do consumidor nas cada vez mais volumosas compras via Internet no mundo todo.

Em uma entrevista realizada em março passado, o cientista responsável, Sr.Zhou, informou à WorldNetDaily que, em sua opinião, o implante se retornará tão popular como os celulares e as vacinas. O Digital Angel “será uma conexão do indivíduo com o mundo eletrônico. Seremos um híbrido de inteligência eletrônica e nossa alma”, disse Zhou.

Richard J. Sullivan, presidente executivo e do conselho de administração da Applied Digital Solutions, foi eloquente em relação ao potencial de mercado do Digital Angel ele informou que a empresa “acessou um mercado que, mesmo em uma estimativa conservadora, excederia os US$ 70 bilhões”.

  1. As formas eletrônicas do dinheiro – sejam as velhas moedas nacionais ou os corporate scrips – são a forma ideal para rastrear o dinheiro, podem ser facilmente usadas para registrar quem compra o que. Na Era da Informação, o tesouro mais valioso para o marketing será a informação sobre consumidores, que já está sendo reunida em gigantescas bases de dados, como confirma a demanda sem precedentes das principais cadeias varejistas por dispositivos de armazenamento de dados. Outro sinal desta tendência: o banco sul-africano Nector dá gratuitamente a seus clientes um celular que lhes informa todas as manhãs o saldo das suas contas e, ademais, registra todas as demais chamadas que o cliente realiza, possibilitando ao banco definir o perfil de cada cliente.
  2. Relacionar a informação do código de barras do produto com a identificação pessoal do comprador. O incentivo econômico deste procedimento é quase irresistível, em especial para os vendedores de produtos de massa, pois este meio permite obter o perfil completo de milhões de consumidores, incluindo informações sobre gostos e estilo de vida.
    A perda de privacidade vai ganhando terreno aos poucos, é como o experimento no qual o sapo morre queimado sobre uma chapa porque ela vai sendo aquecida bem lentamente. Tudo isto pode acontecer graças a empresas gigantescas das quais a maioria de nós jamais ouviu falar, que aparecem de repente do nada, como baleias surgidas do fundo do mar. Não se trata de uma teoria nem de paranóia, esse processo pode ser ilustrado pela história verídica ocorrida com a maior empresa de distribuição via Internet, entre 1997 e 1998.

O caso da megaloja que os radares não detectaram
Teste rápido: Qual foi a empresa que mais vendeu via Internet em 1997 (US$ 1,5 bilhão em vendas). Uma empresa que oferece mais de um milhão de produtos e serviços diferentes on-line (compare com uma loja média da Wal-Mart com 50.000 artigos), e que dispõe de dados precisos tanto psicográficos como das operações realizadas por mais de cem milhões de consumidores (aproximadamente a metade dos domicílios dos Estados Unidos). Uma pista adicional: a empresa é também a maior franqueadora do planeta de hotéis e de imobiliárias do segmento habitacional.

Sua resposta foi Cendant? Se não acertou, não se preocupe. A maioria dos clientes desta empresa também não sabe seu nome. A Cendant resultou da fusão de duas empresas igualmente pouco conhecidas – a Comp-U-Card (CUC) e a Hospitality Franchise Systems (HFS) – que não têm nada em comum, exceto entender o poder da informação… precisamente na Era da Informação. A história destas empresas é um estudo de caso perfeito sobre como a dinâmica da Era da Informação pode concentrar poder em formas totalmente novas.

Em 1976, Walter Forbes criou a CUC como um serviço de vendas via computador. Sua ideia central era simples, mas muito sólida. Em vez de os produtores transportarem a mercadoria aos atacadistas e estes aos varejistas para que estes, por sua vez, vendam os artigos aos consumidores, os produtores fornecem à CUC uma base de dados com informações sobre seus produtos, a CUC apresenta as informações aos consumidores em formato atraente, de modo que possam comprar a preços de atacado pagando os gastos de envio. Quando alguém compra algo, o produtor recebe uma notificação e envia diretamente ao consumidor. A CUC não faz dinheiro com a mercadoria, mas principalmente com a anualidade paga pelos membros (US$69) e com a quantidade monumental de informação que acumula sobre as operações realizadas.

A CUC lançou, também, toda uma série de serviços on-line especializados: a Travelers Advantage (uma agência de viagens que oferece uma gama completa de serviços); a AutoAdvantage (compra e manutenção de automóveis); a Premier Dining (o primeiro programa nacional de refeições com descontos); a BookStacks (livros on-line); a MusicSpot (CDs); e a Shoppers’ Advantage (serviço geral de venda de produtos on-line que em 1993 já tinha 50 milhões de membros comprando artigos de uma base de dados com mais de 250.000 produtos). A CUC adquiriu sucessivamente as seguintes empresas: Madison Financial Corporation; Benefit Consultants (seguros); Entertainment Publications (livros de baixo custo); a Sierra-On-line (softwares); e sua grande franqueada europeia.

Além disto, Forbes firmou acordos com a America On Line, com a Prodigy, a CompuServe, o Citibank, a Sears e outros grandes nomes similares para prestar seus serviços de compras on-line. Dessa maneira, como a CUC não faz publicidade (nem na Internet nem por outros meios) e o fabricante faz os envios diretamente, a maioria dos clientes não têm ideia de que fez negócios com a CUC. A empresa nem sequer está obrigada a prestar informações sobre volume total das vendas, porque as operações são contabilizadas diretamente pelos fabricantes ou prestadores do serviço.

A HFS está em um mundo totalmente diferente, exceto pelo fato de a maior parte dos seus clientes também ignorar sua existência, assim como os da CUC. Ela foi fundada no início dos anos 90 por Henry Silverman. A história começou quando Silverman arquitetou a aquisição das franquias de duas cadeias de hotéis: a Ramada Inn e a Howard Johnson. O valor pago por ambas foi US$170 milhões e pela Days Inn, US$295 milhões. Em 1992, elas se tornaram uma sociedade anônima chamada HFS, que em seguida comprou a Super 8 por outros US$120 milhões, formando, assim, a maior franqueadora de hotéis do mundo. Silverman explica que poucas pessoas compreendem as vantagens de gerir uma franqueadora em vez de ser proprietário simplesmente. O franqueador promove a marca, cuida da sistemática das reservas, fornece treinamento e inspeciona os estabelecimentos franqueados. Resumindo, administra só os aspectos “limpos” da informação e recebe em troca uma comissão preestabelecida e significativa. Deixa para os franqueados todos os aspectos complicados e imprevisíveis, como as variações nos preços dos imóveis, a manutenção, e as constantes melhorias que são necessárias, as flutuações do fluxo de clientes e todos os aspectos que exigem mão-de-obra.

Em 1995, Silverman realizou outras aquisições que pareciam não ter relação entre si, como as empresas Century 21, ERA e Coldwell Banking. Desta maneira, a HFS se converteu na maior franqueadora de imobiliárias do segmento residencial do planeta. Posteriormente adquiriu, além disto, por US$ 1,8 bilhão, a PHH, um conglomerado de serviços financeiros e de serviços de relocalização de empresas. Mas a estratégia por trás destes negócios ficou evidente com a forma usada para a aquisição da Avis, a segunda empresa do mundo em locação de automóveis, por US$ 800 milhões. Antes mesmo de firmar o acordo, a HFS anunciou que iria abrir o capital da empresa, e em seguida se desfazer dos 174.000 veículos, dos 20.000 empregados e das 540 agências. Conservou unicamente o sistema de reservas e as informações, que a HFS passaria a administrar por uma taxa conveniente e previsível e, obviamente, a marca Avis a fim de vender futuras franquias. Como Wall Street ainda não deu um nome a esta estratégia, proponho chamá-la “desmantelamento de ativos de informação”.

Em decorrência disto, entre 1992 e 1997 o lucro total da HFS se multiplicou por dez, atingindo US$2 bilhões, enquanto o lucro líquido se multiplicou por 20, alcançando US$475 milhões. Porém, o ativo mais importante são os dados psicográficos, demográficos e das transações acumulados pela HFS com todas estas atividades sobre cem milhões de consumidores dos Estados Unidos – o equivalente à metade dos domicílios do país.

Foi este último ativo que fez a união de Forbes com Silverman em 1995 ser tão produtiva para ambos. Eles constituíram uma sociedade que combinaria a musculatura do marketing da CUC com a informação da HFS sobre sua base de clientes. O acordo previa que a CUC se encarregaria de oferecer seus clubes de viagens, compras, refeições e automóveis a milhões de clientes da HFS. Contudo, isso não é feito enviando e-mails inúteis, chamadas indesejadas e improdutivas de telemarketing, nem spams. Quando você liga para um dos hotéis da HFS para fazer uma reserva, uma vez finalizada, um funcionário pergunta se você deseja receber informações sobre um clube de viagens com descontos que garantem uma economia significativa durante sua estadia. Parte dos incentivos é um vale-gasolina de US$20. Se você aceita, você é transferido para um operador da CUC que dará informações sobre as ofertas especiais que você recebe se se associar ao clube. O resultado líquido: 30% de respostas positivas (compare com 1% ou 2% de índice de conversão do marketing direto). “Se o senhor vai viajar, talvez se interesse por nossa oferta especial: um automóvel da Avis esperando no aeroporto.” Quem resistiria?

E se uma empresa ao ser transferida para outro local usa os serviços da PHH Corporation, a Century 21 terá um imenso prazer em fornecer ao seu pessoal excelentes moradias perto do novo local. Obviamente, os funcionários da empresa que está se mudando devem proporcionar seus dados financeiros pessoais necessários para que a FISI Madison conceda uma hipoteca. E uma hipoteca exige um seguro de vida, para o qual eles deverão preencher formulários da Benefit Consultants com informações sobre o estado de saúde. Quando finalmente comprarem o imóvel através da Century 21, receberão – como presente de boas vindas da Welcome Wagon– uma lista de restaurantes para irem jantar, usando o Premier Dining ou uma oferta para compra de livros sobre a região da Entertainment Publications.

A Cendant foi criada formalmente com a fusão da CUC com a HFS com uma troca de ações, que elevou a capitalização do grupo a US$22 bilhões. No início, nem Wall Steet entendia a lógica deste acordo, uma lógica que é própria da Era da Informação. Por isto, o valor das ações caiu 8% e se recuperou depois que os analistas foram informados sobre a sinergia, inédita até então, que estava sendo gerada.

Em 2007, segundo Walter Forbes, o comércio via Internet acaparará entre 20% e 25% do gigantesco varejo dos Estados Unidos, que totaliza US$2 trilhões. Forbes explica: “Os custos básicos [das lojas no varejo tradicional] – tijolos, cimento, imóveis, pessoal, impostos, planos de saúde – aumentam. Eles precisam de estoques, nós não, nossos custos básicos – comunicações, bases de dados, hardware – diminuem. As vantagens de fazer compras on-line são cada vez maiores”. Quando lhe perguntam o que ocorrerá com as lojas convencionais, ele responde: “20% a 25% delas desaparecerão”, e dá a crescente lista de falências, da Montgomery Ward, da Woolworth, da Caldor e da Bradlees. “Ou elas se adaptarão. Os shoppings já estão se tornando centros de entretenimento para se levar as crianças. Aumenta a quantidade de alimentos e diversão e diminui o número de produtos. Eles já estão respondendo a um futuro que nem chegou”.168 [aos revisores: na edição argentina o número desta nota saiu equivocado] E também prevê que a concentração de poder na cibereconomia será muito maior que na velha economia industrial. “Dez empresas, no máximo, concentrarão 80% do total dos negócios on-line. Podem até ser só cinco, já que a escala, que se traduz em preços, terá uma importância incrível.” A Cendant começou a concentrar os diferentes sites da Shopping Advantage em um único portal integrado, chamado NetMarket. Como a Internet é global, estas 10 empresas podem vender para o mundo todo, não só para os Estados Unidos.

Sim, provavelmente você adivinhou: agora a Cendant também emite uma moeda própria. É a chamada “NetMarket Cash”, uma bonificação por compras frequentes, 5% do valor de qualquer compra são creditados na conta NetMarket Cash do cliente, e podem ser trocados por compras futuras: um milhão de produtos para escolher, que serão três milhões dentro de três anos. O NetMarket Cash é um embrião de corporate scrip? Ou a Cendant será só um dos sócios de uma joint venture que emite uma moeda corporativa on-line lastreada por bens e serviços reais?

Em 1998, o grupo podia fornecer aproximadamente 20% dos bens e serviços que um domicílio típico dos Estados Unidos consome (com uma base de dados de um milhão de artigos). Seus planos eram satisfazer 95% das necessidades da população do país em 1999 (com aproximadamente três milhões de produtos e serviços diferentes). Porém, entre 1998 e 1999 este ambicioso projeto sofreu um golpe grave. Um reles e antiquado escândalo contábil fez Walter Forbes renunciar à presidência derrubando o valor das ações da Cendant em 80%.169 Portanto, o “barão da informação” do mundo cibernético não deverá ser a própria Cendant, mas outra empresa – ainda desconhecida.

Steve acreditava que com fusões e aquisições poderia fazer uma fusão do universo inteiro em uma grande companhia e assim atingir o nirvana

Ilustração de Singer: Budismo Corporativo.

Da Era da Informação ao Milênio Corporativo
O importante no caso Cendant é que ele é um exemplo de consequência que a dinâmica da cibereconomia pode gerar. Também mostra que há questões que precisam ser debatidas no que se refere à concentração do poder da informação. Para coibir a concentração do mercado foram criadas as leis antimonopólio; do mesmo modo, acumular informação pode resultar em abusos na utilização da informação pessoal.

A privacidade em risco
É evidente que as novas tecnologias fazem surgir questões importantes relativas à proteção da privacidade. Embora a Cendant possa não ter intenção de abusar do poder da informação, o acúmulo de uma quantidade infinita de dados pessoais em mãos de uma só entidade, pública ou privada, só pode gerar abusos. Nunca um Estado policial foi capaz de reconstruir a vida dos seus cidadãos com tanto detalhe como o possibilitado pelo armazenamento infinito de dados financeiros, médicos e sobre transações comerciais. Nos casos que envolvem empregadores, os empregados praticamente não têm direitos constitucionais que protejam sua privacidade (veja o quadro a seguir). A cibereconomia pode estender isto a todas as pessoas.

Big Brother = Seu Chefe?
A tecnologia torna a vigilância mais barata e mais simples. De acordo com um estudo realizado em 1997 pela Associação Americana de Administração de Empresas, dois terços das grandes empresas dos Estados Unidos monitoram habitualmente seus empregados por meios eletrônicos.170 A Quarta Emenda só protege contra buscas e apreensões injustificadas se efetuadas pelo governo. As grandes empresas não são obrigadas a respeitar estes direitos constitucionais.

  • Os empregados não têm direito a privacidade alguma em escrivaninhas, gavetas, armários e arquivos pertencentes ao empregador.
  • O empregador pode ler qualquer e-mail guardado ou transmitido pelas redes da empresa, sem necessitar de motivo para isto. Da mesma forma, pode escutar qualquer conversa telefônica dos empregados sem precisar notificá-los.
  • Seu chefe pode ser proprietário de uma parte do seu cérebro. A empresa pode exigir que você entregue a ela a propriedade das inovações que você desenvolver dentro ou fora do seu local de trabalho. Por outro lado, a Lei da Espionagem Econômica, de 1996, estipula que se um empregado divulgar dados considerados “propriedade intelectual confidencial”, corre o risco de ser condenado à prisão.
  • Os empregadores se amparam nos custos da saúde para justificar os testes genéticos. Os trabalhadores não têm direito à “privacidade genética” nem proteção contra a realização de testes farmacológicos aleatórios.

A solução mais eficaz contra a perda constante da privacidade não é uma regulamentação detalhada do tipo europeu, nem novas formas de legislação antitruste, ao estilo dos Estados Unidos: o melhor é delimitar claramente os direitos de propriedade sobre os dados pessoais. Pode-se, por exemplo, especificar que todos estes dados (de transações comerciais, de saúde e financeiros) pertencem por direito ao indivíduo e só com autorização podem ser vendidos, negociados ou usados com fins que não sejam os da operação original. Na realidade, quando foi concebida a Declaração dos Direitos Individuais nos Estados Unidos ou a dos Direitos Humanos da ONU não era preciso pensar no direito à privacidade dos dados. O consumidor tendo direito de propriedade sobre seus dados pessoais:

  • ele será informado de que existem dados sobre ele que podem ser usados para outros fins.
  • ele pode obter algo em troca de autorizar que sejam revelados, como um desconto especial.

Se não se reconhece esse direito:

  • a tecnologia informática vai ganhar a batalha contra o direito à privacidade individual devido aos grandes interesses comerciais;
  • com certeza haverá abusos em função do poder da informação, e quando todos os sistemas de captura de dados estiverem em operação, vai ser cada vez mais difícil tentar corrigi-los;
  • a privacidade será uma mercadoria, poderá ser comprada por um determinado preço (por exemplo, através de uma multiplicidade de identidades digitais impossíveis de rastrear, ou de serviços sofisticados de codificação ou criptografia), será um serviço de luxo que só os ricos poderão pagar e, em decorrência disto, haverá uma nova desigualdade além de todas as outras já existentes, a desigualdade da privacidade;
  • para o cidadão comum, quanto maior a concentração de poder de informação, maior a probabilidade de que ao longo do tempo um Milênio Corporativo da informação se desenvolva.

Porém, em todo lugar, o foco dos debates políticos sobre a cibereconomia tende a ser temas como a criptografía, os impostos ou a jurisdição; as verdadeiras questões sobre a proteção da privacidade ainda não foram formuladas.

É importante compreender que para que este cenário se materialize não é necessário haver uma conspiração obscura de líderes empresariais. As corporações, como a maioria das organizações bem sucedidas, combinam estratégias reativas com proativas. Elas reagem se adequando ao que não podem mudar, mas são mais proativas quando têm a oportunidade.

A adaptação da maioria das empresas globais a esta nova realidade se revela nas nomeações dos seus presidentes executivos nas últimas décadas. Nos anos 40 e 50, a variável fundamental era a produção. A demanda de bens para a reconstrução no pós-guerra era tão grande que tudo o que uma empresa produzisse, ela seguramente conseguiria vender. Por isto, eram nomeados para esse cargo profissionais com sólida formação em engenharia. Nos anos 60 e 70, por outro lado, presidentes com excelentes conhecimentos em marketing estavam por cima, dava-se ênfase nessa área porque havia muitos produtores em todo o mundo e a chave do êxito era a venda. Ao final da década de 70, depois de que o presidente Nixon, dos Estados Unidos, inaugurou uma nova realidade monetária global, ao permitir que todas as moedas oscilassem livremente, para muitas empresas multinacionais o único grande risco era ter perdas devido às permanentes flutuações das taxas de câmbio das moedas estrangeiras. Por isto, nas décadas de 1980 e 1990, mudou novamente o perfil típico de um presidente executivo, esta vez privilegiando expertise em finanças.

Paralelamente, nos últimos 20 anos surgiu uma dualidade extrema no modo de operação das empresas maiores: uma grande descentralização da rede de produção por um lado, e por outro uma concentração global igualmente forte da gestão financeira e do caixa.

Ao mesmo tempo, em todo o mundo as prioridades dos governos também sofreram uma extraordinária mutação. Por um longo período, as grandes empresas receberam subsídios oficiais para atrair investimentos e criar postos de trabalho. Agora, além de subsídios, elas esperam do Estado muitas outras prerrogativas, como inflação baixa e menos déficit fiscal, desregulamentação – em particular na área financeira – liberdade para os movimentos de capitais e diminuição da carga tributária. Embora nenhuma destas tendências, individualmente, represente um “problema”, o conjunto delas desloca o poder dos governos para as grandes empresas como nunca antes na história.

Certamente a Era da Informação dará cartas totalmente distintas aos diversos jogadores e alterará o equilíbrio de poder entre governos, grandes empresas e a população em geral. Podemos antecipar que neste novo jogo os governos e as entidades reguladoras, além da população, perderão poder.

Não há medições quantitativas diretas a este respeito, mas a forte tendência a privatizar que se observa por toda parte nos dá alguns dados sobre o que está ocorrendo. A figura 5.1 mostra o processo de liquidação sistemática de ativos em poder dos Estados. Antes de Margaret Thatcher assumir o governo da Grã Bretanha, as privatizações eram raras; desde então, essa tendência vem ganhado terreno em todo o mundo. Em 1997, o volume havia atingido US$ 157 bilhões, cinco vezes mais que em 1990. Recentemente, os países em desenvolvimento embarcaram neste processo, representando pelo menos 30% do total.
Bilhões de dólares
Outras privatizações
Privatizações em países da OCDE

Fonte: OCDE,171 The Economist.172
Figura 5.1 Privatizações no mundo, 1990-1996

Raramente, a meu ver, é “saudável” o Estado possuir empresas, mas o ponto aqui é que esta tendência mundial a privatizar nunca vista na história é um indicador da perda de influência dos governos sobre sua economia.

Muitos outros fatores indicam que um Milênio Corporativo é plausível (veja o quadro a seguir). Também há sinais de que a população dos Estados Unidos em geral espera que surja algum tipo de Milênio Corporativo e até poderia estar se preparando para isto. O professor Astin173 da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) colheu dados reveladores em um estudo sobre os valores culturais de 9 milhões de alunos do primeiro ano de 1500 universidades nos últimos 30 anos.

O poder das grandes empresas: alguns fatos e números
Das 100 economias mais ricas do planeta, 51 são grandes empresas. Por exemplo, as vendas de General Motors superam o PIB da Dinamarca; as da Ford, o da África do Sul.
. As 200 maiores empresas do mundo controlam hoje 28% da economia mundial, embora para isto precisem empregar só 0,3% da população.174

. As vendas das 200 maiores empresas do globo equivalem a 30% do PIB mundial. Suas vendas anuais totais (US$ 7,1 trilhões) superam o PIB somado de 182 países (isto é, todos os países exceto os 9 maiores).
. Cerca de um terço do comércio global é, na realidade, intracorporativo, isto é, se constitui de subsidiárias de uma empresa exportando entre si.
. As grandes empresas dos Estados Unidos pagam menos impostos à nação que o valor recebido dos contribuintes a título de subsídios governamentais.175 Em 1994, receberam US$ 167 bilhões em isenções de impostos; compare com os US$50 bilhões de despesa total do país com o programa assistencial para famílias com dependentes (o Aid to Families with Dependent Children ou AFDC).176
. Em 1997, a Business Week revelou que a remuneração dos presidentes destas mesmas grandes empresas subsidiadas havia atingido uma média de US$ 5,5 milhões por ano, enquanto os salários dos trabalhadores seguiam estancados. Na década de 1960, os salários dos presidentes eram 30 vezes os de um trabalhador médio, enquanto hoje são 200 vezes mais altos.177
. No início da década de 1950 (50-54), a proporção entre os impostos (municipais, estaduais e federais) pagos pelas grandes empresas era 76 centavos para cada dólar pago pelos indivíduos. Entre 1980-92, o gasto das empresas com impostos caiu para 21 centavos para cada dólar de impostos dos indivíduos.178 No Canadá, mesmo em um ano no qual as grandes empresas obtiveram recordes de lucros, como ocorreu em 1996, os impostos sobre os lucros das grandes empresas recuaram para 14,5 centavos para cada dólar dos impostos pagos pelos cidadãos.

O gráfico abaixo ilustra as respostas a duas perguntas sobre “valores” dos universitários. Qual a razão dos alunos para frequentarem a universidade, se ela era essencial ou muito importante para “desenvolver uma filosofia de vida plena de significado” ou para “ficar muito bem posicionado economicamente”.

Porcentagem
Desenvolver uma filosofia de vida plena de significado
Ficar muito bem posicionado economicamente

Figura 5.2 Objetivos considerados “essenciais” ou “muito importantes” por alunos ingressantes na universidade nos Estados Unidos (1966-1996) (porcentagens)

O resultado mais extraordinário do estudo foi a inversão radical ocorrida entre estes dois objetivos com o passar do tempo. É surpreendente comprovar que em 1968 82,9% dos calouros responderam que a universidade era “essencial” ou “muito importante” para “desenvolver uma filosofia de vida plena de significado”. Na ocasião, só 43,3% respondeu que “ficar muito bem posicionado economicamente” era essencial ou muito importante. Em 1996, os dos objetivos haviam invertido totalmente sua importância relativa. Hoje, para a grande maioria (74,1%) a prioridade é “ficar muito bem posicionado economicamente”, enquanto “desenvolver uma filosofia de vida plena de significado” ocupa o quinto lugar (só é importante para 42,1% dos alunos). É significativo que a variável que parece explicar melhor esta mudança nos valores é a quantidade de horas em frente à TV antes de iniciar os estudos. Observa-se que quem passou menos horas mostrou tendência a valorizar outras coisas mais além do dinheiro; enquanto que os mais expostos à TV tendiam invariavelmente a crer que o dinheiro é o único que conta.

De acordo com o estudo do professor Astin, as gerações que chegavam à universidade na década de 1960 haviam visto muito menos TV, em grande medida porque a maioria dos lares nos Estados Unidos não tinha sequer uma TV em branco e preto na década anterior. Na década de 1980, quase todos as casas nos Estados Unidos tinham pelo menos um televisor a cores, e com frequência vários. Em 1997, nos Estados Unidos, as crianças que terminavam o ensino médio haviam passado mais de 20.000 horas diante de um monitor de TV, quase o dobro das 11.000 horas passadas em sala de aula.179 “Como a mensagem comercial que a TV emite é, quase por definição, materialista, e grande parte da própria programação promove os valores materialistas (lembremo-nos de programas como Dallas, Ricos e famosos, etc.), talvez seja lógico supor que ver muitas horas de TV fomente valores materialistas nos jovens. […] Sem dúvida, a TV não estimula a contemplação nem a reflexão sobre os grandes problemas da vida.”180

É possível que esta tendência seja o resultado do que Noam Chomsky chamou de “Consenso Fabricado”? Ele afirma que o objetivo dos meios de comunicação convencionais não é informar sobre o que ocorre, mas formar a opinião pública de acordo com as prioridades para o poder das grandes empresas dominantes. Como observou o último primeiro-ministro britânico: como as grandes empresas também controlam os conteúdos dos meios de comunicação, elas têm como neutralizar qualquer influência equilibradora que esses meios poderiam vir a ter. Em decorrência disto, “na prática em todo lugar a mídia transmite ao público principalmente mensagens comerciais, […] na maioria dos atuais veículos de notícias é difícil descobrir conteúdos que poderiam contribuir para que os cidadãos das sociedades democráticas tomem decisões políticas baseadas em informações adequadas. […] já chamaram os meios de comunicação de ‘armas de distração em massa’”.181

Publicidade por todo lado182
A publicidade está em toda parte, a ponto de constituir a expressão cultural por excelência da nossa época. Quem assiste TV se acostumou a receber um bombardeio de anúncios, mesmo quem assiste a filmes ou vídeos. Vários outros espaços antes estavam livres de anúncios:

  • Etiquetas gigantes sobre as roupas transformam quem usa em um cartaz ambulante grátis.
  • A Fruit Label Company, sediada na Califórnia, coloca anúncios nas frutas: Para o lançamento em vídeo do filme Jurassic Park foram colocadas pequenas etiquetas em 12 milhões de maçãs Granny Smith e Fuji distribuídas nos supermercados dos Estados Unidos. As possibilidades são infinitas: colocar etiquetas em abacaxis ou pepinos com os dizeres “Se não quer um pepino, compre um Ford”, ou adesivos da sopa Campbell em tomates frescos.
  • A Autowraps, Inc., de San Francisco, e a FreeCar Media, de Los Angeles, estão revestindo automóveis – inclusive os vidros – com gigantescos anúncios em vinil impresso por meios digitais. “É melhor que os outdoors. Eles vêm até você”.183 Para a empresa pagar ao dono do veículo US$400 por mês ele precisa rodar no mínimo 1300 km por mês e estacionar em bairros muito cotados que não tenham cartazes de propaganda. A operação é vigiada por GPS.
  • O contrato de US$100 milhões por cinco anos que a Nike firmou com Tiger Woods gerou grandes benefícios para a empresa graças ao sucesso do jogador. Sem dúvida é “o homem Nike da cabeça aos pés: ele usa calçados, roupas, luvas e bonés da Nike, e inclusive a bola Precision Toner Accuracy da Nike”.
  • As praias são um novo ambiente promissor para a propaganda. Por US$25.000 mensais pode-se escrever todos os dias uma gigantesca mensagem na areia. Além disto, há um desconto para os dias de chuva porque “menos pessoas verão o anúncio”.
  • “A Reebok contratou um artista de Nova York para borrifar tinta nas calçadas e ruas da cidade (sem autorização municipal).”184
  • Começaram a aparecer os primeiros anúncios na altura dos olhos em banheiros e mictórios públicos, para aproveitar um “público cativo”.
  • Com a redução dos gastos públicos em educação, cada vez há mais universidades que cortam custos oferecendo seus estudantes às grandes empresas. A Universidade de Stanford oferece um curso de computação no auditório Hewlett Packard do Edifício Bill Gates de Ciência da Computação. Em um caso como este, o meio não se tornou mensagem? Para a Cycle Stops Displays, de Ottawa, Canadá, os campi universitários também são um alvo importante. A entidade fornece gratuitamente suportes para bicicletas com painéis publicitários bem visíveis. A universidade de Guelph foi a primeira a aceitar os suportes.
  • Em 1995 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que uma cor pode ser registrada como uma marca. A campanha de marketing global da Pepsi chamada Project Blue inclui patentear um azul royal, e uma produção de US$ 50 milhões para o primeiro filme rodado no espaço, em cooperação com a estação aeroespacial russa Mir. A Pepsi está avaliando a possibilidade de colocar um gigantesco cartaz-satélite permanente no espaço ao redor do planeta – assim que a tecnologia tornar isto economicamente viável.
  • Sons também podem ser patenteados. A MGM registrou o rugido do leão, a NBC suas três badaladas, e a Harley Davidson protocolou um requerimento para patentear o “ronco do porco” o som característico do seu motor.
  • O filme “O amanhã nunca morre”, de James Bond, refinou o conceito de “promoções integradas em escala global” combinando o marketing do filme com o de uma série de produtos relacionados. A locadora de automóveis Avis, a BMW, a vodka Smirnoff, a Visa International e a Heineken anunciaram promoções de produtos associados com o filme. Por exemplo, em todos os lugares onde se venda a cerveja Heineken serão colocados painéis com a imagem da estrela 007; e o filme mostra uma colisão espetacular do BMW do protagonista contra um caminhão dessa bebida.
    A “publicidade virtual”, a inserção de imagens geradas por computador em cenas de TV, começou em eventos esportivos (por exemplo, em uma transmissão ao vivo de uma partida de tênis aparece um aviso gigante de refrigerante no meio da quadra); mas agora esta prática também foi estendida aos programas. Pode-se colocar objetos que não estavam na filmagem original, uma garrafa da água Evian sobre a mesa, ou uma sacola de uma loja da moda na recepção de um hotel. Estes anúncios introduzidos nos programas ao vivo produzem um impacto maior que os emitidos durante os intervalos, pois “as pessoas prestam mais atenção durante o programa que nos comerciais”185 e podem ser modificados nas reprises ou em outros mercados. Ficou pitoresco, depois disto, o velho debate sobre a colorização dos filmes antigos em branco e preto.
  • Desde 1997, a Academia de Artes e TV dos Estados Unidos – que dá os prêmios Emmy – incluiu uma nova categoria, “Melhor anúncio”. Afinal, na indústria televisiva a maioria das pessoas talentosas vai para a produção de comerciais, e gasta-se muito mais dinheiro que nos programas.
  • Por outro lado, o doutor Marty Rossman, diretor da Academia de Imagens Guiadas, que foi pioneiro no uso de imagens para fins médicos, afirma que a publicidade deveria ser considerada uma “contaminação da imaginação”. Afirma que o uso e abuso das imagens mais potentes possíveis, para fazer com que as pessoas se sintam incompletas, têm enormes consequências nos custos sociais e de saúde. Os arquétipos mais poderosos, desde o corpo feminino até as combinações subliminares de cores, são comprovadamente muito eficazes para vender produtos, mas a que custo psicológico e para a saúde?

Os humanos, ao contrário do que ocorre com outras espécies, desenvolvemos, nos últimos 300.000 anos, pelo menos, a capacidade, geneticamente incorporada, de ponderar sobre os mistérios do universo em que vivemos e celebrá-los. Ao entardecer, hipnotizados ante a TV, as crianças de hoje encontram ali o equivalente dos mitos, das lendas e dos cânticos dos ancestrais, outrora comuns nas cavernas onde eram realizados os ritos de iniciação. “Poderíamos dizer que os cantos foram substituídos pelos programas da TV, mas no centro de cada uma dessas transmissões o que motiva a ação e determina se o programa terá uma próxima temporada são os comerciais. Que efeito eles têm sobre nossos filhos? Uma criança, antes de entrar no primeiro ano escolar e antes de ter uma participação ativa em uma cerimônia religiosa absorve 30.000 anúncios. Ninguém gosta muito desta ideia, mas em grande medida nós a ignoramos, para nós os comerciais são ruído de fundo. Aprendemos a aceitá-los faz tanto tempo que já nem pensamos neles.

Esta noção de que a publicidade está se tornando a religião do presente pode ser chocante para algumas pessoas, mas os próprios anunciantes afirmam que: “As marcas são a nova religião. As pessoas buscam sentido para suas vidas nas marcas”. Assim afirmou a agência de publicidade Young & Rubicam, em um relatório publicado pelo Financial Times.186 A Fitch, consultoria de design com sede em Londres, observou que nos domingos as pessoas iam em massa à loja Ikea em vez de ir à igreja. Desde 1991, 12.000 pessoas se casaram na Disneyworld, e é cada vez mais comum que fãs das motocicletas Harley-Davidson sejam enterrados em caixões da mesma marca. Segundo Jim Williams, diretor de estratégia da Young & Rubicam Europa, é possível comparar os criadores de marcas com os missionários que pregavam o cristianismo e o islamismo em todo o mundo: “A paixão com que difundiam seu credo foi o que fez milhões de pessoas aderirem, pois estas religiões se baseavam em ideias muito poderosas, que davam à vida um sentido e um propósito”.

[NT -Ikea é uma cadeia muito popular de móveis e artigos para a casa]

Porém, indo mais fundo, o que devemos questionar é o poder que o anunciante tem de difundir uma cosmovisão, uma minicosmologia baseada na insatisfação e no desejo. Um dos lugares comuns sobre como se constrói um anúncio sintetiza isto da seguinte forma: “o que um anúncio precisa fazer é deixar as pessoas infelizes com o que elas têm”.187 Resumindo, os valores que temos não são inatos, são uma criação cultural, e nossa cultura está saturada com os interesses da propaganda das grandes empresas (veja o quadro da página seguinte). No final das contas, o materialismo e o consumismo se tornaram a religião e a visão de mundo que de fato estão sendo inculcadas nas crianças hoje.

É preciso destacar uma vez mais que não é preciso haver uma conspiração secreta para que isso ocorra. No auge das décadas de 1950 e 1960, a tecnologia não permitia que as emissoras cobrassem diretamente dos consumidores; Portanto, cobravam dos anunciantes pelo tempo que expunham anúncios aos espectadores nos intervalos dos programas. “Isto criou nos programas uma tendência do tipo ‘mínimo denominador comum’. Tomemos dois programas, um que fascina 500.000 pessoas e outro que 30 milhões escolheriam só para não terem que ficar olhando o teto”. Os anunciantes que pagam pelo programa optarão pela audiência em massa, pois o grau de interesse do público no programa tem pouca relação com a eficácia do anúncio. Se os expectadores pagassem, muito provavelmente escolheriam o programa que agrada o grupo pequeno. “por isto, a existência de anúncios pagos incentiva a transmissão do programa que uma massa tolera, e não de algo que um nicho amaria”.188

Educação S.A.
A Educação S.A., depois de aprovada no jardim de infância da TV comercial, bem pode se tornar o futuro da escolaridade e continuar em frente até as universidades mais conceituadas. “Este é o futuro: as universidades terão que ser empreendedoras, definir seus currículos e outros aspectos juntamente com as grandes empresas, do contrário será o fim para elas”, esta foi a conclusão de Del Weber, reitor da Universidade de Nebraska,189 depois que a First Data Resources construiu no seu campus uma faculdade de engenharia pensada especificamente para satisfazer as necessidades da empresa. Será que esta “empresificação” das universidades é outro passo na mesma direção que tantos outros setores da sociedade estão percorrendo? (veja o quadro a seguir).

Tudo S.A.
Veja aqui algumas áreas da vida que não caíram no domínio das grandes empresas, mas onde podem ser detectadas novas tendências:
. “Devemos reconhecer que a reconfiguração arquitetônica de nossas metrópoles e municípios não foi democrática, as decisões foram tomadas de cima para baixo por agentes de grandes empresas.”190 Uma forma extrema disso são os shoppings, que têm segurança particular e suas normas próprias, substituindo as vias públicas; ou os clubes, que ocupam o lugar do espaço público de lazer. As cidades estão sendo substituídas por conjuntos residenciais inteiros e por condomínios fechados, construídos e administrados por grandes empresas. Estas “comunidades seguras” passaram de 1000 em 1965 a 80.000 em 1985, e nos últimos anos esta tendência se acelerou.
. Os seus genes pertencem a umas poucas dúzias de grandes empresas que os patentearam, apesar do fato de os contribuintes terem entrado com cerca de US$3 bilhões para o financiamento da pesquisa. Os direitos das empresas não se referem só aos genes, eles se estendem a toda e qualquer descoberta futura que empregue um gene em particular.191
. A “força de paz mais eficaz do planeta” não é a das Nações Unidas, mas a da Executive Outcome, uma companhia mercenária da África do Sul que opera e mantém sistemas de alerta antecipado de mísseis balísticos, realiza manutenção de aviões de combate, administra aeroportos e prisões, controla trânsito em túneis, faz vigilância em cidades, tem a seu cargo o fornecimento municipal de água, de serviços de esgoto e de sistemas de comunicação em 30 países.192
. “Enquanto os governos lutam contra as drogas, com resultados frequentemente lamentáveis, as grandes empresas farmacêuticas conseguiram autorizações para produzir drogas como estimulantes e antidepressivos, cujos efeitos, cabe afirmar, são tão sérios como os das drogas proibidas.”193
. Muitos esportes, igrejas e seitas religiosas se converteram em grandes negócios.
. Dennis Judd, do Departamento de Assuntos Urbanos da Universidade de Missouri, em Saint Louis, afirma: “Nas grandes empresas nós sempre toleramos restrições que jamais toleraríamos na esfera pública. Mas o que muitos não percebem é que tudo na nossa vida vai ter a ver com algum tipo de grande empresa”.

Ao estudar como evoluiu a percepção dos calouros sobre a importância de “se manter atualizado sobre as questões políticas” (figura 5.3), o professor Atkin lidou com outra das finalidades da educação universitária. Os resultados ilustram uma das preocupação manifestadas pelo “último primeiro-ministro”.

Figura 5.3 porcentagem dos alunos de primeiro ano de universidades dos Estados Unidos entrevistados que consideraram “essencial” ou “muito importante” “Manter-se atualizado sobre as questões políticas” (1966-1996)

Este gráfico mostra que até calouros concluíram que a política é cada vez mais irrelevante, e que o verdadeiro poder de decisão está em outra esfera. O debate político mal toca neste assunto. “Enquanto os liberais cometem o erro de pensar que existe um programa ou uma política para lidar com cada um dos problemas do mundo, o erro dos conservadores é só cuidar para que o poder não fique demasiadamente concentrado nas mãos do Estado, sem se preocupar com o poder do setor privado, que pode ser arquitetado de uma forma mais velada e, às vezes, mais perigosa. …As grandes empresas são como feudos que evoluíram e se tornaram estados nacionais; são simplesmente a vanguarda de uma re-organização darwinista da política.”194

Há sinais de que muitas pessoas estão tomando consciência dos riscos do Milênio Corporativo. Alguns exemplos:

Credibilidade dos meios de comunicação
. A credibilidade da mídia em geral caiu a um dos patamares mais baixos da história: uma enquete realizada em 1997 pelo instituto Harris Poll apurou que só 18% do público dos Estados Unidos ainda confia nos noticiários da TV e 12% na imprensa escrita. As porcentagens mostram uma queda constante; em 1990 eram respectivamente 27% e 18 %,. Outra enquete mostrou que em 1985, 84 % dos cidadãos nos Estados Unidos sentia que seus jornais eram honestos o bastante, em 1996 essa proporção havia caído para 47%. Nos Estados Unidos, em 1985, 55% das pessoas acreditava que as empresas de notícias “davam as notícias corretamente”, já em 1997 esse número estava em 37%.195 Menos pessoas se interessam pela TV convencional: a audiência da TV, controlada pelas três principais cadeias dos Estados Unidos (ABC, NBC e CBS), caiu de 75% em 1987 para menos da metade (49%) em 1997. Agora é prática recorrente em várias revistas submeter seus artigos a uma leitura prévia por seus anunciantes. O Los Angeles Times reorganizou, inclusive, sua estrutura gerencial visando maximizar a cooperação entre os anunciantes e a editoria.

. Porém, existe cada vez mais consciência de que o Milênio Corporativo é uma armadilha mortal para a credibilidade da mídia. “conseguir a credibilidade implica ter reputação de informar corretamente, mesmo quando a informação pode ter consequências indesejáveis para quem presta esse serviço”.196 Resumindo, na Era da Informação o verdadeiro capital é a credibilidade, e apostar nos interesses das grandes empresas para obter ganhos de curto prazo é fazer mau uso de um capital que pode ser irrecuperável. Peter Bhatia, membro da diretoria da Sociedade Americana dos Editores de Jornais, afirma: “Nossa credibilidade está no nível mais baixo da história. Atualmente estamos fazendo muita autocrítica em nosso setor”.197 A Columbia Journalism Review chamou de “o grande aperto” a censura feita cooperativamente pelas editoras e grandes empresas.198 Em uma democracia, o que está em jogo, em última instância, é a legitimidade dos meios de comunicação e das grandes empresas.

Uma exceção digna de nota foi o relatório especial muito completo sobre “A assistência social às grandes empresas”. publicado pela revista Time 199 Nele, esta expressão é definida como “qualquer medida de um governo local, estatal ou nacional que proporcione a uma empresa ou a todo um setor um subsídio, um imóvel, um crédito a juros baixos, ou um serviço público. Também pode ser uma isenção de impostos”. A conclusão: “Só a esfera federal do governo [dos Estados Unidos] desembolsa US$ 120 bilhões por ano em assistência social às grandes empresas. Busca-se justificar esta prática, em grande medida, alegando que o governo com isto cria postos de trabalho.

Durante os últimos 6 anos, o Congresso dos Estados Unidos destinou US$ 5 bilhões ao Export-Import Bank, que subsidia empresas exportadoras… Mas os números das corporações mais beneficiadas pelo Ex-Im Bank – AT&T, Bechtel, Boeing, General Electric e Mc Donnell-Douglas (que agora pertence à Boeing) – revelam outra história. Nessas empresas, que na última década acapararam 40% de todos os empréstimos, subsídios e garantias a longo prazo, o número de postos de trabalho foi reduzido em 38%, pois foram suprimidos mais de 300.000 postos de trabalho. Hoje, a indústria do lobby possui, segundo se estima, cerca de 11.000 organizações e agências cujo propósito é obter subsídios de diferentes entidades governamentais, elas têm publicações especializadas e boletins próprios, realizam seminários, conferências e sessões de capacitação. O panorama é praticamente o mesmo no âmbito estatal e local… Não há estimativas razoáveis sobre o total de dinheiro que os estados distribuem. Só o que se sabe ao certo é que a quantia chega a vários bilhões de dólares por ano, e segue aumentando em termos de subsídios por posto de trabalho” (veja o quadro a seguir). Deve-se reconhecer à Time o mérito de ter mencionado no seu relatório especial sob o título “Nós também estamos no jogo”, uma série de subsídios obtidos pela Time Warner, Inc., a empresa que possui a revista.

Subsídios por posto de trabalho criado
A proporção entre subsídios e postos de trabalho nas dá pistas sobre a validade do argumento da “criação de emprego” para este tipo de subsídio.200
. O estado de Ilinóis pagou US$44.000 à Sears, Roebuck & Co. por posto de trabalho para que a empresa não mudasse sua sede central para outro estado.
. O estado de Indiana pagou US$72.000 por posto de trabalho à United Airlines em uma planta de manutenção de aviões.
. O estado do Alabama concedeu US$169.000 à Mercedes-Benz para cada posto de trabalho em sua montadora de Tuscaloosa.
. A Pensilvânia deu à Kvaerner ASA, uma empresa norueguesa de engenharia, US$323.000 por posto de trabalho para que ela reabrisse seu estaleiro Philadelphia.
. A Luisiana é o estado recordista dos subsídios, dando por posto de trabalho US$ 100.000 à Uniroyal, US$3.100.000 à Procter and Gamble, US$4.000.000 à BP Exploration, US$10.700.000 à Dow Chemical e US$29.000.000 à Mobil Oil Co.

A assistência social às grandes empresas
A Time não fez mais que confirmar os protestos de Ralph Nader, um persistente defensor dos consumidores que se candidatou à presidência dos Estados Unidos em 1996 e 2000 e cuja campanha foi totalmente ignorada pela imprensa dominante. Nader fez um inventário de 120 “programas de assistência social a grandes empresas” no qual afirma que:
“Hoje é difícil encontrar um setor importante, como a tecnologia aeroespacial; as telecomunicações; a biotecnologia ou a agroindústria, no qual os principais investimentos não tenham sido feitos pelo Estado. A indústria farmacêutica se financia com o dinheiro do governo destinado à pesquisa e desenvolvimento. Ninguém fala em ‘ajuda’ para empresas dependentes; só se fala em ‘incentivos’ […]. Nas comunidades, em cidades que nem sequer podem reformar suas escolas deterioradas, onde as crianças não têm carteiras nem livros, governos locais destinam 300, 400, 500 milhões de dólares para subsidiar atividades esportivas de grandes corporações. […] As grandes empresas aperfeiçoaram as formas de socializar suas perdas e capitalizar os lucros. Com o colapso das mais de 470 instituições de poupança e crédito, (a chamada crise das “savings and loans”) vocês estão pagando um pacote de salvamento de meio trilhão de dólares em principal e juros até o ano 2020. As grandes empresas podem ir para as nossas terras no Oeste e obter subsídios para destruí-las (veja o quadro da página seguinte). […] quando você cresce e entra pra uma destas empresas, você não ouve falar nada sobre a realidade da assistência social destinada a elas”.201

O Instituto do Petróleo dos Estados Unidos, por exemplo, tem uma equipe de lobistas em Washington com mais de 500 funcionários em período integral e um orçamento anual de US$ 50 milhões. Este deve ser um dos melhores investimentos em poços de petróleo do setor. Em um artigo da revista Scientific American, Harold Hubbard estima que o montante total dos subsídios, diretos e ocultos, que beneficiam o setor da energia convencional “oscila entre os US$ 100 bilhões e os US$ 300 bilhões anuais só nos Estados Unidos”.202

Poder empresarial autônomo
. David Korten, PhD pela Stanford Business School que, além disto, foi docente na Harvard Business School antes de trabalhar na Fundação Ford e na US AID (Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional), conclui que “as grandes empresas da atualidade são cada vez mais entidades isoladas, inclusive das pessoas que as integram. Os membros da classe empresarial, independentemente do poder que tenham dentro da organização, se tornaram prescindíveis, esta é uma lição que um número crescente de executivos de primeiro escalão está aprendendo. À medida que as empresas ganham mais poder institucional autônomo e se descolam das pessoas e dos lugares onde operam, aumenta a divergência entre o interesse humano e o empresarial. É quase como se estivéssemos sendo invadidos por extraterrestres tentando colonizar o planeta, nos reduzindo a servos e logo excluindo a maior quantidade possível de nós”.203
. Ian Angell, professor de Sistemas de Informação na Escola de Economia de Londres, escreve no jornal britânico The Independent: “O principal problema do futuro será a enorme quantidade de pessoas desnecessárias para os interesses das empresas que, portanto, não terão formação nem treinamento, e estarão envelhecendo cheias de ressentimento… A lenta redistribuição da riqueza à qual nos acostumamos depois da Segunda Guerra Mundial já está se revertendo rapidamente, e o futuro será marcado pela desigualdade. Estamos entrando em uma época de desesperança, de rancor, de fúria. […] O mundo já pertence às grandes empresas mundiais. O Estado nacional está gravemente enfermo”.

. Subsídios para degradar o país
Há nos Estados Unidos toda uma série de subsídios cujo principal efeito é incentivar as grandes empresas a degradar solos. The Economist, revista da qual é difícil suspeitar que tenha um viés anti-empresas, lista os exemplos abaixo.204 Tanto os democratas como os republicanos apóiam estas políticas; e a ironia é que agem assim em nome de um individualismo rústico, que, segundo se diz, é típico do estilo de vida do oeste.
. Os subsídios para a mineração são praticamente os mesmos desde 1872, quando o Congresso buscava incentivar a colonização do velho oeste. Qualquer pessoa que localize um lote de terra do estado que tenha minérios como ouro, prata, platina ou cobre, pode obter uma patente para comprar a terra por um valor de entre US$6,25 e US$12,50 o hectare. Em 1994, uma empresa mineradora pagou US$9.765 por uma área no estado de Nevada cujo mineral bruto tinha um valor estimado em US$10 bilhões. Entre maio de 1994 e setembro de 1996, terras que continham minerais valendo US$16 bilhões de dólares foram vendidas por US$19.190. As empresas não pagam um centavo de royalties ao governo. E para completar, quando elas encerram suas atividades, as mineradoras deixam para trás todo o trabalho de limpeza. A Associação de Governadores do Oeste estima que há 4800 quilômetros de rios contaminados pelos resíduos da mineração de rocha dura. Desde 1995, está suspensa a concessão de novas patentes, mas todos os esforços para reformar a legislação fracassaram.
. Os fazendeiros levam gado para pastar em terras privadas e do estado, e pagam por cabeça. A diferença é que em 11 estados, os proprietários privados recebem uma média de US$11,20 por cabeça. E o estado recebe US$1,20. Desta maneira, o governo federal recupera só US$ 25 milhões dos US$ 77 milhões que custa só a administração do programa. As pastagens subsidiadas se estendem por 270 milhões de acres, o equivalente à superfície dos estados da Califórnia e do Texas juntos. Além disto, um estudo realizado pelo Bureau of Land Management (Departamento de Administração de Terras do Ministério do Interior) estima que, em decorrência deste programa, 60% das terras de pastagens perderam a metade das espécies de plantas nativas e gramíneas.
. O sistema de vendas da madeira remonta a 1897, e inclui a construção em bosques virgens do estado de estradas para transportar os troncos – à custa do estado –. Uma vez mais, os ganhos com as vendas de troncos não cobrem os custos do programa. E todos os projetos de lei visando a suspensão dos subsídios permanentes à construção dessas estradas fracassaram.
. Na Califórnia, onde a água é um bem escasso, são necessários 12.900 litros de água – em grande parte subsidiada – para obter um dólar com o cultivo da beterraba sacarina. Os Everglades, na Flórida, vinham sendo drenados, desde a década de 1920 até a de 1970, para controlar as inundações. Esse processo destruiu um ecossistema excepcional. Nos 700.000 acres de terra recuperada está sendo cultivada a beterraba para produção de açúcar. Essa superfície continua em expansão, apesar de um programa federal orçado em US$ 1,5 bilhão para recompra das terras dos Everglades onde se cultive beterrabas sacarinas. Enquanto isto, tarifas aduaneiras proibitivas impedem a importação de açúcar oriundo de países onde ele é produzido a baixo custo.

. Peter Montague, da Fundação para a Pesquisa Ambiental (Annapolis, Maryland), afirma: “Em grande medida, são grandes empresas que determinam todos os aspectos essenciais da vida moderna, como a Igreja fazia na Idade Média. […] Pequenas elites empresariais exercerão uma influência decisiva no que a maioria de nós iremos ler; o que veremos no cinema ou na TV; os temas que serão tratados e debatidos publicamente; as ideias que nossos filhos absorverão nas aulas; como serão cultivados, processados e comercializados os alimentos e as fibras; quais produtos de consumo serão fabricados, com quais tecnologias e quais matérias-primas; se uma assistência médica a um preço acessível será ou não amplamente disponibilizada; como o trabalho será definido, organizado e remunerado, quais formas de energia estarão disponíveis; quanta poluição tóxica haverá no ar, na água, no solo e nos alimentos; quem terá dinheiro suficiente para financiar uma campanha eleitoral e quem não”.

A raiz do problema?
Embora estas preocupações sejam pertinentes e pungentes, cheguei à conclusão que elas atacam os sintomas mais que as causas. Na história moderna do Ocidente, quatro estamentos compartilharam e/ou equilibraram o poder e a influência: os estados, as empresas, as universidades e os meios de comunicação. Hoje, de forma mais flagrante e direta do que nunca, o dinheiro controla todos os quatro. Até os presidentes das empresas mais poderosas são obrigados a satisfazer os desejos do mercado financeiro, do contrário são demitidos e substituídos por outros dispostos a isto. O sistema monetário atual castiga brutalmente quem der prioridade ao longo prazo sobre os lucros do próximo trimestre. Em certo nível, estamos todos aprisionados em um mesmo jogo monetário.

Resumindo, é o sistema monetário que cria o conflito estrutural que afeta tantos presidentes de empresas: o conflito entre os interesses dos acionistas, sua própria ética pessoal e sua preocupação com o futuro dos seus netos. Minha contribuição para a solução deste dilema é propor um sistema monetário que limite o poder das empresas, direcionando-o para o objetivo da sustentabilidade de longo prazo (capítulo 9: Uma moeda mundial de referência para um mundo sustentável).

Ainda que pareça que o Milênio Corporativo esteja pairando inexorável sobre nós, este cenário representa uma, apenas, das possibilidades de substituição do poder dos estados nacionais. O cenário seguinte – o das Comunidades Cuidadoras – mostra um outro conjunto de dinâmicas muito diferente.

Comunidades Cuidadoras
Uma noite, um sonho estranho me despertou. Sonhei que estava em São Francisco, na colorida esquina da Haight Street com o parque Golden Gate*. Eu estava em um café, ao lado de uma pequena loja com um letreiro chamativo: “Tatuagens Tsutomo” e podia ouvir um pai falando por bastante tempo com uma adolescente. Na parede do café havia um calendário do ano 2020. E o pai dizia…205

Haight Street 2020
Essa primeira foi da Nike, tipo em 1994, eu era um garotão – 23 anos. Eu trabalhava – imagina – entregando correspondência É… era em papel. Na época ainda era permitido derrubar uma árvore. Bom… nós é que começamos, sabe? todo mundo tinha uma “tatsume”, a tatuagem dizendo no que cada um trabalhava, a história, o caminho das pessoas. A tatuagem te identificava como sendo de uma família.
Esta é da Microsoft. Não, não “Sonysoft”. Microsoft era quando Gates estava vivo. Então… dele, você ouviu falar. É o logo do Windows 95, bom, redesenhado para ser o do Windows 98. Eu era do atendimento telefônico. Cara, isso era feito por gente. Eu morava em Seattle. Do nosso grupo alguns moravam juntos em uma casa perto do Capitol Hill, não era uma comuna nem nada dessas coisas que rotulam como “de hippie” que aparecem nos documentários. A gente só dividia um espaço; não compartilhava mais nada, nós nem éramos chegados. Isso foi antes do tratamento.

Aí eu conheci uma mulher incrível em São Francisco e acabei me mudando para cá em 99. Esse aqui é o logo da Java Jonestown, o café onde eu trabalhava em North Beach. Mas começaram a acontecer umas coisas estranhas. Umas loucuras religiosas junto com o bug do milênio206 espalharam uma sensação de irrealidade e medo do futuro em quase tudo no nosso dia a dia.

No ano 2000, meus pais foram morar com um grupo religioso tipo apocalíptico em Idaho. Eles insistiram para eu ir para lá, mas sempre que eu ia visitar, eu via que não ia ter como eu me adaptar, a minha idade não batia e além do mais eu não tinha filhos. Depois, quando eu deixei de vez a Irmandade Cristã de Idaho (a Comunidade Kuna), o pessoal não ficou muito triste de eu estar indo embora. Mas o gozado é que pelas viagens e pelas mensagens que meus pais mandavam pra minha casa em São Francisco, entendi que estava acontecendo exatamente a mesma coisa nos dois lugares. Todo mundo estava se aglutinando em comunidades herméticas, pequenas, homogêneas. Também os hippies mais excêntricos e os gays se fecharam em seus nichos.

Logo veio o Grande Colapso. Nunca entendi realmente o que foi que derrubou o castelo de cartas do velho jogo do dinheiro. Só sei que começou quando os bancos do Japão ficaram de pernas pro ar com a perda de US$ 1 trilhão ou algo assim, e tudo desabou sem nem terem tempo de imprimir a noticia nos jornais. Depois nada ficou igual: os governos, as empresas… tudo o que dependia de contatos internacionais começou a travar ao mesmo tempo.

Esse é o código de barras da Americorps II, uma das últimas coisas que o governo conseguiu lançar. Amitai Etzioni pensou nisso quando estava no Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos e os conservadores adoraram, porque registrava nossos passos, nos mantinha em segurança e nos fazia sermos cuidadosos. A metade do meu prédio entrou para a Corps, ainda trabalhando na Microsoft. O Grande Colapso tinha abalado todo mundo de uma forma ou de outra, alguns no trabalho, outro tiveram amigos com problemas, e muita gente perdeu casa por não poder pagar a hipoteca; enfim… a gente precisava achar um jeito de lidar com tudo isso. Eu fiz terapia on-line. Por isso o meu código da Corps é o azul.

Para a Califórnia, o cúmulo foi quando chegou o Superterremoto. Quase todo mundo perdeu alguém. Eu tive sorte, porque nesse dia eu não estava na cidade tinha, eu tinha ido ver uns fornecedores em Sonoma. Esse desastre derrubou, também, a importância que os figurões de Washington tinham para a gente. Depois do Grande Colapso, eles já não tinham controle sobre bancos; com o Superterremoto, eles tiveram que soltar o que sobrou.

Uma das formas que a gente tinha de se manter cada um na sua tribo, eram as moedas locais. Algumas já estavam rolando tinha uns 10 ou 20 anos, mas antes pouca gente levava a sério. Depois do bug do milênio e do Grande Colapso, elas começaram a se espalhar, era um jeito de sobreviver.

Quando você nasceu, seus avós queriam muito que a gente voltasse a Idaho, mas eu não queria que você crescesse lá. A pressão foi grande, mas no fim decidi ficar em São Francisco.

Não sei se você sabe, mas era uma cidade que tinha de tudo, tinha muitos empregos de alta tecnologia, e muita gente de fora. Eu ainda consegui me mudar para alguns lugares, quando todo mundo já estava se fechando em comunidades segundo os diferentes valores culturais. Isso porque fazíamos parte de uma comunidade “cosmopolita”, uma comunidade que interagia com outras, trocando ideias. Quando você crescer, seria bom você sair, também, ir ver o mundo, um pouco, você vai ficar de boca aberta com as diferenças entre as comunidades, elas não são o que a gente pensa. Muitos lugares em nome da segurança deixam de fora não só as pessoas que não se encaixa, mas qualquer ideia diferente. Até os filmes, elas modificam, às vezes a forma de falar, às vezes os personagens. Você precisa ver como as notícias são contadas em cada lugar! Com tecnologia de geração de imagens, eles produzem qualquer notícia conforme a encomenda. Por isso, toda a informação que circula na comunidade, e também a que vem de fora, pode ser adaptada à perspectiva de quem é de dentro. Tem uns lugares assustadores, todas as casas se parecem e as famílias todas são parecidas entre si, pelo visto essas pessoas acham que assim fica mais fácil, pelo visto a maioria gosta, e esse tipo de comunidade é bem segura.

Acho que vou tentar te levar à Europa, se der. Lá ainda é uma colcha de retalhos. Mas vamos precisar autorização do conselho; mesmo sendo uma comunidade cosmopolita, pra se levar uma criança para a Europa, tem as regras. Tem comunidades que não deixam nem adultos irem lá, mas essas não gostam nem de deixar entrar os cosmopolitas. É até estranho que elas consigam se manter.

E essa aqui… é minha última tatuagem: a de professor formado. É a que eu mais gosto; agora estão usando esta nova tinta holográfica para tatuagens de instrutores. Ela abre muitas portas, mas fecha muitas, também, é lógico. Os professores trazem novas ideias, nós espalhamos elementos da cultura, somos “portadores de memes”, e os memes cosmopolitas assustam as pessoas. Mesmo com todas as proteções que as comunidades têm, mesmo tendo muros em volta das casas e das mentes, as identidades são uma coisa frágil. Quase metade da comunidade NDI (Nação do Islã) no sul da Califórnia saiu no ano passado por causa do conflito das identidades: o que eles eram? Africanos? Muçulmanos? Ou americanos? Agora os que ficaram na NDI (Nação Do Islã) não deixam entrar gente de fora nem para fazer negócios.

É isso aí. O Tsutomo é o melhor tatuador do pedaço. Tá com medo? Não fica… A primeira é a mais difícil, mas você vai ter orgulho da tatuagem que você vai fazer. E com a festa que vai ter hoje, aposto que você vai esquecer da agulha muito rápido. Tou achando que aquele garoto com a tatuagem da floresta está olhando para você. Não me olha assim! A comunidade se preocupa com você. Aqui todo mundo tem muito orgulho de você.

Foi nesse ponto que eu acordei. Banhado em um suor frio.

As Comunidades Cuidadoras são uma versão moderna do que aconteceu na Europa Ocidental nos primeiros séculos depois da queda do Império Romano (cerca de 500-800 d.C.). Foi um retorno às pequenas comunidades homogêneas, separadas pelos grandes e perigosos bosques europeus. Cada uma tinha sua moeda local própria, seu governo e sua visão do mundo gestada internamente. Elas haviam se tornado auto-suficientes por necessidade. Uma das funções da Igreja e das ordens monásticas era servir de “comunidade cosmopolita” nas Comunidades Cuidadoras. Nem tudo era negativo. Por exemplo, essa forma de vida ocasionou uma grande onda de espiritualidade. Algumas pessoas chegaram a considerar esse período o auge do “misticismo cristão”, uma época na qual no Ocidente o sagrado e o secular funcionavam em harmonia, uma coisa dava sustentação à outra. Mas em relação à maioria dos outros aspectos segue valendo a visão de que, comparativamente, era uma Idade das Trevas.

O que desencadeia o surgimento de um cenário de Comunidades Cuidadoras é uma série de desastres, como o colapso monetário e um grande terremoto na Califórnia, todos dois previstos por muitos especialistas. Não é preciso que eles ocorram para configurar essa situação, mas combinados, são capazes de destruir a maior parte dos sistemas de governo centralizados. Alguns estudiosos afirmam que uma crise monetária, por si só, bastaria para provocar um colapso da nossa sociedade atual.

Como avaliar a possibilidade de ocorrerem colapsos
A seguir avaliamos separadamente a plausibilidade e as consequências de alguns colapsos, assim como as repercussões no caso de ocorrerem combinações de colapsos.

Um colapso monetário?
A possibilidade de uma hecatombe monetária em grande escala é real. O colapso do México em 1994-95, dos países asiáticos em 1997 e da Rússia em 1998 com certeza não serão os últimos, a escalada da especulação com divisas (ver capítulo 2) deixou a economia mundial tão para trás, que é garantido que haverá episódios futuros. Mas o Grande Colapso Monetário pode ocorrer a qualquer momento, quando a moeda dos Estados Unidos sofrer um ataque. A questão não é se, a questão é quando a instabilidade do sistema monetário oficial vai afetar a moeda de referência do sistema monetário global.207

O professor Robert Guttman, do Departamento de Economia da Hofstra University, descreve o sistema monetário internacional como o calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos e da comunidade global como um todo. Um colapso neste sistema é a única forma de se repetir uma verdadeira Grande Depressão, com desemprego em massa e consequências sociopolíticas.

Todas as moedas nacionais do planeta208 – incluindo o euro – são definidas em função do dólar e, por isto, dependem totalmente da estabilidade da moeda de referência. No capítulo 2 descrevi o contexto de um colapso global – em vocabulário técnico, de um “risco sistêmico” –. A probabilidade do colapso aumenta a cada ano à medida que o volume dos fluxos especulativos se eleva 15% a 25% anualmente, enquanto a rede de proteção que os bancos centrais representam perde importância relativa progressivamente, em comparação aos volumes da especulação que não param de crescer.

Muita gente pensa “como seria possível um desastre desses?”; mas isso é o que menos importa. Que importância tem ter sido o banco Kreditantstalt de Viena quem deflagrou o pânico no mercado de Londres que logo se propagou para os Estados Unidos, provocando a crise da Bolsa de Nova York em 1929? O que realmente importa, naquela época como agora, é o grau de estabilidade ou instabilidade do sistema como um todo. É irrelevante dizer com precisão qual carta vai fazer o castelo desmoronar. Que seja um bug do milênio em massa nos computadores, uma grave crise financeira no Japão ou no mercado do Eurodólar. Dá na mesma qual evento vai fazer colapsar nosso sistema monetário baseado no dólar.

No cenário das Comunidades Cuidadoras, o detonador financeiro foi a interação entre dois dos elos mais frágeis de nosso atual sistema global: uma falha no sistema bancário japonês desencadeou o pânico no mercado do Eurodólar e colocou em cheque o mercado do dólar nos Estados Unidos.

Um Superterremoto na Califórnia
Comparado com o colapso monetário que mencionamos, um grande terremoto na Califórnia pode parecer um problema trivial. Além disto, é um dos riscos mais estudados de todos. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Departamento de Estudos Geológicos dos Estados Unidos publicado em julho de 1990, há 67% de probabilidade de que em um lapso de 30 anos ocorra na baía de São Francisco um terremoto de 7,1 graus, ou mais na escala Richter. Isto é, pode ocorrer hoje ou dentro de 20 anos.

Consequências de uma combinação
Este exemplo de um superterremoto foi usado no cenário Comunidades Cuidadoras não para sobrepor gratuitamente dois desastres, mas para ilustrar que, se um dos dois for realmente sério, os governos centrais não têm como lidar com as crises no nível local. As pessoas teriam que reorganizar a vida de forma a se tornarem mais auto-sustentadas, mais baseadas no âmbito local e nessas circunstâncias podem se tornar plausíveis formas de governo muito diferentes, como as mostradas nesse cenário.

As forças que nutrem as Comunidades Cuidadoras
O cenário das Comunidades Cuidadoras é ocasionado pela reação coletiva de recuar para a segurança. Nele, a prioridade é a segurança local e as preocupações com as comunidades já observadas hoje.

Quando o dinheiro colapsa, todos os acordos financeiros estabelecidos – como os salários ou os aluguéis – perdem sentido. Poupanças que levaram toda uma vida para serem constituídas evaporam em poucos dias e, de repente, as pessoas ficam expostas a um futuro tão incerto, como elas jamais teriam imaginado. Nessas circunstâncias, podem aparecer sombras e temores coletivos poderosos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o velho conceito de “caldeirão de raças” nas últimas décadas cedeu lugar ao de “identidades étnicas”. Muitas pessoas se identificam, hoje, como afro-americanos, mexicano-americanos, sino-americanos, ítalo-americanos, etc. E a prioridade fundamental para muitas pessoas de todo o espectro político (86% de acordo com uma enquete realizada em 1995 pela American Lives) é “reconstruir o espírito comunitário”. No cenário das Comunidades Cuidadoras, quando o sistema tradicional colapsa, esta prioridade toma proporções desmedidas. Os temores da sociedade atual levam à fragmentação e à criação de comunidades de pessoas com a mesma forma de pensar onde as tecnologias disponíveis sejam empregadas para proporcionar um sentimento de segurança e controle. Para os Estados Unidos, este cenário pode parecer menos provável que o do Milênio Corporativo. Afinal, a Comunidade Cuidadosa foi o fruto de uma conversa ouvida na Haight Street.209

Mas em muitos países já aconteceram coisas mais extremas que essas. Na Iugoslávia, o conflito que começou sendo uma questão monetária no final da década de 1980 rapidamente se converteu em uma intolerância em relação a “os outros”, que foram usados por certos dirigentes étnicos como bodes expiatórios para desviar a ira que a população sentia contra eles e reafirmar seu poder. Por isto, a “limpeza étnica” foi uma consequência direta dos programas de ajuste do FMI do final dos anos 80 que criaram o contexto sociopolítico necessário para que extremistas nacionalistas tomassem o poder. Na Indonésia, o problema monetário que afetou o país em 1998 desencadeou em poucos dias manifestações violentas, saques e violações dos direitos da minoria chinesa. Da mesma forma, na Rússia o colapso financeiro exacerbou a discriminação contra as minorias. Na prática, nenhum intelectual desses países haveria acreditado que tais fatos pudessem ocorrer, nem sequer poucos meses antes de se instalar o caos, embora estes acontecimentos não sejam inéditos na história. Por exemplo, a minoria judia foi o bode expiatório quando houve o colapso da moeda da Alemanha na década de 1920. As crises monetárias invariavelmente geram medo, desespero e raiva; e isto é
um coquetel social explosivo que os demagogos irresponsáveis podem explorar. A chegada ao poder de Milosevic na Sérvia, depois da crise monetária que a Iugoslávia sofreu na década de 1980, demonstra que essa receita ainda funciona.

Nas Comunidades Cuidadoras, o controle da moeda local pode ser usado para manter as pessoas em um casulo seguro. Como tudo o mais neste mundo, as moedas locais podem ser usadas de maneira positiva ou negativa, e neste cenário o seu potencial de restringir as pessoas fica evidenciado. Mais adiante, nos capítulos 6 e 7 você vai ver que quando as moedas locais complementam a moeda nacional, elas têm um impacto muito construtivo e vai descobrir também, por que e como estas moedas estão se alastrando em uma dúzia de países.

Se o sistema global de moedas oficiais colapsar, os sistemas locais podem muito bem acabar sendo a melhor rede de proteção disponível, na falta de outra. As pessoas em choque vão, provavelmente, correr em busca de uma segurança psicológica a qualquer preço. Paradoxalmente, a própria força do impulso que leva à globalização é o que está motivando uma nítida nova ênfase em prioridades locais e em homogeneidade cultural local. Isto pode ser um processo pacífico, mas, como se viu recentemente, nem sempre é assim. A tendência crescente a priorizar as etnias locais e as especificidades culturais já desencadeou a violência e a guerra em lugares tão distintos como a ex-Iugoslávia, o Azerbaijão e Ruanda.

Cronograma da Revolução
Década de 1980: Desenvolvimento dos primeiros sistemas monetários complementares do pós-guerra, os LETS, principalmente no Canadá, na Nova Zelândia e no norte da Europa (veja mais detalhes no capítulo 6).
1984: Publicação da primeira advertência sobre o bug do milênio (Y2K).
1990: A IRS (autoridade tributária dos Estados Unidos) aprova a isenção de impostos dos sistemas locais de Time Dollars (ver capítulo 7).
1991: Começa a primeira guerra de “limpeza étnica” na Iugoslávia.
1992: lançamento das Horas Íthaca (horas Íthaca) em Ithaca, Nova York.
1995: Estudo revela que 83% da população dos EUA considera prioritário “reconstruir o espírito comunitário”.
1996 (14 de maio): é celebrada a primeira audiência ante a Subcomissão de Tecnologia da Câmara de Representantes dos Estados Unidos sobre a “solução do problema do ano 2000 para a computação”.
1997: Nos Estados Unidos o sistema de assistência social nacional é descentralizado e se acelera a transferência de competências do governo federal para estados e municípios.
1999: Auge das medidas visando o cumprimento de prazos para solucionar o bug do milênio e as ações preventivas geram novos problemas.
2000: Surto de movimentos religiosos apocalípticos. O bug do milênio se revela ter sido uma preocupação infundada.
2010: Primeiro ano em que se apura um volume maior de intercâmbios comerciais com moedas complementares que com as velhas e fragilizadas moedas nacionais.
2020: A adolescente que aparece no pesadelo de Haight Street faz sua tatuagem de iniciação.

Os dois cenários prováveis vistos até aqui não são nem os mais terríveis nem os mais favoráveis. Agora veremos as duas possibilidades mais extremas: o “Inferno na Terra” e a “Abundância Sustentável”.

O “Inferno na Terra”
O caldo de cultura do “Inferno na Terra” é também uma combinação de colapsos (como nas Comunidades Cuidadoras). A principal diferença é que, em vez de as pessoas se organizarem em comunidades isoladas, surge um “vale tudo” de individualismo extremo. É isso o que o mundo vai virar caso uma quantidade suficiente de gente acreditar que a solução em caso de desastre é comprar mais munição para as armas.

Nos dois cenários anteriores, os personagens eram fictícios. Mas no “Inferno na Terra” todos são pessoas reais, vivendo em 1996. As vidas de Red, Sean, Addison, Todd e Jeremy foram descritas com as palavras da minha amiga Katherine que, aos 15 anos, era a pessoa mais nova do público quando eu expus as ideias expostas posteriormente neste livro em uma série de conferências sobre “O futuro do dinheiro”. Com ela, o que aprendemos é que o “Inferno na Terra” já está acontecendo, a menos de uma hora de carro dos bairros mais ricos e da economia regional que mais cresce nos Estados Unidos. O “Inferno na Terra” está no quintal da única superpotência mundial, o país mais avançado em inovação tecnológica, durante um dos mais longos períodos de auge econômico de que se tem notícia, em um ano que registrou quebras de recordes do índice Dow Jones 43 vezes.

Os amigos de Katherine
Red
Red foi abandonado. Deixado na rua por seus pais em Berkeley, Califórnia, com três anos de idade. Um casal de jovens sem teto o acolheu. Os três passaram a maior parte dos invernos mudando de um albergue para outro, pois o limite máximo de permanência era três dias. No verão eles vagavam pela Telegraph Avenue, revirando contêineres e latas de lixo procurando a próxima refeição. Nunca ninguém lhes dirigiu a palavra. Nunca ninguém se incomodou em falar com eles. Um dia Red acordou e o casal tinha ido embora. Ele tinha sete anos.
Aos 10 anos, Red conheceu outra criança que também passava pelo mesmo. Era Sean, um menino de 15 anos que tinha vivido na rua desde os cinco anos de idade. Sean usava duas grandes mechas de cabelo tingidas de turquesa no estilo moicano, dividindo seu crânio de fora a fora. A tintura combinava com seus olhos e com a palidez da sua pele. Ele usava um blusão preto com capuz, com desenhos e remendos costurados de qualquer maneira com fio dental branco. E correntes e coleiras no pescoço, pulseiras com rebites pontiagudos de metal. Tinha as unhas bem pintadas de preto. Dizia que era “um punk do esgoto, um anarquista, que ocupava casas, que era um membro da sociedade que todos preferiam ignorar e por quem ninguém queria se responsabilizar”.

Sean cativou Red. Era alguém como ele, que havia sido esquecido, apagado da memória. Sean passou a ser seu mentor. Ele o chamava Silence Red: Silence porque estava sempre calado, e Red (vermelho) porque era sua cor favorita.

Quando Red ficou mais velho passou a fazer parte do grupo conhecido como “os punks do esgoto”, crianças perdidas que perderam sua família e se juntaram para formar uma nova família. Nunca brigavam entre si e raramente causavam problemas. A fúria deles era contra a sociedade que os ignorava. Odiavam todos os adultos, em especial pais. A maioria tinha sido abandonada pelos pais ou tinha fugido de maus tratos. A classe média e a alta cuspiam neles, os ofendiam e acusavam de serem viciados em drogas e bebidas. Eles os prendiam por dormirem ao relento, por se sentarem na calçada, ou até por se encostarem nos muros. Eram acossados por todo mundo, embora estivessem simplesmente lutando para sobreviver. Red e Sean viveram como irmãos durante 15 anos em casas ocupadas. Não consumiam drogas nem bebiam álcool. Viajavam daqui para lá procurando o lar perfeito, mas sempre voltavam a Berkeley no verão.

Red era um homem quando morreu mas tinha só 25 anos. Ele sempre dizia que queria morrer decapitado para se livrar da doença que tinha na cabeça. E depois ria. Antes de morrer, disse a Sean que desde que tinha memória tinha dores terríveis de cabeça e que estavam ficando insuportáveis. Sean o levou a um médico de boa vontade, que explicou que Red tinha um tumor cerebral e que já era tarde demais; sem convênio médico nem dinheiro, não se podia fazer nada e ele morreria em uns poucos meses. Ele também lhe deu uma receita para comprar analgésicos, mas Red se negou a tomá-los. Um dia, Sean foi a uma loja de conveniência comprar um refrigerante. Quando voltou, viu que Red estava no chão. Ele havia cortado a garganta para se livrar da doença da sua cabeça.

A maioria das pessoas que viram Red se horrorizou. Ele tinha mais de 1,80 m de altura, o cabelo formava pontas de quase um palmo, só no rosto de porcelana, tinha 27 piercings. Mas olhando nos seus olhos, se via que não havia sido nem seria nunca um monstro. Jamais haveria matado uma mosca. Nem sequer havia sido capaz de ferir a alguém que o ferisse. Era a pessoa mais amigável e terna que poderia haver. Antes de comer algo, sempre se assegurava de que todos os conhecidos que estavam ao seu redor já tinham comido. O único problema era que nunca ninguém o olhava nem podia olhá-lo nos olhos para ver sua tristeza e sua bondade, porque Red era invisível. Se alguém o tivesse visto, Red teria vivido um pouco mais. Mas para a maioria, ignorar é mais fácil que ter compaixão. E quando todos os ricos foram dormir, Sean reuniu alguns dos punks do esgoto para levar o corpo de Red ao lixão e ali o cremaram. As cinzas dele estão espalhadas no teu gramado de US$4000, o corpo dele está fazendo as tuas flores crescerem.

Uma das músicas preferidas dele era uma dos Rancids que diz:
Listras vermelhas e azuis ondulando
Brancas pela pele e vermelhas pela morte.
Por que não posso caminhar até o fim
Sem sentir que estou no inferno?.

Addison

Quando eu olhei para o Addison era a morte me olhando. Na minha frente, não o rapaz querido que eu conhecia, mas era como o anjo negro, como a imagem que me atormentava nos sonhos, o anjo da morte. Sua pele da cor do melaço estava ficando amarelada; dos olhos pretos vinha um olhar opaco. Seu corpo magro como um papel estremeceu compulsivamente quando ele desceu do ônibus verde e veio até onde eu estava. Era uma enxurrada de angústia e de tristeza. Olhava seus sapatos velhos como se observasse os pés de outra pessoa. Não sentia os próprios pés, sabia que estavam lá porque podia vê-los.

A pele estava descascando e senti que a textura das mãos era de um papelão tosco quando eu o ajudei a descer o último degrau metálico do ônibus. E de repente o ônibus tinha ido embora, e estávamos sós, e pela primeira vez na vida, tive medo, me dava medo olhar para ele. E me doía segurar suas mãos ressecadas parecendo cacos de vidro. Suas unhas estavam caindo. Tirou um pente do bolso e penteou o pouco cabelo que lhe restava. O pente arrancou um tufo do cabelo cinzento e crespo. Ele nem sequer notou.

Ele era tão bonito antes… meu Deus!, agora parecia ter 60 anos e tinha só 16. Ele me olhou nos olhos e viu que eu tinha pena, não dava para esconder. E sussurrou: “Não se preocupe, Katherine. Não dói”. Eu sabia que era mentira. Tinha desaparecido a expressão do seu rosto. Ele já não controlava os músculos.

Ele fedia a ovo podre, mas, na realidade, era um rapaz que estava apodrecendo. Tinha os lábios azuis e rachados. Beijei meu amigo suavemente. Senti gosto de metal, em um dia de 35º C. Ele ofegava a cada passo e rangia um pouco. Eu não queria tocar nele de medo de que desabasse em pedaços nas minhas mãos. Eu o ajudei a se sentar em um banco de concreto cinza e frio. Ele voltou o olhar para o céu e depois para as árvores que estavam ao seu redor. “Não tem árvores onde eu moro”, sussurrou enquanto tentava esconder as lágrimas que corriam pela sua cara.

E então desmaiou, foi laçado por um sonho frio e negro, onde a realidade era só um fragmento da imaginação dele e reinava o sofrimento. Dos seus lábios craquelados corria um fio de sangue. Seus pulmões sangravam e o banco se tingiu de vermelho com seu sofrimento. O sangue escorreu pelo blusão azul, e logo parou de brotar.

Ficou deitado sobre o banco durante horas, dormido, enquanto eu o segurava. O sangue brotava mais um pouco, parava e voltava a sair; mas o sofrimento não cessava nunca, e só então compreendi que meu anjo negro estava morrendo. Na realidade, ele já estava morto faz tempo.


Addison cresceu em um gueto negro de São Francisco chamado Hunters Point. Batiam nele porque era um bom aluno e quando chegou à sétima série, na pratica ele já tinha abandonado a escola. Ele me mostrou seus trabalhos, todos completos e bem acabados, mas que ele nunca ousou entregar. Foi obrigado a entrar em uma gang aos 15 anos, porque disseram que se não entrasse ele iria ser perseguido e iriam matá-lo. Começou a se drogar e a beber para anestesiar a dor. Um dos amigos mais chegados que ele teve era filho de um casal dependente de crack, que já nasceu viciado em cocaína e morreu de um ataque cardíaco fulminante aos 16 anos, quando estava tentando se livrar do vício. Quando as pessoas em volta dele começaram a morrer, Addison caiu numa profunda depressão. Contraiu sete cepas distintas do HIV antes de completar 16 anos e uns poucos meses depois, a AIDS se manifestou em com toda a virulência. Quando me sentei com ele esse dia, o prognóstico era mais uns dois meses de vida. Eu o encontrei no Pier 39, em São Francisco. Eu era a única pessoa branca que ele conhecia, e comparada com ele, era rica. Fomos super amigos durante dois anos e eu fiz tudo o que eu podia para mantê-lo vivo, mas na véspera do seu aniversário de 17 anos, pegou sua pistola 9 mm debaixo da sua cama e se deu um tiro na cabeça. Ficou jogado lá e só encontraram seu corpo cinco dias depois.

Addison vivia no inferno, e não conseguia lidar com isso. Quem conseguiria? Das 15 pessoas com quem ele cresceu em Hunters Point, 12 morreram menos de 6 meses depois dele, e 3 tinham morrido alguns meses antes. Em 14 meses estavam todas mortas. Viviam em um meio que involuía por causa do isolamento, das drogas – que, segundo os rumores, era fornecida pelo governo – e dos próprios cidadãos do seu país que preferiam ignorar a pobreza e fechar os olhos porque consideravam que não era responsabilidade deles. Para eles, os guetos nem existiam.

Din Don! O sino do castelo.
Adeus minha mãe!
Enterra-me no velho lote atrás da igreja,
ao lado do meu irmão, o mais velho.
Quero que meu caixão seja preto,
E seis anjos atrás de mim,
Dois para cantar… dois para rezar
e dois para levar minha alma embora.
– James Joyce


Todd e Jeremy
Todd e Jeremy fugiram de casa quando Todd tinha cinco anos e Jeremy nove. Tomaram o trem para São Francisco e dormiram no parque Golden Gate. Antes, moravam em um trailer em San José com o pai que maltratava e abusava sexualmente deles desde que tinham memória. A mãe morreu em um acidente de carro poucos meses depois que Todd nasceu. O pai era desocupado; mas a TV na frente dele estava sempre ativa. As crianças cozinhavam; a maioria das vezes as refeições consistiam em cereais e Tater Tots, uma fritura fabricada com batatas.

Antes, o nome de Todd era Christina, mas Jeremy sempre quis ter um irmão menor, de modo que quando juntaram seus poucos pertences, ele a rebatizou. Ela tinha cabelos volumosos, muito claros, cobrindo a cintura. Seu corpo era miúdo e as maçãs do rosto altas acentuavam o verde da cor do mar que ela tinha nos olhos. Falava muito pouco, mas quando falava praticamente doía o esforço que se tinha que fazer para escutá-la. Ela usava palavras curtas e frágeis e nunca olhava nos olhos. Em compensação, Jer, quando falava, jorravam os palavrões, ele gesticulava freneticamente com os braços para ter certeza de que se entendia o que ele queria dizer. Ele ajeitava com as mãos sujas os cabelos azuis berrantes em forma de pontas de meio palmo que lembravam as da estátua da liberdade. Contava que queria fazer piercing nos lábios e explodir a Casa Branca com um canivete suíço, fio dental e um fósforo como McGiver, herói da TV, gênio das fugas.

Todd e Jeremy ficavam horas sentados na Haight Street. Todd pedia suavemente moedas; e Jer seguia as pessoas que não davam nada vários quarteirões gritando “VAI SE FODER!”, enquanto as mães e as filhas, os pais e os filhos passavam ao lado deles sem nem dar uma olhada. Ao cair a noite, se recolhiam no parque, era onde eles se sentiam mais seguros. Para eles, esse foi o início do fim das suas vidas.
Privados de toda esperança.
Ensinaram a eles que não dava para encarar.
Escravos desde o começo. Até que a morte os separe.
Pobres crianças fodidas, que par de miseráveis,
roubaram suas vidas, mas eles não ligavam muito.
Pobres crianças queridas, gente como outra qualquer,
vítimas do sistema e das suas piadas cruéis.
– Crass

O “Inferno na Terra” descreve um mundo onde há muito trabalho por fazer, mas não há dinheiro disponível para juntar as pessoas e o trabalho. Quando as crianças não têm a oportunidade de se desenvolver, o resultado é uma forma de vida que sem dúvida se perpetuará por várias gerações. A relação entre esta situação e o nosso tema, o dinheiro, pode parecer óbvia: para começo de conversa foi o desemprego, falências e/ou fracassos financeiros que fizeram os pais dessas crianças perderem suas casas. Uma vez que a bola de neve da falta de dinheiro começa a rolar, ela não para. Sem instrução não há a possibilidade de essas crianças conseguirem trabalho; não vai haver dinheiro nem para o enterro delas. Outra consequência é a insanidade mental. Um estudo realizado em Chicago revelou que 32,2% dos pacientes internados em centros de saúde mental tinham vivido na rua antes da primeira internação por não terem uma casa.210

Encontrar estatísticas confiáveis sobre pessoas sem teto nos Estados Unidos, em particular sobre crianças, resultou ser algo extraordinariamente difícil. Os meios de comunicação dominantes abordam cada vez menos esse tema, embora o problema esteja aumentando. O número de referências a pessoas sem teto nas manchetes do Washington Post caiu de 149 em 1990, para 45 em 1995 e 18 em 1998.211 Como disse a administradora de uma base de dados em tom de desculpa: “Os que têm dinheiro não têm interesse em averiguar; os que têm interesse não têm dinheiro, e os pesquisadores estudam o que pagarem”. Ela explicou que os melhores dados são gerados indiretamente, pois todo município tem, em cada exercício fiscal, o controle do número real de famílias e crianças que se enquadram nas condições estipuladas para o programa de proteção a famílias sem-teto (AFDC-HAP) e solicitam assistência212.

A figura 5.5 mostra que em 1995 só na área da baía de São Francisco havia mais de 40.000 crianças sem teto; 325% mais que 8 anos antes. Estes dados refletem apenas os “beneficiários que cumprem com os pré-requisitos para receber assistência”, portanto, o verdadeiro total tem que ser ainda mais alto.

Figura 5.4 Crianças sem teto na área da baía de São Francisco (em milhares)213

São Francisco não é um caso excepcional em nenhum aspecto. O Departamento de Educação dos Estados Unidos financia um projeto para monitorar os problemas escolares das crianças sem teto, e em função disto elaborou para o Congresso um relatório detalhado identificando as idades das crianças em situação de rua. Nesse documento, também, só são incluídas as que cumprem as exigências estipuladas para receber os benefícios do governo, o que significa que se trata de crianças que estão “no sistema” o suficiente, ainda, a ponto de tentarem ir à escola. Os amigos da Katherine, por exemplo, provavelmente não constariam neste tipo de estatística. Neste ponto, também, o gráfico reflete na verdade uma parte mínima do problema. O que mais impressiona nesses números é o drástico crescimento do número de crianças sem teto no segmento das mais novas (menos de 6 anos).

Fonte: Departamento de Educação dos Estados Unidos, julho de 1995.
Idade desconhecida
10-12 anos
7-9 anos
3-6 anos

Figura 5.5 Crianças sem teto na área da baía de São Francisco, por grupos de idades (em milhares)214

[aos revisores: na edição argentina, também as figuras estão com a numeração errada]
Evidentemente, esperar até que dê resultado a “teoria do crescimento do bolo” (isto é: quando a iniciativa privada prospera, a atividade econômica cresce e os ganhos se propagam pela sociedade, repartindo o bolo entre todos), ou esperar “as vacas gordas” é não solucionar o problema. Enquanto isso, nos EUA, a quantidade de famílias que recebem assistência do governo federal para moradia passou de 400.000 na década de 70 a 40.000 na era Reagan (meados da década de 80) e caiu a zero depois que foi aprovada a Lei Nacional de Moradia em setembro de 1996.

As projeções disponíveis apenas para algumas cidades são ainda piores. Para a cidade de Nova York, por exemplo, em decorrência direta do desmantelamento da rede federal de Seguridade Social, estima-se que até 2005 o aumento no número de famílias sem teto registradas em albergues atingirá 500%.

Famílias sem teto
Figura 5.6 Quantidade de famílias sem teto na cidade de Nova York, 1975-2005215

Um emprego de período integral com salário mínimo não é suficiente para se ter casa em lugar algum dos Estados Unidos. Em 1996, a Conferência de Prefeitos do país revelou que 19% da população sem teto dos EUA tinham emprego.216 A queda nas remunerações tornou a habitação inacessível para muitos trabalhadores. Dados os preços do mercado, um salário mínimo não basta para custear o aluguel de uma moradia de um dormitório em nenhum dos estados do país.217 Em 45 estados e no Distrito de Columbia, uma família necessita pelo menos dois salários mínimos para pagar um apartamento de dois dormitórios.218 Dentre os sem teto, o segmento que mais cresce é o das famílias com filhos, que atingiram 40% do total. Em 29 cidades dos Estados Unidos, as solicitações de famílias com filhos para inserção em abrigos de emergência aumentam 7% a cada ano. O mesmo estudo indica que 24% das solicitações de abrigo apresentadas por famílias sem teto foram negadas por falta de recursos. Em decorrência disto, 27% da população em situação de rua são crianças. E a média de idade delas vem diminuindo de forma constante:219 Em 1987 a média em Nova York era 9 anos, em 1992 havia baixado para 4.220 E esta média decresce apesar do surgimento de um outro tipo de novaiorquinos sem teto: o universitário sem teto. Em 1986, o reitor da Universidade da Cidade de Nova York estimou que uns 3000 estudantes matriculados estavam em situação de rua.221 Um deles ficou perplexo ao descobrir a Carta Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, da qual os Estados Unidos são oficialmente signatários e à qual fazem alusão em debates políticos internacionais. Mas o Congresso ainda não aprovou esse tratado porque ele afirma que “abrigo e educação adequados” são direitos fundamentais.

Tudo isto ocorreu antes de 1996, quando a responsabilidade pelo sistema de assistência social dos Estados Unidos foi transferida aos estados e municípios. Quando essa reforma completou dois anos, os meios de comunicação e os políticos dos dois partidos principais anunciaram que ela era um sucesso devido à significativa redução na quantidade de pessoas que recebiam assistência e ao aumento no total das pessoas assistidas que encontravam emprego. Porém, um estudo independente de dezembro de 1998222 revelou que, entre 1995 e 1997, 400.000 crianças passaram a fazer parte da camada de extrema pobreza ou indigência (menos da metade da renda considerada a linha da pobreza, isto é US$6401 anuais para uma família de três pessoas). Muitas famílias são “expulsas” dos programas sociais mesmo tendo pouca ou nenhuma culpa. Por exemplo, o estado de Utah realizou um estudo das famílias de sua jurisdição que foram cortadas da assistência por não terem participado de atividades exigidas e descobriu que 23% não haviam comparecido porque não dispunham de transporte, 43% devido a problemas de saúde, 18% por não terem com quem deixar os filhos e os 20% restantes por transtornos mentais.

Isto acontece no momento em que a economia dos Estados Unidos goza o maior boom da sua história…

Para concluir, para os que creem que isto de forma alguma pode vir a ser relevante para eles, há alguns indicadores que fazem pensar, considerando a elevação nunca antes vista na história, dos riscos financeiros para a classe média dos Estados Unidos. A maioria das poupanças da classe média foi deslocada de títulos relativamente livres de risco para os fundos comuns de investimento e para as ações (o total de investidores em ações aumentou de 12 milhões para 45 milhões nos últimos 10 anos). Esta mudança foi o elemento determinante para a criação do maior mercado de ações em alta da história. Porém, também significa que essas poupanças estão expostas a um nível de risco muito maior do que em qualquer outra época.

Um colapso do dólar – com sua repercussão direta sobre a Bolsa – afetaria a população dos Estados Unidos em geral exatamente nos lugares e no momento em que provocaria mais estragos, precisamente após o desmantelamento dos últimos restos da rede de proteção social criada com o New Deal pelo presidente F.D.Roosevelt na década de 1930. Se o mundo resultar no “Inferno na Terra”, os efeitos do chamado “darwinismo social” não afetarão uma minoria, como agora, mas no ano 2020 eles se estenderão a uma parte maior da população.

Abundância Sustentável
Minha maior motivação para preparar e escrever este livro foi minha crença cada vez maior em podermos criar uma Idade Dourada de Abundância Sustentável durante nossas vidas. A carta abaixo escrita ao meu melhor amigo da época do ensino médio, que hoje é um monge beneditino e vive próximo ao lago Titicaca no sul do Peru, explica as razões:

Bernard Lietaer
62 Oakdale
Mill Valley CA 94941
Querido amigo Pierre:
Estou escrevendo meu próximo livro sobre um tema que você – em seu retiro de monge junto ao lago, num confim do mundo – provavelmente considerará de pouca importância. Apesar disto, de todas as pessoas que eu conheço, você é uma das poucas que vive no melhor dos luxos: você pode dedicar todo o seu tempo e energia a “fazer o que lhe traz bem-aventurança”, a seguir sua vocação, a ser o que você quer ser, sem se preocupar
com o dinheiro. É uma ironia que só os monges, que não possuem nada, ou talvez sejam muito ricos, ou os que têm um dom extraordinário, possam se permitir ter uma atitude diante do dinheiro tão equânime como a sua. O resto de nós, a vasta maioria dos humanos, inclusive nos países mais ricos do planeta, estamos sujeitos à obrigação – ou você diria à tentação? – de “ganhar a vida” de uma maneira que não realmente coincide com o que de fato gostaríamos de fazer ou de ser.

E nesse processo de ganhar a vida, a quanto tivemos que renunciar, de nós mesmos, e do que queremos nos tornar? Muitos nem se atreveram a descobrir o que gostariam de fazer, por medo de ser doloroso demais voltar ao seu trabalho “normal” depois disto. No jogo que estamos jogando, só mais adiante – quando nos aposentarmos, quando tenhamos poupado dinheiro suficiente – vamos nos dedicar aos nossos sonhos. Alguns fazem isso à prestação. Corremos a semana toda, esperando ansiosamente o fim de semana ou as férias, para fazer o que queremos realmente.

Você sabe que nem sempre fui otimista sobre o futuro da humanidade. E que fui tão “realista” que preferi não ter filhos para que não vivessem com temores periódicos de uma hecatombe nuclear, como acontecia durante a Guerra Fria. Então, o que eu sonhei pode surpreender você. Eu vi a possibilidade de uma Era Dourada de Abundância Sustentável, onde usaremos um dinheiro que nos permitirá sermos nós mesmos. Eu ousei sonhar que a maior preocupação de todas as crianças desse mundo será descobrir sua verdadeira vocação e todas terão a oportunidade de virem a dominar essa atividade. E se a principal razão para haver tão poucos gênios for o fato de nós matarmos a genialidade das pessoas antes de que elas descubram no que são geniais? Quantos dos que descobrem o que realmente querem ser têm a oportunidade ou os recursos para aprender como realizar plenamente seu potencial? Talvez a raça humana necessite de todos os gênios que pode produzir para sair deste atoleiro coletivo em que nos metemos.

E se a escassez não estiver principalmente “lá fora” na natureza, como acreditamos durante séculos? E se o sistema de moedas que estivemos usando, hipnotizados, for o criador da escassez que a maioria teme? Será que há um limite para a quantidade de coisas que podemos aprender, para a quantidade de paixão, criatividade ou beleza que podemos gerar e desfrutar? E se pudéssemos cuidar de todos os jardins com a atenção aos detalhes e o amor que criaram os tradicionais jardins de chá japoneses? E se cada criança fosse incentivada pelos melhores mentores em cada campo que a fizesse feliz? E se cada rua das nossas cidades pudesse ser embelezada? E se os limites começam quando trocamos o “trabalho” por “emprego”, isto é, quando precisamos trabalhar para obter uma moeda artificialmente escassa? Por que não projetar um sistema monetário que funcione para nós, em vez de sermos nós que trabalhamos para o sistema? Walter Wriston, ex-presidente do conselho de administração do Citibank, definiu o dinheiro como informação. Por que deveria ser escassa a informação, e mais agora que as tecnologias da Era da Informação estão se alastrando tão rapidamente por todo o mundo?

Ok, concordo que não é tão simples. Antes que você conclua que fiquei completamente louco, peço que você me escute até o final, que me acompanhe na exploração de algumas possibilidades novas. Espero que sejam para você tão surpreendentes e prazerosas como para mim.
Seu amigo,
Bernard.

Para começar, pode ser útil definir a expressão “Abundância Sustentável”.

De todas as definições de sustentabilidade, a que eu prefiro é a instrução do meu chefe escoteiro cada vez que chegávamos em um lugar para acampar: “Deixem o lugar melhor do que vocês encontraram”. Algo mais formal é a do Relatório Gro Brundlandt para as Nações Unidas (1987): a sustentabilidade é a característica de uma sociedade que “satisfaz suas necessidades sem reduzir as perspectivas das gerações futuras”. Em minha opinião, uma sociedade desse tipo também deve respeitar as necessidades e a diversidade de outras formas de vida.

Abundância não se refere à acumulação mecânica de mais “coisas” ou a um Porsche em cada garagem. Abundância é o que permite liberdade de escolha suficiente no plano material à maior quantidade possível de pessoas, de forma que possam expressar sua paixão e criatividade. Esta criatividade é a manifestação da forma mais elevada de consciência, sua vocação suprema, e a que proporciona um verdadeiro sentido à vida. Alguém que esteja morrendo de fome e seu filho também, simplesmente não tem como expressar sua criatividade de maneira positiva.

O resultado deste livro para você vai ser descobrir a prova na qual se baseia o cenário da Abundância Sustentável, e por que não se trata do sonho de um otimista incorrigível. Você vai ver os mecanismos, já comprovados na prática, monetários e de outros tipos, que fazem da Abundância Sustentável uma possibilidade tão realista quanto os outros cenários, e tendo as mesmas probabilidades de ocorrer.

Uma maneira simples de expressar a tese central da Abundância Sustentável é dizer que hoje é possível criar um capitalismo verdadeiramente sustentável através de iniciativas relativas ao sistema monetário. Não só ecologicamente sustentável, mas também sociopoliticamente. Resumindo, um capitalismo com rosto humano não precisa continuar sendo um paradoxo.

A chave para desenvolver um capitalismo sustentável é implementar sistemas monetários que deem sustentação a estes objetivos. Veremos que pelo menos três dos quatro problemas mais críticos da nossa sociedade atual podem ser enfrentados de forma eficaz usando novos tipos de moedas que operem como complemento das moedas nacionais existentes. São tipos de moedas que já estão em funcionamento, como protótipos em pequena escala, em uma dezena de países.

Vamos visitar casos reais de mais de uma dezena de países onde as pessoas estão implementando com sucesso vários tipos de novos sistemas de moedas complementares que permitem atacar as duas primeiras questões centrais mencionadas aqui::

• A redução do desemprego na Era da Informação (como explicado no capítulo 6).
• Curar e restaurar o espírito comunitário (capítulo 7).

O terceiro tema pode ser ainda mais crucial no longo prazo: uma nova moeda global – que opere conjuntamente com as moedas nacionais – poderia resolver o conflito entre os interesses de curto prazo e a necessidade de sustentabilidade ecológica de longo prazo (capítulo 9).

Além disto, esta moeda seria à prova de inflação, e automaticamente conversível, sem necessidade de um novo tratado internacional. Por último, mas não menos importante, ela seria uma rede de proteção resiliente colocada sob o sistema monetário atual. Não há, hoje, aplicações da moeda, deste tipo. Mas encontrei dois antecedentes históricos importantes nos quais foram testadas extensivamente as características fundamentais deste tipo de moeda. Elas, inclusive, passaram no teste durante mais de um século, provando meu argumento sobre sustentabilidade e resiliência.

Para concluir, você vai ver por que todas as peças do quebra-cabeça – as tecnologias, os sistemas de valores, até mesmo o timing – estão convergindo e dando uma chance à Abundância Sustentável (capítulo 11). A janela da oportunidade já foi aberta. Vamos poder aproveitar as mudanças que virão, em vez de aceitar passivamente qualquer sistema monetário? Você vai ver que é possível escolher conscientemente.

Os quatro cenários em perspectiva
As diferenças de extensão e de detalhes entre os quatro futuros descritos aqui não refletem a importância e a probabilidade relativa de cada um deles. Essas diferenças se devem à complexidade das ideias que podem ser introduzidas agora, sem as considerações necessárias que vão ser apresentadas nos próximos capítulos. Os quatro cenários têm praticamente a mesma chance de acontecer e não são os únicos desenlaces possíveis. Na verdade, o mais provável é uma mistura destas situações. E os desenlaces também vão se manifestar em formas distintas nas diferentes partes do mundo. É preciso lembrar que estes cenários foram inventados para nós centrarmos nosso foco nas forças por trás de cada um deles, assim como para deixar claras as várias opções que temos e ilustrar as implicações destas opções. O passo seguinte é dar uma olhada mais a fundo nestas forças propulsoras que estão gestando cada um dos quatro cenários apresentados.

As duas forças propulsoras
O diagrama abaixo (veja a figura 5.6) dá uma visão global dos cenários destacando como eles se relacionam entre si.
Sem colapso monetário
Milênio Corporativo Abundância Sustentável
Prioridades muito individualistas Prioridades menos individualistas
“Inferno na Terra” Comunidades Cuidadoras
Com colapso monetário

Figura 5.6 Uma primeira aproximação às relações existentes entre os quatro cenários hipotéticos.

Os dois cenários da parte inferior da figura (o “Inferno na Terra” e as “Comunidades Cuidadoras”) têm em comum um evento específico: um colapso monetário global. Os dois da parte superior (Milênio Corporativo e Abundância Sustentável) não pressupõem um colapso. Os dois cenários da esquerda priorizam as tendências individualistas e competitivas sobre tudo o mais, enquanto os da direita, não.

Mas colocar o foco nessas forças subjacentes só nos dá uma visão relativamente superficial da dinâmica que está em jogo. Os verdadeiros agentes da mudança são as pessoas. A figura 5.8 sugere o que podemos fazer, individualmente e coletivamente para melhorar as chances da Abundância Sustentável.

Com adoção de medidas preventivas
Milênio Corporativo Abundância Sustentável
Sem mudança
no paradigma monetário Com uma mudança
no paradigma monetário
“Inferno na Terra” Comunidades Cuidadoras
Sem adoção de medidas preventivas

Figura 5.7 Relações entre os quatro cenários hipotéticos (Segunda Parte)

O colapso monetário que aparece no eixo vertical da figura 5.7 não é uma catástrofe natural aleatória – como uma tempestade – que podemos evitar ou não dependendo da sorte. O motivo de não ocorrer colapso nos dois cenários superiores é que foram tomadas medidas preventivas conscientemente. A natureza destas medidas preventivas é o tema recorrente dos quatro capítulos que compõem a Segunda Parte deste livro, chamada “A escolha do nosso futuro dinheiro”.

Analogamente, o que divide o lado esquerdo do direito na figura (se prevalecem objetivos muito individualistas ou não) não deve ser considerado uma mudança mecânica coletiva que depende de se apertar um botão, ou não. Como foi dito no capítulo 1, a chave está em estarmos dispostos a questionar o paradigma monetário ou não. A charge da próxima página mostra de outra maneira quanto custa ficarmos encerrados na interpretação dominante do dinheiro. Só se escolhermos tomar consciência poderemos sair da caixa, e nos mover para os lados, onde não existem grades que nos aprisionem, e atingir a Abundância Sustentável.

Uma última pergunta: Onde se encontra, neste mapa, o cenário hipotético do Futuro Oficial?

Olhe a figura 5.7 e imagine que você está suspenso(a) sobre o cruzamento dos dois eixos: é nesse ponto do espaço que está temporariamente o Futuro Oficial. Imagine que você tenha um para-quedas aberto e vá descendo lentamente até a página, esperando aterrissar com segurança. Uma coisa é certa: a gravidade vai fazer você cair em alguma parte. Não há probabilidade alguma de o Futuro Oficial nos manter indefinidamente no ar. Oxalá tenhamos o tempo e a paciência necessários para aprender a usar as cordas do para-quedas e assim aterrissar no futuro que escolhamos.

Embora os quatro cenários sejam igualmente plausíveis, creio que o preferível é o da Abundância Sustentável. Este livro é um manual de como usar as cordas do nosso sistema monetário para conseguir uma aterrissagem suave no quadrante superior direito, num futuro em que a Abundância Sustentável seja a norma e o objetivo vigente.
Ainda temos muito o que aprender sobre os diferentes cabos e características destas cordas, e isso nós faremos juntos. Aconteça o que acontecer, a jornada das próximas duas décadas promete ser extraordinária. Susan Watkins expressou isto muito bem: Creio que aonde quer que nossa viagem nos leve, haverá Deuses nos esperando, com risadas e paciência divinas.223

Ilustração de Gross: A interpretação convencional do dinheiro faz nos sentirmos aprisionados.

Na Segunda Parte: A escolha do nosso dinheiro futuro, analisaremos as opções práticas que temos para mudar o paradigma do dinheiro. São sistemas que podem funcionar paralelamente complementando as moedas nacionais dominantes. A mudança de paradigma não implica abandoar o sistema anterior, mas complementá-lo com novos sistemas monetários que respaldem outros conjuntos de valores. Somadas ao sistema convencional, estas inovações monetárias podem materializar a Abundância Sustentável.

SEGUNDO TOMO
Onde se demonstra de que modo as novas moedas criam riqueza nova, trabalho e um mundo mais sensato

. A Era da Informação já está gerando tipos novos de moedas. Os programas de milhagem evoluíram, as passagens gratuitas agora se tornaram “corporate scrips” (moedas privadas emitidas por empresas), vales de intercâmbio, nesse caso, de produtos para a elite que viaja com frequência; uma empresa gigantesca da qual você nunca ouve falar emitiu seu dinheiro próprio, o “NetMarket Cash” (uma moeda para o comércio via Internet); e o próprio Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, prevê que haverá “novos mercados de moedas privadas no século XXI”.
. Atualmente mais de 4500 comunidades em todo o mundo (mais de uma centena delas nos Estados Unidos) emitem moedas independentes do sistema monetário nacional. Algumas, como a Ithaca, no estado de Nova York, emitem papel moeda; outras, no Canadá, Austrália, Grã Bretanha e França emitem dinheiro eletrônico.

Segunda Parte: A escolha do nosso dinheiro futuro

. Sem dúvida, o dinheiro está todo errado, e foi um decreto do diabo. Ele não pertence às pessoas que precisam dele.
– Piet Hien, físico dinamarquês
. O dinheiro é uma forma de organizar nossa vida no plano material; dinheiro é um invento, um dispositivo mental, muito necessário, muito engenhoso, mas no fim das contas é um produto da mente humana.
– Jacob Needleman224
. O dinheiro, para ser dinheiro, […] não necessita ser de curso legal. Basta ser, digamos assim, “de curso comum”, isto é, aceito coletivamente para pagamento das dívidas, sem coerção legal.
– Richard Timberlake225

Na Primeira Parte deste livro tivemos em mente a história antiga do dinheiro; nesta Segunda Parte exploraremos algumas histórias novas. Vimos que o sistema convencional de moedas nacionais promove um ethos competitivo em todos os aspectos da vida econômica. Por outro lado, foram implementados nos últimos tempos outros sistemas que demonstraram ser compatíveis com valores cooperativos. Estes sistemas nos permitem realizar certos objetivos socialmente desejáveis reduzindo regulações, impostos e burocracia em um grau impensável. Mas para aproveitar esta oportunidade temos que entender as implicações dos diferentes sistemas de moedas e das opções que existem na prática.

No capítulo 1, por meio da metáfora da Máquina Compactadora do Tempo procurei ilustrar que a transição da Era Industrial para a Era da Informação será um período de mudança veloz, com uma série de problemas de adaptação para todos. A ideia central desta Segunda Parte é simples: as inovações monetárias oferecem amplas possibilidades para lidar com alguns dos problemas fundamentais deste período de transição, possibilidades que até agora permaneceram desconhecidas na maior parte dos casos. Isto não significa que devamos esperar que as moedas nacionais desaparecerão, sendo substituídas por outro tipo de dinheiro. Pelo contrário, o que já está ocorrendo é que outros sistemas monetários paralelos já estão sendo desenvolvidos, complementando os existentes, para cumprir funções que as moedas nacionais não cumprem, não podem cumprir, não foram criadas para isso.

Capítulo por capítulo
Ao longo desta Segunda Parte proporemos alguns objetivos e procuraremos arquitetar o tipo de moeda que possibilite alcançar cada um deles. É um jogo de imaginação.

Por exemplo, se nosso propósito é reduzir o desemprego sem que haja inflação, veremos que bem mais de mil comunidades – particularmente na Austrália, na Nova Zelândia, no Brasil, no Canadá e no norte da Europa – já começaram a usar suas próprias moedas complementares com resultados significativos (capítulo 6: Moedas que favorecem o trabalho).

Analogamente, cada vez mais iniciativas populares estão combatendo a perda do espírito comunitário em todo o mundo com a introdução de moedas comunitárias que induzem à cooperação (capítulo 7: Moedas comunitárias).

Analisaremos, também, diversas questões práticas relativas à implementação desses sistemas, como o aspecto jurídico, as repercussões tributárias e o impacto sobre a inflação visto da perspectiva de um banco central regulador (capítulo 8: Alguns problemas práticos).

Para resolver o conflito criado entre a sustentabilidade ecológica e o crescimento econômico, um novo tipo de moeda mundial poderia permitir reunir para este fim os
enormes recursos das empresas multinacionais (capítulo 9: Uma moeda mundial de referência para um mundo sustentável).

A proposta de multiplicação de moedas diversas com finalidades diferentes não precisa resultar em caos. De fato, se prestarmos atenção no contexto geral, é perfeitamente possível ajustar todas as peças do novo quebra-cabeças monetário sem qualquer inconveniente (capítulo 10: Uma visão mais ampla ou o Tao do dinheiro).
E o todo resultante constitui uma estrutura coerente em torno da qual pode ser construída a Abundância Sustentável (capítulo 11: Abundância Sustentável).

CAPÍTULO 6
Moedas que favorecem o trabalho

. A mudança acontece quando confluem uma mudança de valores e a necessidade econômica, não antes.
– John Naisbitt226
. A falta de dinheiro é a fonte de todo mal.
– George Bernard Shaw
. A vida e a maneira de ganhar a vida não deveriam ser separados, deveriam fluir da mesma fonte, que é o espírito. Espírito significa vida, e tanto a vida como a maneira de ganhar a vida se referem a viver com profundidade, com um sentido e um propósito, com alegria e com a sensação de contribuir para uma comunidade mais ampla.
– Matthew Fox
. As pessoas que dizem que algo é impossível de ser feito não deveriam interromper quem já está fazendo.
– Jack Canfield e Mark Victor Hansen227

A Máquina Compactadora do Tempo (que vimos no capítulo 1) nos defronta com algumas perguntas relativas ao dinheiro. A questão que trataremos aqui é: Como dar postos de trabalho para bilhões de pessoas em uma era de crescimento com redução dos postos de trabalho? Para analisar este tema, exploraremos as seguintes cinco ideias fundamentais:

• Nas últimas décadas, a natureza do desemprego mudou e este processo se acelerará à medida que a Era da Informação evolua.
• As formas tradicionais de lidar com o desemprego vão se mostrar cada vez mais ineficazes.
• Em áreas com altas taxas de desemprego, as pessoas já demonstraram que as condições de vida podem melhorar significativamente com a criação de moedas complementares, em lugar de confiar meramente na assistência social. É surpreendente que soluções deste tipo já tenham sido usadas antes com sucesso no mundo moderno. Na década de 1930, milhares de iniciativas assim funcionaram nos Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental e outras regiões afetadas pela Grande Depressão.
• As moedas complementares poderiam ser uma ferramenta essencial para amenizar os efeitos de falhas e crises do sistema monetário oficial em uma dada região.
• Com esse enfoque todos saem ganhando, tanto as empresas locais como a sociedade em geral.

Uma distinção importante
Definitivamente, nesse planeta há trabalho suficiente para todos, mas claramente não há empregos suficientes. Um “emprego” é o que as pessoas fazem principalmente para ganhar dinheiro, para “simplesmente ganhar a vida”, Neste contexto vamos usar a palavra “emprego” como sinônimo de “posto de trabalho”. Já o “trabalho” é um objetivo em si mesmo, ele é realizado pelo prazer de dar, ou a paixão pela própria atividade (veja o quadro a seguir).

Emprego vs. trabalho
A palavra “job” [tarefa ou emprego em inglês] é recente, ela teve origem na Revolução Industrial. Originalmente, um “job” era definido como “pilha de coisas a serem feitas” ou, mais precisamente, “algo feito para outra pessoa, visando ganho monetário”.228
“Work” [trabalho, obra] por outro lado, é uma palavra muito antiga, sua primeira aparição data das homilias de Elfric de Eynsham [séc.X d.C.]: “este trabalho [ou obra] foi iniciado pela vontade de Deus”.229 A palavra ainda tem a conotação nas frases “work of love” (obra de amor), “work of art” (obra de arte), “work of mercy” (obra de caridade). Em inglês, as palavras “work” e “worship” [adoração, veneração] têm a mesma raiz. Há línguas, como o hebraico, que até hoje usam o mesmo termo para os dois conceitos.

Muitos sinais indicam que a ideia de haver emprego para todas as pessoas – noção que só prevaleceu durante a Era Industrial – pode estar morrendo junto com ela. Só uma minoria afortunada tem empregos que são também sua “obra”, seu trabalho. Os artistas bem sucedidos sempre juntaram essas duas coisas. E os gênios em qualquer área de atuação – seja nos negócios, na educação, na saúde, nas forças armadas, na ciência ou na política – sempre “seguem sua felicidade” como disse Joseph Campbell tão eloquentemente. Porém, estes casos ainda são exceção e não a regra.

Você continuaria fazendo o que faz, mesmo tendo todo o dinheiro que pode necessitar até o fim dos seus dias? Se sua resposta é sim, então você é um destes felizardos para os quais emprego e trabalho são uma coisa só. Mas quantas pessoas você conhece que continuariam em seus empregos se não precisassem do dinheiro?

Tudo o que contribua para que as pessoas desfrutem do que fazem é bem vindo. Como diz o provérbio chinês:

Se uma pessoa tem prazer no que faz
haverá harmonia no trabalho.
Se há harmonia no trabalho
haverá ordem na nação.
Se houver ordem na nação
haverá paz no mundo.

A relação entre isto e a saúde pública
Nossa saúde se relaciona com os temas trabalho e dinheiro de duas formas. Foi provado que os empregos que não têm significado para os trabalhadores podem causar doenças e até a morte. O prestigioso Instituto Canadense de Pesquisas Avançadas chegou à surpreendente conclusão que “os serviços médicos têm pouco efeito, quando têm, sobre os níveis de saúde da população nacional”. O que mais influi na saúde pública é ter uma situação de trabalho na qual as pessoas estejam no controle das suas vidas. E a diferença entre a expectativa de vida de ricos e de pobres se explica principalmente pelo grau de controle que cada grupo tem sobre suas vidas. “Algo está matando as pessoas das volumosas classes baixas do mundo moderno, abatendo-as antes de chegar sua hora e as estatísticas mostram que isto também está matando as classes médias, que vivem mais anos que os pobres, mas não tantos como os ricos.”230.

A relação com o dinheiro
O problema do trabalho é achar quem pague para que ele seja feito, ou seja, alguém que torne um trabalho ao mesmo tempo um emprego. Portanto, como os economistas sabem, desde Keynes, a escassez de postos de trabalho é escassez de dinheiro. Mas o dinheiro precisa continuar sendo escasso? Por que não criar um dinheiro próprio em quantidade suficiente para complementar o dinheiro nacional escasso, e assim permitir que mais trabalhos sejam remunerados? Soa disparatado? Ou simplista? No entanto é o que muitas comunidades em diversos países do planeta já fizeram. Mais adiante demonstrarei que os resultados destas inovações monetárias provam a eficácia prática deste processo e explicarei por que este dinheiro não gera inflação e quais protótipos têm mais probabilidade de serem generalizados.

Antes, vamos definir a natureza do problema do emprego e mostrar como esta questão mudou na última década, irreversivelmente.

Desempregado? Quem, eu?
Segundo o saber convencional, o desemprego afeta principalmente os operários e é algo temporário, mas estas premissas ficaram totalmente ultrapassadas, inclusive no que se refere a atividades que por muito tempo foram consideradas imunes à obsolescência tecnológica ou aos cortes de pessoal das empresas (veja o quadro).231

A Criação de Desemprego na Era da Informação
. Está sendo testado um robô que pode fazer cirurgias para a substituição do quadril.
. Em 1993 foi publicado em Nova York o primeiro romance totalmente escrito por um programa de computador: um romance apaixonado, nem melhor nem pior que a maioria desse gênero.
. Na última montagem da ópera Don Carlos pela Washington Opera Company só apareciam em cena o maestro, dois pianistas e um sintetizador.
. Em 1993, a Sears eliminou 50.000 postos de trabalho da sua divisão comercial, reduzindo em 14% sua força de trabalho. Nesse mesmo ano, as vendas da companhia atingiram um belo crescimento: 10%. Isso foi antes mesmo do início da tendência atual de fazer compras sem sair de casa via Internet.
. Segundo projeções, até 2007 os portais de vendas via Internet terão abocanhado 20% das compras no varejo, mercado estimado de US$2 trilhões anuais. (O varejo é o maior segmento do setor de serviços e é dele que se espera que origine todos os novos postos de trabalho.)
. O ataque frontal contra a burocracia estatal comprime outro setor tradicionalmente criador de postos de trabalho.
. Por exemplo, no futuro os serviços diplomáticos do governo britânico podem substituir certas funções por “postos virtuais” executados por computadores.232

Quanto ao caráter “temporário” do desemprego, costuma-se pressupor implicitamente que – assim como ocorreu nos ciclos econômicos do passado – a economia vai voltar a se aquecer e com ela, a demanda por mão-de-obra.

Segundo a teoria, é de se esperar que haja desemprego “friccional”. Faz parte do sistema de alocação de mercado que, algumas pessoas ao perderem um emprego fiquem um tempo sem se reempregar, mesmo em uma economia que esteja em época de auge. Porém, milhões de pessoas no mundo todo começaram a se questionar por que o desemprego friccional sobe gradualmente sem parar década após década? Esta tendência é ainda mais alarmante quando se considera que, no mesmo período aumentou a mobilidade geográfica de quem busca emprego e aumentou também a capacidade dos sistemas de informação de encontrar a combinação correta entre pessoa e vaga de emprego.

Até a revista Fortune chegou a questionar por que “quase metade dos novos postos de trabalho de período integral criados na década de 80 paga menos de US$ 13.000 por ano, uma renda inferior ao parâmetro de pobreza para uma família de quatro pessoas”. Além disto, o nível de instrução não necessariamente ajuda; como informa o Wall Street Journal, um de cada três trabalhadores com nível superior agora é obrigado a aceitar uma função que não requer formação universitária.233

Na Europa ocidental, o desemprego ficou teimosamente estancado no nível muito incômodo de 10% durante quase uma década. A principal diferença entre os Estados Unidos e a Europa é que nos Estados Unidos as pessoas terminam aceitando empregos que estão abaixo da sua competência e formação. O fato de pessoas com graduação universitária fritarem hambúrgueres em cadeias de fast-food deve ser interpretado como sinal da economia saudável e da alta tecnologia da sociedade futura? Um universitário formado em 1996 sintetizava assim a experiência dos seus amigos no “mundo real do trabalho”: “A metade de nós tem um excesso de trabalho ridículo e a outra metade está gravemente subempregada. É como se tivéssemos que optar entre o workaholismo e a depressão, sem ter nenhuma outra opção entre essas duas coisas”

Ilustração de John Grimes: “com medo de interagir com as pessoas, Sam se refugia no trabalho”.

Até no Japão, onde se considera praticamente direito de nascimento ser contratado pela mesma companhia na qual o pai trabalhou, ou a mãe, o desemprego vem aumentando lentamente. O que está acontecendo?
A era da redução de pessoal

A era da redução de pessoal
Fomos treinados, a maioria de nós, para acreditar que aprendendo uma profissão, seremos contratados por uma empresa para desenvolver uma função dentro dessa profissão e, se fizermos tudo certo, iremos subindo na carreira, até a aposentadoria. Mas esta ideia já está tão ultrapassada quanto os dinossauros.

Nas últimas três décadas, as empresas investiram bilhões de dólares em equipamentos de informática. O índice de crescimento destes investimentos foi maior que o de qualquer outra tecnologia em toda a história. Por exemplo, nos EUA, os investimentos das empresas em informática saltaram de 7% sobre o total em 1970 para 40% em 1996. Somando a isto os bilhões de dólares destinados aos softwares, o gasto em informática supera atualmente todos os investimentos em todos os outros equipamentos da produção.234

Para entender a verdadeira magnitude disso, temos que multiplicar este extraordinário aumento do valor investido pela não menos extraordinária diminuição do custo por unidade. Os custos de processamento de dados caíram 30% a cada ano durante os últimos vinte anos, e todos os especialistas concordam que esta tendência continuará ao menos mais uma década ou duas.

No princípio, as tarefas repetitivas foram informatizadas, área após área, mas todos os aplicativos estavam sendo criados em função da estrutura e dos procedimentos gerenciais existentes na empresa. Um dia, alguém pensou em inverter a direção e perguntou: “Como devemos nos organizar para tirar o máximo proveito das tecnologias de informação disponíveis?”.235

Assim nasceu a “reestruturação”, também designada pelo eufemismo de “reengenharia”. E também os “cortes estratégicos de pessoal”. Para sermos justos, conste que a intenção dos criadores da reengenharia não era cortar pessoal. Um dos seus pioneiros foi Thomas Davenport, vice-presidente da área de pesquisa da CSC Index, (o “berço” da reengenharia).

Em um artigo publicado na Fast Company, Davenport afirmava que “A reengenharia no início não era um código para ‘demitir a torto e a direito’. Não era para ser a última tábua de salvação da administração de empresas na Era Industrial. Eu sei porque eu estava lá quando começou, fui um dos seus criadores. (…) o fato é que depois que o gênio da reengenharia saiu da garrafa, a coisa ficou feia”.236 E como todo gênio, é impossível colocar de volta na garrafa.

Ilustração de Oswald Huber: “Redução de Custos S.A.”

As grandes empresas de todo o mundo vêm demitindo pessoas a um ritmo de um a dois milhões por ano. E, pela primeira vez, isto ocorre em todos os níveis dentro da organização. Quando a Kodak reduziu seus níveis de gerenciamento, de treze para quatro, muita gente que pensava que isso jamais poderia lhe acontecer perdeu seu emprego. Logicamente surgem muitos postos de trabalho novos fora destas empresas, mas no geral eles não se comparam, nem quanto ao nível de salário nem de estabilidade, com o que essas pessoas estavam acostumadas e com as expectativas que elas aprenderam a ter.

É importante perceber que estes “cortes estratégicos de pessoal” são completamente distintos das demissões cíclicas normais do passado. Por exemplo, no passado, nas fases do ciclo econômico em que os estoques de produtos acabados se acumulavam, era considerado normal demitir operários; por outro lado, assim que esses estoques eram absorvidos pelo mercado e a economia voltava à fase boa do ciclo, eles eram reincorporados. Já no caso dos cortes estratégicos, não há motivos para supor que o ciclo econômico inverterá a tendência. O que for reduzido, fica reduzido para sempre. O crescimento sem aumento do nível de emprego não é um prognóstico, é uma realidade constatada. Vale a pena repetir a estatística apurada por William Greider: as 500 maiores empresas do planeta fabricam e vendem sete vezes mais bens e serviços que há 20 anos, conseguindo no mesmo período reduzir o total de empregados.

E as pessoas que ficam, ou que são contratadas vivem um processo muito diferente agora. O antigo critério para contratar alguém era os “3 Es” em inglês: Experience (experiência), Endorsements (referências) e Education (Instrução). Hoje, nas empresas que lideram as demais, como a CNN, a Intel ou a Microsoft, tudo é diferente. “Ninguém mais possui um emprego. Mesmo que seja contratado para um determinado emprego, a gente esquece isso assim ele ou ela entra. O trabalho é realizado na maioria dos casos em equipes que frequentemente incluem profissionais externos. As pessoas recebem tarefas, elas “possuem” um desafio ou uma oportunidade, mas não um emprego.”237

A necessidade de uma maior flexibilidade levou as empresas não só a demitir, pura e simplesmente, mas também a redefinirem suas fronteiras com procedimentos como:

• Terceirização: quem instala as maquinas da Xerox agora são os motoristas de caminhão da Ryder. Os funcionários da Fedex – que antes entregavam as peças de reposição dos computadores Commodore – agora também os consertam.
• Deslocalização: as faturas de uma das maiores companhias de seguros dos Estados Unidos, a Metropolitan Life, agora são emitidas na Irlanda; a contabilidade da British Airways é feita em Bangladesh; serviços de detecção e reparação de falhas de softwares da Califórnia são realizados por profissionais que trabalham na Índia.
• Precarização: O maior empregador dos Estados Unidos hoje é a Manpower. O que ela oferece é pessoal temporário para outras empresas. Do ponto de vista social, esta é, provavelmente, a mais significativa das três tendências.

Se você pensa que isto ocorre unicamente em empresas “gananciosas”, vejamos: até as forças armadas – que ao longo da história sempre tiveram interesse em contar com pessoal capacitado – abraçaram essa nova maneira de pensar. Um relatório estratégico sobre capacidade militar dos Estados Unidos publicado em 1997 concluía que as tropas da ativa deveriam ser reduzidas em nada menos que 50.000 homens, principalmente no exército, para ajudar a pagar armamentos tais como sistemas computadorizados de artilharia e detectores eletrônicos de armas biológicas. O Relatório Quadrienal das Forças Armadas, ao analisar as necessidades previstas até o ano 2010, centrou foco no corte dos “custos de infraestrutura” (que hoje representam 40% do total de gastos do Departamento das Forças Armadas). Estes custos se referem a tudo o que não esteja diretamente relacionado com a função central, que é fazer guerras, indo de professores a encarregados das cantinas das bases militares, e do pessoal empregado em creches até contadores. Isso mesmo, adivinhou: o que estão fazendo é “privatizar” e “terceirizar” todas estas funções.

E não se deve considerar isto uma moda passageira. Um estudo financiado pelo Departamento de Educação e Emprego do Reino Unido e publicado pela Business Strategies, uma consultoria que mantém um estreito relacionamento com a Secretaria do Tesouro, concluiu que não se deve esperar a criação de novos empregos de período integral nesse país nos próximos 10 anos.238

E não creia, também, que se trata de uma tendência puramente anglo-saxã. Um estudo realizado no último ano pela Cranfield School of Management para a Comissão Européia com 4720 organizações de 14 países europeus revela um aumento significativo dos empregos de tempo parcial ou com contratos temporários (de até três meses). A Holanda foi o país com maior crescimento: 70% das empresas ampliaram o total de postos de trabalho de jornada parcial. Mais de 50% das companhias da Alemanha, da Itália, da Finlândia e da Suécia estão fazendo o mesmo. No restante da Europa, houve aumento em “só” 30% a 50% das empresas.239

William Bridges, especialista em tendências de emprego, questiona: “Qual é a porcentagem dos postos de trabalho temporários?”. A maioria das estimativas está no intervalo entre 2% e 20%. A resposta dele: “Na verdade, 100%. Acontece que 85% de nós ainda está em fase da negação”.240

Consequências econômicas
A Federação Internacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, com sede em Genebra, prevê que “dentro de 30 anos, serão necessários apenas 2% da atual força de trabalho mundial para satisfazer a demanda por todos os bens”. A pergunta interessante é, obviamente: e os outros 98%, o que vão fazer?

Alguns podem argumentar: E daí? Retração no total de postos de trabalho já aconteceu várias vezes.
• Em 1800, mais de 80% da população dos Estados Unidos trabalhava na agricultura.
• Em 1900, eram 48%.
• Em 1950, 12%.
• E atualmente a proporção é insignificante: 2,9%.

O incrível é que esses 2,9% não só suprem a demanda de alimentos de todo o país melhor que os 80%, eles além disto alimentam grande parte do resto do mundo! Todos que abandonaram a agricultura encontraram trabalho na cidade, seja na indústria, no comércio ou em serviços.

Paul Krugman vs. William Greider e Robert Reich
Em uma série de ensaios engenhosos,241 Paul Krugman lançou sua artilharia contra os best-sellers escritos por William Greider, um renomado jornalista e pelo secretário de Trabalho do governo Clinton, Robert Reich.242 Ao atacar o que ele denominou “mitos que satisfazem emocionalmente”, que se referem a uma possível crise do emprego gerada pelas mudanças tecnológicas, os golpes de Krugman se centram em dois pontos:
. A “falácia da quantidade de empregos disponível”, ou seja, a ideia de que no mundo só há uma quantidade limitada de postos de trabalho e, por isto, quando aumenta a produtividade essa quantidade automaticamente se reduz. Ele argumenta que embora em um setor determinado o aumento da produtividade possa ocasionar perda de postos de trabalho, por outro lado ele estimula a criação de empregos em outros setores da economia. E dá o exemplo clássico: a redução observada na indústria de transformação nos últimos 30 anos devido ao aumento da produtividade foi mais que compensada pela criação de postos de trabalho no setor de serviços.
. Grande parte dos debates sobre a relação entre globalização, comércio internacional, tecnologia e emprego é irrelevante, afirma Krugman, pois, segundo ele “se você quer um modelo simples para prever a taxa de desemprego dos Estados Unidos nos próximos anos, é este aqui: O desemprego será o que Alan Greenspan quiser que seja, mais ou menos um fator de erro aleatório para refletir o fato de que ele não é exatamente Deus”.243 Isso é assim porque Greenspan pode adaptar sua política monetária considerando todos os impactos das mudanças no comércio internacional ou na tecnologia.

Concordo totalmente com ambos os argumentos, mas a questão dos postos de trabalho continua me preocupando por duas questões:
. A diminuição do emprego em um setor e elevação em outro pode estar muito bem do ponto de vista estatístico, mas para os indivíduos envolvidos não é tão simples. Quando a mudança levava uma geração, era realista, e até compatível com o “sonho americano”, que o filho de um trabalhador da indústria siderúrgica se tornasse um engenheiro eletrônico ou um advogado. Porém, até que ponto é realista supor que ele próprio, se for demitido, terá as condições econômicas e intelectuais necessárias para se reciclar e conseguir um dos empregos hi-tech que a nova economia está criando? À medida que a mudança se acelere, é previsível que aumentará a quantidade de gente que ficará no vácuo entre os setores antigos e os novos que estão crescendo. E o que essas pessoas vão fazer?
. Por que razão aproximadamente um terço da humanidade (sendo a maioria no chamado Terceiro Mundo) esteve desempregado ou subempregado durante todo o período sobre o qual temos dados estatísticos? Estima-se que cerca de 700 milhões de pessoas em todo o mundo ficaram desempregadas durante décadas. Krugman poderia responder que esse não é um problema para Greenspan. No entanto, dada a função do dólar no mundo, as decisões da Reserva Federal afetam diretamente milhões de postos de trabalho em todo o planeta. Quando Paul Volcker decidiu acabar com a inflação nos EUA na década de 80, gerou uma quebradeira em toda a América Latina.

Em outras palavras, o que eu sustento é que a questão do emprego no nível global não é uma questão de gestão econômica mas um grave problema institucional. E afirmo, além disto, que a abordagem recomendada mais adiante neste mesmo capítulo poderia aliviar a situação, por meio de moedas complementares às moedas nacionais administradas por Greenspan e os demais presidentes de bancos centrais. E além disto, quando tais moedas são concebidas inteligentemente, elas podem contribuir para reduzir a inflação na economia em lugar de dificultar o controle da inflação, como ocorre com as moedas convencionais (como veremos no capítulo 8).

Logicamente, tudo isto é verdade. Mas quando em vez de Revolução Industrial a Revolução é da Informação, há uma diferença estrutural. O agricultor se tornou fabricante de carruagens, e o fabricante de carruagens pôde aprender a fabricar automóveis e cada vez que mudava de trabalho, passava a ganhar mais. Mas o que um gestor de informação pode fazer quando deixar de ser necessário, fritar hambúrgueres? (veja o quadro anterior).

Ilustração de Oswald Huber: “Serviço de orientação de carreira”.

Desta vez podemos ficar encurralados, pois embora faça sentido que cada empresa separadamente aumente a competitividade, reduzindo pessoal, desta vez a equação não fecha. Quando Henry Ford decidiu fabricar um carro tão barato que os operários da sua fábrica pudessem comprar, ele iniciou um círculo virtuoso: quanto mais carros, mais operários, quanto mais operários, mais carros. Mas o crescimento com desemprego está na direção contrária e pode gerar um círculo vicioso. Cada vez que uma pessoa é despedida ou obrigada a reduzir sua renda, sai do mercado consumidor de alguns dos belos aparelhos que as empresas que demitem continuam produzindo. Mesmo que cada empresa, isoladamente, se beneficie demitindo, o bolo do mercado diminui, e podemos descobrir de repente que todo mundo ficou pior do que estava, incluindo a empresa que demitiu.

O fato de ser um fenômeno global complica ainda mais o quadro. No Terceiro Mundo as plantas industriais que estão sendo construídas empregam tecnologias tão eficientes como as do Primeiro Mundo, e uma década de políticas de “ajuste estrutural” promovidas pelo FMI privou muitos dos trabalhadores das parcas proteções sociais que eles tinham.

As previsões de Keynes
Em seu Ensaios de Persuasão,244 John Maynard Keynes predisse há mais de 60 anos, com extraordinário acerto, que chegaria um momento em que o problema da produção seria resolvido, mas a transição provavelmente seria penosa:

“Se o problema econômico [a luta pela subsistência] for resolvido, a humanidade ficará sem ter seu propósito tradicional. (…) Então, pela primeira vez desde a sua criação, o ser humano enfrentará seu problema real e permanente. (…) Creio que nenhum país, nenhum povo, pode vislumbrar a futura era do ócio e da abundância sem estremecer. Para uma pessoa comum, sem talentos especiais, encontrar o que fazer e se manter ocupado é algo de dar medo, especialmente se já não tiver raízes em algum lugar, ou nos costumes ou nas adoradas convenções de uma sociedade tradicional.”

Um desastre anunciado: é nesse grave impasse que estamos hoje.

Desde a época mais remota que se conhece da história, as pessoas se identificam com sua profissão. Ainda nos descrevemos como escultores, professores, especialistas em informática, banqueiros. Na verdade, muitos dos sobrenomes mais comuns derivam de ofícios: Smith (ferreiro), Fletcher (quem faz flechas), Potter (ceramista), ou o equivalente em outras línguas vivas ou mortas. Isto remonta à Idade da Pedra. Nas primeiras tábuas sumerianas, quem escreveu se identifica como “fulano, o escriba”.

Se Keynes tiver razão, pela primeira vez na história seremos obrigados a nos reinventar, buscar outro modo de definir quem somos. Já não poderemos nos identificar usando esses “rótulos” de produção. Em outras palavras, teremos que buscar outras identidades, outros propósitos para as nossas vidas. Diante dessa mudança histórica sem precedentes, Keynes dizia que nenhum país pode vislumbrar o futuro “sem estremecer”.

Keynes não foi o único a predizer esses problemas. Norbert Wiener, criador da cibernética, foi também um dos primeiros a nos alertar sobre as consequências sociais dos computadores: “Recordemos que as máquinas automáticas [ou seja, os equipamentos de produção computadorizados] são o equivalente econômico exato do trabalho escravo. Toda forma de trabalho que concorra com o dos escravos deve aceitar as condições econômicas da escravatura. Está muito claro que isto gerará tamanho desemprego, que a atual recessão, e inclusive a Grande Depressão dos anos 30, parecerão brincadeira de criança”.245

Mas… já não há sinais mostrando claramente como será?

Consequências sociopolíticas
Com o contexto atual podemos formar uma ideia bastante razoável do que vai acontecer. Só temos que olhar ao nosso redor: já está acontecendo. Eu chamo isso “o círculo vicioso do desemprego”. É um ciclo fechado de 6 etapas que se realimenta (veja a figura 6.1):

  1. O desemprego cria o sentimento de exclusão da economia.
  2. Parte dos afetados expressa isso usando violência.
  3. A maioria das pessoas comuns reage à violência com temor.
  4. A comunidade perde coesão, a sociedade se torna instável, aumenta a polarização política.
  5. Diminuem os investimentos, compra-se menos.
  6. O clima de investimento se deteriora cada vez mais, cria-se mais desemprego.
    E todo o processo recomeça do início.

Repassemos passo a passo:
Aumento do desemprego
Exclusão econômica
Violência de alguns
Temor de muitos
Polarização política
Clima desfavorável para investimentos

Figura 6.1 Círculo vicioso do desemprego no contexto atual

Exclusão econômica
“Do ponto de vista do mercado, batalhões cada vez maiores [de desempregados] enfrentam um destino pior que o colonialismo: a irrelevância econômica: não precisamos do que eles têm, e eles não podem comprar o que vendemos”. É assim que Nathan Gardels, editor da New Perspectives Quarterly, resume o nexo entre desemprego e exclusão econômica. Isto se traduz na percepção crescente que as pessoas afetadas têm de que não há lugar para elas nesta sociedade, de que elas não fazem parte dela.

Quando isso acontece com uma pessoa, normalmente ela se deprime (é coincidência o Instituto Nacional da Saúde Mental dos Estados Unidos ter declarado a depressão uma “epidemia nacional”?). Quando acontece com um grupo (como é o caso dos jovens, faixa etária na qual o desemprego é sempre maior que na população como um todo), a reação normal é a ira. Esta ira se acumula até explodir em fúria violenta, que se descarrega aleatoriamente, seja na sociedade em geral ou sobre determinados bodes expiatórios.

Violência
Nicolau Maquiavel (1469-1527) sustentava que “é útil e necessário que as leis de uma república proporcionem às massas uma forma de expressar sua ira legalmente. Sem ela, surgirão canais insólitos. E não há dúvida de que estes acontecimentos são a coisa mais prejudicial que pode haver”.246

De fato, em geral a violência é expressão da frustração e da impotência. Em um subúrbio de Lyon, França, um automóvel policial atropelou e matou um adolescente. Este acidente lamentável seria notícia apenas nos jornais locais. Porém, ocorreu em Vaux-en-Velain, um bairro operário pobre e decaído, onde o desemprego dos jovens atinge níveis muito graves. Centenas de jovens saíram às ruas e tiveram enfrentamentos primeiro com a policia e logo com a CRS, as tropas especiais antidistúrbios. O conflito durou três dias e causou danos materiais de mais de US$ 120 milhões.O único ponto sobre o qual moradores e autoridades concordavam era que o caos era decorrência do alto desemprego dos jovens.

O sociólogo francês Loïc Wacquant fez um estudo sistemático das manifestações de protesto urbanas em países desenvolvidos. Independentemente do país, a maioria dos manifestantes tem o mesmo perfil: são da juventude ex-operária que desistiu de procurar emprego no “admirável mundo novo” da Era da Informação.

O temor da maioria
O passo seguinte é fácil de adivinhar. Como a maioria das pessoas reage diante de atos aleatórios de violência contra pessoas e propriedades? A resposta é: com medo. Medo de que? Isso depende da interpretação dada aos fatos, e a interpretação por sua vez varia com o lugar, a idade, a origem, os antecedentes sociais e a nacionalidade do observador. Pode ser: medo dos jovens em geral, dos marginais. Nos Estados Unidos, medo dos negros, ou medo dos árabes na França, ou dos turcos na Alemanha, medo de… (preencher com a resposta comum da sua região).

Polarização política
O temor é para a política o que o oceano é para uma ilha: estabelece quem é o eleitorado, os limites entre quem se quer atrair e quem se quer excluir. Por isto, no mundo todo, os políticos, diante de uma situação delicada, sempre que podem, tendem, a culpar um outro país. Claro, lá eles não perdem eleitores. Mas no caso do desemprego e da violência, em geral é preciso jogar a culpa em alguma coisa mais próxima.

Por exemplo, o lema de campanha “A causa dos nossos problemas de emprego são os imigrantes”. Não há como dizer se isso veio de Pat Buchanan nos Estados Unidos, de Jirinóvski na Rússia, de Gianfranco Fini na Itália, ou de Jean Marie Le Pen na França. Todos eles criaram recentemente movimentos políticos que já contam com 10% a 20% do eleitorado dos seus países. À medida que aumentem o desemprego e a violência, é de se esperar que estes partidos extremistas crescerão

Na noite das eleições de 1994, na Itália, o líder neofascista Gianfranco Fini foi saudado por jovens (a maioria desempregados) bradando “Duce! Duce!” enquanto seu partido atingia inesperados 13,5% dos votos em todo o país. Os comentaristas se mostraram surpreendidos sem entender por que esses jovens – novos demais para ter conhecido Mussolini ou para sentir saudade daquela época – reinventaram espontaneamente os mesmos valores e palavras de ordem dos seus avós. Na verdade, era de se esperar.

À medida que aumenta a influência dos partidos mais extremistas, fica cada vez mais difícil manter um centro no espectro político, as posições se polarizam e é quase impossível atingir um consenso. Este é um terreno fértil para nacionalismos extremos, que chegam até à “limpeza étnica” como ocorreu na Iugoslávia nos anos 90, depois que o FMI impôs uma reestruturação econômica, ou na Indonésia, onde houve extermínios de grupos minoritários depois do colapso da Rúpia em 1998-99. E esses problemas podem até se estender para fora do país, quando muitas pessoas para escapar dos tumultos buscam refúgio em países vizinhos, criando desemprego onde elas forem. Imagine o que isto tudo acarreta para o clima de investimento.

Retroalimentação do desemprego
Todos tentam se defender reduzindo investimentos o que reduz ainda mais as oportunidades de trabalho. O desemprego crescente reinicia todo o ciclo uma vez mais: um círculo vicioso que, uma vez ativado, é particularmente difícil de parar.

Estudos de caso
Há muitos exemplos históricos e contemporâneos deste processo, que afetou países inteiros com resultados devastadores. Temos muitos exemplos na América Latina, onde a instabilidade política fez não só os estrangeiros tirarem dinheiro do país, como os próprios cidadãos também (são exemplos, o Peru, a Bolívia e a Argentina nos anos 70). Os níveis de desemprego dispararam e uma massa de desempregados migrou para as cidades na esperança de encontrar trabalho… mas em vão. Os descendentes desses migrantes continuam até hoje morando nas periferias, vilas de emergência, barriadas, favelas, são vários os nomes usados nos distintos países para os bairros precários. Mais significativo ainda é a quantidade dos afrodescendentes que convergiram para os bairros pobres das grandes cidades do norte dos Estados Unidos em menos de uma geração.247

A criação da classe oprimida afrodescendente urbana nos Estados Unidos
Antes da Segunda Guerra Mundial, mais de 90% dos negros nos Estados Unidos trabalhavam na agricultura ao sul da chamada linha Mason-Dixon. Em 2 de outubro de 1944, um evento mudou isso para sempre: cerca de três mil pessoas se reuniram em uma fazenda de algodão perto de Clarksdale, no Mississípi para assistir à primeira demonstração pública de uma colheitadeira de algodão. Era uma visão maravilhosa: uma máquina sozinha podia fazer o trabalho de 50 pessoas. Para os negros, isso significava que pela primeira vez desde que foram trazidos para a América para trabalhar como escravos nas plantações do sul, sua mão-de-obra já não era necessária. E pela primeira vez eles tinham se tornado economicamente irrelevantes.

“Começou assim uma das maiores e mais velozes migrações internas de massas da história.”248 Entre 1950 e 1970, mais de cinco milhões de homens, mulheres e crianças negros migraram do Sul para as cidades industriais do Norte em busca de trabalho. As coisas não saíram exatamente como eles esperavam, porque precisamente naquela época, a automatização chegou no setor de manufatura também. “Foi como se o racismo, depois de colocar o negro em um dado lugar na economia, tivesse ficado parado assistindo enquanto a tecnologia eliminava esse lugar.”249 Os primeiros a serem dispensados foram os operários negros não qualificados que viviam nos bairros mais precários das cidades.

Com o tempo, a comunidade negra se dividiu em duas classes econômicas diferentes. Um número significativo de pessoas aproveitou que a discriminação racial estava perdendo força e passou a integrar a classe média convencional dos Estados Unidos; mas para muitos milhões, teve início uma espiral descendente que os levou da exclusão econômica à violência e ao temor, indo das posturas políticas extremistas aos bairros arruinados onde ninguém quer investir. E nessas áreas surgiram o que hoje se chama “os excluídos”: uma porção da população permanentemente desempregada vivendo marginalizada, para qual as únicas alternativas que restam são receber assistência social ou viver do submundo da droga e do crime.

Isto é mais chocante por ter ocorrido no país economicamente mais avançado do mundo e em uma época de muito crescimento. E pode se tornar um padrão para trabalhadores do Primeiro Mundo, quando a tecnologia torna obsoleta grandes proporções da população. A principal diferença é que a Era da Informação universalizará esse processo, provavelmente sem envolver um fator racial. Desta vez todos somos vítimas potenciais.

Esse quadro pode ter parecido sombrio demais. Afinal, ele tinha um elemento agravante – o racismo. Mas este estudo de caso ainda assim ilustra bem o que ocorre normalmente quando grandes quantidades de pessoas se tornam economicamente irrelevantes. Pelo menos enquanto nos mantivermos nos sistemas de moedas atuais.

Soluções tradicionais
Não deve ser surpresa o fato de que as propostas mais frequentes para solucionar o desemprego atual difiram conforme a tendência política de quem as apresenta. A forma mais simples de classificar as soluções tradicionais ainda é usando as categorias “esquerda” e ”direita”.

George Lakoff propôs uma explicação coerente da dinâmica e da lógica interna da esquerda e da direita ou como se diz nos Estados Unidos, dos Liberais e dos Conservadores. Ele mostra que, na prática, a política dos Estados Unidos é uma extrapolação para a esfera pública de duas imagens opostas da “família ideal”. Ambas concebem a nação como uma “grande família”, na qual o Estado corresponde a um pai; mas cada grupo tem uma ideia bem diferente do que seria uma família boa. Podemos resumir os dois tipos de famílias da seguinte forma:

A visão Conservadora – o modelo do “pai austero”
“Nesta visão, a família é a nuclear tradicional, na qual a responsabilidade pelo sustento e proteção da família é primordialmente do pai, bem como a autoridade para estabelecer as regras gerais, fixar e fazer cumprir normas estritas para a conduta dos filhos. A mãe tem a responsabilidade de cuidar do lar no dia a dia, criar os filhos e dar suporte à autoridade do pai. O amor e o carinho são, evidentemente, parte vital da vida familiar, mas nunca devem pesar mais que a autoridade paterna, em si mesma expressão de amor e carinho, embora de um amor severo. O fundamental que os filhos devem aprender é a autodisciplina, a autosuficiência e o respeito pela autoridade legítima. Devem respeitar e obedecer seus pais, esse é o caminho para edificar o ‘caráter’ ou seja, a autodisciplina e a autosuficiência. Quando forem adultos, se virarão por conta própria e recorrerão à sua autodisciplina para sobreviver. Os pais não devem se imiscuir na vida deles.”

A busca do auto-interesse é vista como a via para conseguir a autosuficiênca usando a autodisciplina. Portanto, é natural considerar função do governo exigir dos cidadãos autodisciplina e autosuficiência, e que – uma vez “adulto” – o governo não venha se “imiscuir” na vida do cidadão.

A visão Liberal – o modelo do “pai afetuoso”
“O principal é o amor, a empatia e o carinho, e os filhos se tornam responsáveis, autodisciplinados e autoconfiantes quando recebem cuidados e respeito e quando podem também cuidar das outras pessoas, tanto da família como da comunidade. A obediência das crianças é resultado do amor e respeito pelos pais e pela comunidade, não do medo do castigo. A boa comunicação é essencial. Considera-se positivo que os filhos sejam questionadores, pois eles devem entender por que os pais fazem o que fazem. E o que eles mais precisam aprender é a sentir empatia pelos outros, a capacidade de cuidar e de manter os laços sociais. Nada disto se consegue sem a força, a autodisciplina e a autosuficiência que resultam de terem sido bem cuidados. Quando os filhos são respeitados, tratados com afeto e com uma boa comunicação desde que nascem, eles aos poucos desenvolvem uma relação de respeito mútuo com seus pais, de comunicação e cuidado que perdurará toda a vida.”250

Vendo por este prisma, é natural que o governo intervenha para ajudar os necessitados, criando vários programas assistenciais para resolver todo tipo de problemas específicos.

Aplicando esses dois pontos de vista políticos à questão do desemprego, as seguintes medidas podem ser tomadas:

Soluções da direita
Os conservadores postulam que desemprego é uma questão com a qual o governo não deve se envolver e que, com o tempo, o livre mercado resolve esse problema, um tanto delicado. O mercado já resolveu no passado vai resolver no futuro. Quando perguntaram a Milton Friedman se com a Era da Informação esta abordagem não estaria obsoleta, ele respondeu (brincando, mas não muito) que sempre se poderá criar empregos para psicanalistas para fazerem terapia uns nos outros para lidarem melhor com a crise.

Na prática, os Conservadores tendem a negar a existência de qualquer problema estrutural de desemprego. Diante das tensões sociais que decorrem indiretamente do desemprego, eles frequentemente cuidam dos sintomas à medida que vão aparecendo. Isto equivale a podar uma árvore e deixar as raízes intactas. Por exemplo, um dos brados da direita é que falta trabalho porque os imigrantes estão tirando emprego de você, portanto, é preciso ser linha dura com a imigração. Outra recomendação da direita é leis mais severas para reprimir a criminalidade. Por isso, a construção de presídios se tornou um dos setores que mais cresce nos Estados Unidos.

O que o passado das posturas da direita nos ensina?
Culpar um grupo minoritário pelos problemas estruturais da maioria é um costume muito antigo. Os judeus da época bíblica tinham um ritual para isso: escolhiam um bode ou uma ovelha negra, lhe atribuíam “todos os pecados de Israel”, sacrificavam o animal ou o abandonavam no deserto para que morresse. Os descendentes deles – e muitas outras minorias – em outras épocas teriam preferido que o mundo moderno adotasse válvulas de escape coletivas como essa. Precisamos recordar a que extremos a uma nação civilizada pode ser levada quando vai por esse caminho, sendo que há apenas uma geração, a Alemanha nazista buscou um bode expiatório quando estava em dificuldades?

No futuro, possivelmente vai se considerar a atual construção de novas prisões um dos sistemas de assistência social mais caros da história: é pouco provável que US$20.000 anuais por indivíduo preso, durante toda a vida, seja a forma mais eficiente em termos de custos de enfrentar o círculo vicioso do desemprego.

O mais provável é que em vez de mandar indefinidamente cada vez mais gente para a prisão, no final, as pessoas que têm condições terminem se fechando em “gaiolas de ouro” e outras comunidades blindadas (como já acontece em muitos países do Terceiro Mundo). Seja qual for o nível de luxo e conforto destes condomínios murados, no fim das contas eles são uma prisão autoimposta. Enquanto isto, a maioria da sociedade, que não pode se dar ao luxo de viver em um desses “guetos de ouro”, tem que se defender por conta própria em selvas urbanas infestadas de gangues. Isto é, realmente, uma evolução aceitável para uma sociedade democrática?

Soluções da esquerda
Jeremy Rifkin.251 faz uma análise tipicamente de esquerda para o problema do desemprego. Sua solução para aumentar “capital social” se baseia em três elementos:
• Reduzir a jornada semanal de trabalho de 40 para 35 ou 30 horas (esta estratégia já foi colocada em teste na França).
• Aumentar os impostos sobre produção que empregue tecnologias mais avançadas.
• Usar o valor arrecadado para pagar atividades sem fins lucrativos.

A esquerda mais populista põe a culpa na ganância do mundo empresarial, ou na internacionalização escondida atrás de siglas estrangeiras (como GATT, NAFTA, EU, FMI, etc.), ou em outra conspiração qualquer. Por esta lógica, a solução exige paralisações ou outras medidas que neutralizem essas forças.

O que o passado das posturas da esquerda nos ensina?
As soluções da esquerda também foram testadas recentemente. Ainda há resquícios do New Deal de Franklin Roosevelt e do projeto da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, assim como do Estado de Bem-Estar Social na Europa, por exemplo na forma de criação de empregos para jovens, etc. Os empregos criados pelo Estado deixaram na boca um gosto de fracasso, e um legado de burocracia e altos impostos, sem falar nos déficits e dívidas impagáveis, que vão continuar pesando ainda durante vários anos do século XXI. Nenhuma sociedade, por generosa que seja, pode se dar ao luxo de sustentar indefinidamente um número crescente de pessoas por meio da assistência social. Não é uma opção realista quando o desemprego não é cíclico, mas estrutural. O problema na verdade é que esses programas governamentais não conseguiram tirar pessoas da pobreza, e o que é pior, quem recebe esta ajuda durante muito tempo termina perdendo o respeito por si mesmo e a dignidade.

Por que as soluções tradicionais não vão funcionar desta vez
Por mais bem intencionadas que sejam as propostas dos dois lados do espectro político, nenhuma delas resolve o problema que temos hoje. A pergunta estratégica é se a questão atual do desemprego – ou no caso dos Estados Unidos, dos empregos inferiores à formação das pessoas – é conjuntural, de curto prazo, e desaparecerá com a fase positiva do próximo ciclo econômico, ou se é estrutural e crescerá sistematicamente com o decorrer do tempo. Muita tinta acadêmica foi derramada tentando determinar qual das duas situações estamos enfrentando. Na realidade, podemos estar enfrentando as duas.

Vou diferenciar três tipos de desemprego:

  1. O chamado desemprego friccional: Mesmo nas melhores situações econômicas, no livre mercado sempre haverá pessoas que passem semanas ou meses antes de conseguir um emprego e uma pequena porcentagem de pessoas em período de transição “entre empregos”.
  2. O desemprego devido a “ajustes de estoques” de um ciclo econômico normal. Isto ocorre quando um setor acumula estoques de produtos acabados. As empresas tendem a reduzir operários temporariamente, embora a partir de um ponto os estoques passem a diminuir gradualmente. Enquanto houver ciclos econômicos, é de se esperar que a demanda por trabalho flutue.
  3. Porém, hoje temos provas suficientes de que, além desses dois tipos bem conhecidos de desemprego, começou a se intensificar uma nova tendência estrutural de longo prazo, que explica por que o desemprego friccional se agrava década após década. Essa tendência é simplesmente o reflexo no mercado de trabalho da mudança dos processos produtivos da Era Industrial para os da Era da Informação.

Mas nenhuma das soluções tradicionais do binômio direita- esquerda lida com o caráter estrutural do problema. E como ainda estamos entrando na Era da Informação, só o que se pode esperar é uma aceleração ainda maior das tendências. Por exemplo, avanços revolucionários na nanotecnologia – possibilitando construir objetos átomo por átomo – tornam obsoleta a ideia de que o trabalho humano direto seja indispensável para o processo produtivo (veja o quadro a seguir).

A “revolução das duas semanas”252
“Assim que entre em funcionamento a primeira nanomontadora, seria possível ordenar a ela que construa outras e, a seguir, ordenar a ambas que construam outras coisas. Fazendo florescer novas nanotecnologias tão rápido como formos capazes de projetá-las. Uma vez que a primeira começasse a operar, haveria uma avalanche de novas máquinas que substituem mão-de-obra.”Esta onda repentina das nanotecnologias produtivas foi chamada ‘a revolução das duas semanas’, por mudar o mundo radicalmente em duas semanas. Para algumas pessoas não se trata de uma metáfora, mas da profecia de uma mudança brutal em poucos dias. Aparecerão novos sistemas inteiros com tecnologias plenamente funcionais, prontos para transformar o mundo.”

É consenso entre os estudiosos do assunto que esta transformação será em algum momento das primeiras décadas do século XXI. Embora leve mais de duas semanas, muito provavelmente, as implicações de longo prazo devem ficar claras: produção sem mão-de-obra humana é uma possibilidade real.

Nosso próximo problema sociopolítico fundamental
Como vários futuristas previram há um par de décadas,253 a esperada aceleração tecnológica está chegando. Por isto, a questão do emprego promete estar cada vez mais entre os problemas políticos internacionais mais agudos. Em um sistema de mercado mundial nenhum país ou região pode optar por ficar à margem do “progresso” sem correr o risco de cair cada vez mais fundo em uma espiral de subdesenvolvimento. Por outro lado, ainda não criamos instituições ou mecanismos para lidar com as mudanças sociais que as novas tecnologias estão desencadeando. “Aqui estamos nós, diante de oportunidades intransponíveis!”254

Nem direita nem esquerda: em frente
O debate tradicional entre direita e esquerda é ele próprio herança da economia da Era Industrial. Ele tem origem na divisão entre propriedade pública ou privada dos meios de produção, isto é, das fábricas, equipamentos e máquinas. Hoje, os conhecimentos são meios de produção essenciais, mas ainda não temos um vocabulário político e econômico adequado para lidar com esta realidade.

Porém, o que aconteceria se mudássemos o esquema monetário? Para entender isto, que tal primeiro jogarmos um jogo muito simples?

O Jogo do Dinheiro Suficiente
Pode jogar um, apenas, ou muitos participantes, você pode jogar sozinho, com a família, com amigos ou desconhecidos. Pode ser que você aprenda muito sobre você mesmo e sobre os demais. Nesse jogo ninguém perde. E ganha quem mais se divertir.

Imagine simplesmente que, por um passe de mágica, não falta dinheiro. Você criou uma grande instituição financeira ou fundação e pelas regras do jogo você deve gastar seu dinheiro dentro da sua comunidade. Pode ser um grupo de familiares ou amigos, o bairro, a região onde você vive; inclusive pode ser uma comunidade não geográfica, como um grupo na Internet. Então, para decidir o que fazer com esse dinheiro na comunidade para materializar os sonhos e construir a comunidade sonhada, os participantes respondem três perguntas:

1) Que talento você gostaria de desenvolver e colocar a serviço da comunidade?
2) Qual é a visão da comunidade que vocês acabam de formar? O que os participantes desejam conseguir em grupo?
3) Quais outras pessoas ou organizações são necessárias para realizar essa visão?

Quando se joga em grupo, cada um deve explicar suas respostas e em uma segunda rodada, deve-se refletir sobre como os diferentes sonhos reforçam uns aos outros, como algumas iniciativas se entrelaçam com as dos outros. Com frequência se verifica que as iniciativas se fortalecem mutuamente e se sinergizam de formas surpreendentes.

Veja alguma das metas que surgiram quando este jogo foi jogado:
. Cuidados de boa qualidade para as crianças.
. Ensino.
. Monitores para jovens.
. Cuidados para idosos.
. Manutenções da infraestrutura.
. Reformas nas moradias.
. Restauração do meio ambiente.
. Mais verde nas cidades.
. Arte (música, dança, teatro), espetáculos e atividades de lazer.
. Transporte público.
. Prevenção da criminalidade.
. Cuidados preventivos de saúde.

Como vemos, há muito trabalho a se fazer nas nossas cidades e comunidades, entre as pessoas com as que convivemos, e há pessoas que têm as habilidades e os conhecimentos e estão dispostas, nosso problema não é falta de pessoas ou de ideias. Há inclusive organizações capacitadas a contratar pessoas e colocá-las em ação. Tudo isso pode ser feito. O que falta, então?

Esperando dinheiro ou esperando Godot?
O que falta é o dinheiro. Todo o mundo espera o dinheiro. Se pararmos para pensar, é um fenômeno fascinante. Imagine um marciano que aterrissasse em um bairro pobre e visse imóveis em ruínas, gente dormindo nas ruas, crianças passando fome ou sem orientação, árvores e rios morrendo por falta de cuidados, colapso ecológico e todos os problemas que enfrentamos. Logo ele perceberia, porém, que as pessoas sabem exatamente o que é preciso fazer. E ao final descobriria que muitas pessoas que desejam trabalhar ou estão desempregadas ou só usam uma mínima parte das suas aptidões nos seus empregos. E veria que muitos têm empregos, mas não trabalham naquilo que os apaixona. E que todos estão esperando o dinheiro. O marciano pediria então que alguém lhe explicasse o que é esse tal de dinheiro que todo o mundo está esperando. Você conseguiria dizer a ele, tranquilamente, que é “um acordo que uma comunidade faz para empregar alguma coisa (serve praticamente qualquer coisa) como meio de pagamento” e depois continuar esperando? O marciano iria embora duvidando se há vida inteligente aqui neste planeta.

Este jogo ilustra o que Edgar Cahn, o criador dos Time Dollars, quis dizer com:
O preço real que pagamos pelo dinheiro que usamos é ele dominar o que consideramos possível e o que não. É a jaula que ele constrói para aprisionar nossa imaginação.255

O fato é que a quantidade de trabalho a ser feito é suficiente para ocupar todo mundo em uma comunidade pelo resto da vida, trabalho que expresse nossa criatividade específica. Será que estamos tão hipnotizados pelo medo da escassez de dinheiro que tememos também que falte trabalho?

Então, o que podemos fazer?

Concretamente: criar moedas complementares projetadas para cumprir funções sociais que as moedas nacionais não cumprem ou não podem cumprir. A seguir descreveremos várias dessas moedas não convencionais que já estão em funcionamento em mais de uma dúzia de países. Aqui vou apenas esboçar as novas possibilidades que esta estratégia criaria.

Imagine o que pode acontecer quando se permite que dois sistemas econômicos complementares funcionem paralelamente. De um lado, uma economia competitiva global impulsionada pelos sistemas monetários nacionais convencionais; de outro lado, uma economia cooperativa local movida a moedas complementares. A competitiva seria composta pelos empregos atuais, tradicionais, pagos com moeda nacional escassa, e a outra economia abarcaria todo tipo de atividades pelas quais as pessoas estivessem dispostas a pagar em uma moeda complementar, disponível sempre em quantidade suficiente. O desemprego e o subemprego poderiam ser resolvidos porque as pessoas trabalhariam na melhoria das suas comunidades e seriam remuneradas em moeda local.

Como no relato “Um mundo equilibrado” (do capítulo 1), a maioria das pessoas trabalharia uma parte do tempo em uma economia e a outra parte na outra. Ou dentro de uma família alguns membros estariam empregados principalmente no circuito econômico mundial competitivo, e outros teriam mais atividades na economia local. De preferência, todos “seguindo sua felicidade”; idealmente todos realizando trabalhos que fossem também seus empregos.

Na Economia Integral (que eu explico detalhadamente no capítulo 10) isso é possível. Ela é a convergência da economia competitiva tradicional com a economia cooperativa local. A competitiva produz capital financeiro; a outra, capital social. Elas podem funcionar em simbiose, como mostra a figura 6.2.

Moedas nacionais
(escassas e competitivas)

Moedas
complementares
(suficientes e cooperativas)

Economia yang
Capital financeiro

Economia
yin
Capital social

Transações comerciais Intercâmbios comunitários

Figura 6.2 Economia Integral com sistemas monetários complementares

Eu a chamo “Integral” porque ela visa integrar dimensões que a economia oficial tendeu a subestimar ou ignorar. Mas antes de averiguar como funciona a Economia Integral, precisamos nos familiarizar mais com estas moedas não tradicionais que complementam as moedas nacionais habituais. Os exemplos destes tipos de moedas são o tema do restante deste capítulo e do próximo.

O que mais me surpreendeu foi descobrir que já na década de 30 estivemos muito perto de implementar uma solução desse tipo. Porém, os governos daquela época não pareciam estar dispostos, ainda, a dar a este enfoque uma chance real de se concretizar. O zeitgeist da década de 30 tendia mais para soluções extremamente hierárquicas e centralizadas para todo tipo de problema. E você vai ver que os governos interrompiam esses experimentos, não por não funcionarem, mas porque funcionavam bem demais sem precisarem de intervenções do governo central.

O caminho não seguido na década de 1930
Se sua família viveu nos anos 30 na Europa ocidental, no Canadá, nos Estados Unidos ou no norte do México (isto é, nas regiões onde a Grande Depressão teve impactos mais fortes), você deve ter ouvido falar do “caminho não seguido”. Depois do período de hiperinflação que assolou a Alemanha na década de 20, ou do colapso da bolsa, que afetou outros países em 1929, milhares, literalmente, de comunidades criaram moedas próprias, seu município provavelmente teve a sua.256 Antes de vermos algumas dessas histórias, vamos dar uma olhada no contexto geral da época, destacando as semelhanças e as diferenças em relação à realidade atual.

Os problemas da década de 1930: algumas semelhanças e diferenças
Entre o contexto dos anos 30 e os tempos de agora, há diferenças óbvias, mas pelos resultados das políticas monetárias que são aplicadas hoje, podemos detectar certas semelhanças perturbadoras (veja o quadro a seguir).

Maneiras novas de repetir problemas antigos?
Os erros monetários da década de 30 aparecem agora em todos os livros básicos de economia. Todo o mundo concorda que um período que poderia ter sido de uma recessão como tantas, se tornou uma depressão catastrófica devido aos enganos cometidos por alguns bancos centrais, em especial o da Áustria e o dos Estados Unidos.

Na primavera boreal de 1931, o maior banco da Áustria, o Kredit Anstalt, estava à beira da falência, quando o governo o socorreu com dinheiro novinho, acabado de imprimir provocou uma grande fuga de capitais, devido ao temor de que se repetisse uma hiperinflação semelhante à ocorrida após a Primeira Guerra Mundial, que ainda estava fresca na memória das pessoas. A Áustria pediu ajuda aos países vizinhos e ao Banco de Compensações Internacionais (BIS), que acabava de ser criado. A ajuda, além de pequena demais, demorou demais.

Enquanto isto, nos Estados Unidos a Reserva Federal estava tentando defender o padrão ouro a qualquer preço, às custas da economia real. Em lugar de estimular uma reativação econômica por meio do gasto público com déficit fiscal, o presidente Herbert Hoover priorizou equilibrar o orçamento. Todos achavam necessário algum sacrifício no curto prazo para remediar os danos causados pelos excessos do passado.

É consenso entre os economistas que não poderíamos repetir hoje os erros da década de 30. Mas devemos estar cometendo erros novos que causam os mesmos efeitos.

Quando o Japão tenta reaquecer sua economia estancada aumentando os gastos do governo, com déficit fiscal, as agências de classificação de risco rebaixam a classificação da sua dívida, tornando oneroso demais para o país manter essa política.

Quando a Tailândia, a Coréia ou a Indonésia veem suas economias colapsando, são aconselhadas a elevar os juros para “recuperar a credibilidade dos mercados financeiros internacionais”, o que agrava a crise nesses países.

Enquanto isto, na Europa, os governos se metem no mesmo beco sem saída que o presidente Hoover, com sua ortodoxia orçamentária fora de hora, em um momento de desemprego estratosférico.

Esses procedimentos não são novas formas de defender o sistema monetário a qualquer preço, às custas da economia real? Ou de impor sacrifícios de curto prazo na esperança de com isso remediar os excessos do passado?
E as ajudas de hoje dos organismos internacionais, não são pequenas demais e tardam demais?

A moeda oficial da Alemanha na década de 1920, o Reichsmark colapsou totalmente (analogamente houve há pouco a crise do rublo). E em outros países, nos anos 30, a escassez de moedas nacionais se tornou insuportável devido às falências de bancos e empresas. (A falta de crédito atual na Ásia e na América Latina configura uma situação similar.)

Soluções de 1930
Entre as interessantes soluções que foram implementadas naquela época estava o movimento, hoje praticamente esquecido, das “moedas de emergência”. Todos os sistemas de moedas complementares da década de 30 tinham uma meta em comum: assegurar que as pessoas tivessem meios de pagamento para suas atividades, de modo a criar postos de trabalho, umas para as outras. Dois meios foram usados com esse objetivo:
. As pessoas compensaram a escassez de moeda nacional emitindo suas moedas complementares.
. Em casos mais sofisticados, definiram incentivos para evitar acumulação de moeda. Procurava-se neutralizar a tendência dos que tinham algum dinheiro a entesourá-lo por medo do futuro, porque isso agravava a situação dos demais (esse mesmo problema se verificou no Japão no final da década de 90.)

Compensar a escassez da moeda nacional
Como as pessoas desempregadas não ganham dinheiro, se uma certa quantidade dos seus clientes estão sem emprego, sua empresa também vai falir, e o número de desempregados aumenta, levando até empresas maiores à falência, e assim sucessivamente. Esta bola de neve estava assolando o Ocidente devido à crise da década de 1920.

“Se alguém sabe que vai ser executado dentro de 15 dias, sua concentração mental aumenta extraordinariamente.” De repente as pessoas perceberam que o dinheiro não era outra coisa, afinal, que “um acordo que uma comunidade faz para empregar alguma coisa (serve praticamente qualquer coisa) como meio de pagamento”. Então, concordaram em aceitar notas de papel emitidas nas suas localidades, fichas de metal e qualquer outra coisa com a qual fosse possível estabelecer o acordo mencionado acima. Entre os itens mais exóticos desta onda criativa dos anos 30, encontrei os seguintes:

  • Em Olney, no Texas, usaram rabos de coelho e de lebres (oficializados como moeda pela Câmara de Comércio local em 1936), o que aparentemente teve o efeito colateral desejado de reduzir a proliferação de coelhos.
  • Em Pismo Beach, na Califórnia, empregaram conchas marinhas com o carimbo da empresa Harter Drug (oficializadas em 8 de março de 1933).257
  • Em Petaluma, Califórnia, a companhia Cochrane Lumber fabricou como meio de troca discos de madeira com a inscrição “Em Deus confiamos” (1933).

Incentivos para a circulação
Uma vez criada uma moeda, o problema seguinte era assegurar que as pessoas não a entesourassem. Sempre que alguém entesoura moeda, a falta de circulação impede outros integrantes da comunidade de realizar transações. Os tipos mais sofisticados de moedas complementares criadas nos anos 30 estimulavam o giro da moeda usando um mecanismo recomendado pelo empresário e economista teuto-argentino Silvio Gesell (veja o quadro a seguir).

Silvio Gesell (1862-1930): profeta, excêntrico ou apenas sem sorte?
Silvio Gesell nasceu no dia 17 de março de 1862 na Prússia. Era o sétimo de 9 filhos, a mãe era belga e o pai alemão. Em 1887 ele emigrou para a Argentina, e lá se tornou um próspero empresário, mas deixou seus negócios em mãos de um irmão e retornou à Europa para se instalar em uma propriedade rural na Suíça. E se dedicou a o que Keynes considerava “as duas ocupações mais prazerosas para quem não precisa ganhar a vida: escrever livros e ser agricultor experimental”. Em 1911 ele foi viver perto de Berlim, em uma cooperativa agrícola fundada por Franz Oppenheimer (1864-1934), cujas ideias contribuíram posteriormente para dar forma ao movimento dos kibutzim na Palestina.

A experiência de Gesell como empresário na Argentina, país de moeda muito instável, o convenceu de que duas coisas são chave em um capitalismo socialmente responsável: a moeda e a reforma agrária. Em 1891 ele escreveu sobre a importância da velocidade de circulação do dinheiro para a determinação do nível de preços, preparando o terreno para a celebrada obra de Irving Fisher publicada na década de 1920.

No final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Gesell publicou no periódico alemão Zeitung am Mittag (jornal da manhã) esta advertência profética: “Apesar da promessa sagrada das nações, de repúdio à guerra por toda a eternidade; apesar do clamor das massas ‘guerra nunca mais!’ Face a minha profunda esperança de um futuro melhor, devo dizer o seguinte: Se for mantido o atual sistema monetário – da economia movida pelos juros – me atrevo a predizer que não se passarão 25 anos antes de que nos deparemos com outra guerra, mais terrível ainda. Assim como ocorreu no passado, haverá tentativas de anexar territórios de outras nações e para isto serão fabricadas armas com a justificativa de que isso pelo menos cria trabalho para os desempregados. E entre as massas insatisfeitas serão gerados movimentos revolucionários indomáveis e a erva venenosa do nacionalismo extremo se multiplicará. Já não haverá entendimento mútuo entre as nações, e isto por fim só pode levar à guerra”.

Em 1919 ele foi nomeado ministro de Finanças do governo de Gustav Landauer, durante a chamada “Räterrepublik” (a República Soviética da Baviera), mas uma semana depois Landauer foi brutalmente assassinado por um grupo paramilitar de direita e Gesell foi encarcerado. Imediatamente depois disto, os marxistas radicais assumiram o poder na Baviera e tornaram a detê-lo para submetê-lo a uma corte marcial por alta traição. Mesmo tendo sido absolvido, a Suíça o declarou “persona non grata” e ele não pôde retornar ao seu sítio.

Sua morte em 1930, pouco antes de cumprir 68 anos foi eloquentemente ignorada por toda a imprensa alemã. E praticamente desde essa época as teorias monetárias que Gesell intitulou “Economia Livre”, vêm sendo sumariamente desconsideradas tanto pela direita como pela esquerda, por falta de uma correta compreensão, ou mais frequentemente devido a ele ter na época se mantido sempre eqüidistante no campo de batalha entre o marxismo e o capitalismo. Na verdade, sua obra foi tida como “uma importante reconciliação do individualismo com o coletivismo”. Muitos economistas alemães consideram que hoje a importância da sua obra está voltando a ser reconhecida.258 Maurice Allais e Lawrence Klein, dois economistas não alemães agraciados com o prêmio do Banco Central da Suécia “em Memória de Alfred Nobel”, aderiram aos louvores de Keynes e Fisher às contribuições teóricas de Silvio Gesell.

Voltaremos às ideias de Gesell259 mais adiante. De momento, fiquemos com o mecanismo das “notas com selos” que ele recomendou. A ideia central era incentivar as pessoas a manter o dinheiro circulando, por meio de uma taxa anti-entesouramento (chamada tecnicamente de “demurrage”, termo que tem origem na prática do ramo ferroviário de se cobrar uma taxa por manter um vagão de trem inativo). No verso de cada nota havia pequenos quadrados, em geral 12, no qual se devia colar selos (um por mês). Para que uma nota permanecesse válida, era preciso ter o selo do mês. Estes selos podiam ser comprados com moeda local nas lojas que participavam do plano. Vejamos agora de que modo este plano geral foi colocado em pratica em três países chave: na Alemanha, na Áustria e nos Estados Unidos.

Wara – o sistema alemão
Em 1923, já não havia mais esperança para a moeda oficial da República de Weimar. Para se ter uma ideia, antes da Primeira Guerra Mundial (1913), um dólar valia 4,2 marcos; ao final da guerra, já havia aumentado para 8; em 1921 valia 184 marcos e um ano depois, 7350. Um zeloso registro do congressista norte-americano A. P. Andrew revela que em 1923 ele havia recebido por 7 dólares, a quantia de 4 bilhões de marcos, com os quais pagou 1,5 bilhão por uma refeição, e deixou 400 milhões de gorjeta.260

O fim da linha foi quando, em 18 de novembro de 1923, com um único dólar era possível comprar 4,2 trilhões de marcos. Naquele tempo, havia em circulação 92.844.720 trilhões de marcos.261 Os selos de correio custavam bilhões, para comprar um pão era preciso um carrinho de mão cheio de notas. Todos os dias, antes do trabalho, era preciso negociar quanto se pagaria por esse dia; os salários chegaram a ser pagos duas vezes por dia e eram gastos em menos de uma hora.

Foi nesse contexto que surgiu o Wara. O protagonista do experimento foi o Dr. Hebecker, dono de uma mina de carvão no pequeno município de Schwanenkirchen. Ele reuniu seus empregados e explicou que eles tinham que escolher: ou eles aceitavam que dois terços do salário fossem pagos em Wara, uma moeda lastreada pelo carvão da mina onde trabalhavam, ou ela teria que ser fechada. Como era previsível, houve uma acalorada discussão. Ao final, os operários aceitaram a nova moeda, depois que Hebecker providenciou para que em Schwanenkirchen houvesse fornecimento de alimentos de primeira necessidade que pudessem ser comprados com Wara.

Wara é um nome composto em alemão que significa “moeda-mercadoria”. Era um pedaço de papel respaldado inteiramente pelos estoques de carvão da mina e – para cobrir os custos do armazenamento – também se cobrava uma pequena taxa mensal, na forma de um selo. Esta taxa era uma forma de “demurrage” que assegurava que o dinheiro não ficasse entesourado, mas que circulasse na comunidade e gerasse assim maior quantidade de transações.

O invento não só salvou a mina de carvão do Dr. Hebecker e toda a pequena Schwanenkirchen, como começou a se propagar atingindo zonas cada vez mais distantes, e se tornou um elemento central do movimento da “Freiwirtschaft” (economia livre) que tinha como fundamentação teórica a obra de Silvio Gesell. Mais de duas mil empresas em toda a Alemanha começaram a usar esta moeda alternativa. Embora ela não pudesse ser inflacionária, por definição, (já que seu valor era atrelado ao do carvão), o Banco Central alemão a considerou bem sucedida demais e pressionou o Ministério da Fazenda até que o Wara foi declarado ilegal, por um decreto de outubro de 1931.262

Em decorrência disto, a mina do Dr.Hebecker teve que ser fechada e muitas pessoas voltaram para a fila dos desempregados. Assim, se tornou impossível para o povo ajudar a si mesmo no nível local, restando uma única opção: uma solução inteiramente centralizada.

Um público cada vez maior passou a se aglomerar nas cervejarias da Baviera, onde um obscuro imigrante austríaco atraía interessados em discursos inflamados. Seu nome: Adolf Hitler.

O gráfico abaixo mostra a correlação direta entre o nível de desemprego e a porcentagem dos assentos no parlamento obtidos pelo Partido Nacional-Socialista alemão nas sucessivas eleições de 1924 até 1933 (veja a figura 6.3). Aliás, este gráfico poderia ilustrar também uma das principais etapas do círculo vicioso do desemprego: o aumento do extremismo político.

Desempregados (centenas de milhares)
Assentos do partido nazista no parlamento (%)

Figura 6.3 Relação entre a quantidade de desempregados e a participação do Partido Nacional-Socialista no parlamento263

Entre 1924 e 1928, o total de desempregados diminuiu gradualmente de 340.711 para 268.443; enquanto os assentos dos nazistas recuaram de 6,6% para 2,6%. Já entre 1930 e 1933 o desemprego disparou, primeiro para 1.061.570 e logo atingiu 5.598.855 trabalhadores, e paralelamente os assentos do partido nazista saltaram para 18,3%, e em seguida para 43,7%, culminando no final do ano de 1933 com 92,1%.

O dinheiro com selos do município de Wörgl
Enquanto isto, em outro lugar…

Uma das aplicações mais conhecidas das notas com selos foi a de Wörgl, na Áustria. Quando Michael Unterguggenberger (1884-1936) foi eleito prefeito, o vilarejo tinha cerca de 4500 habitantes dos quais 500 desempregados (mais outros mil aproximadamente nos arredores), sendo que cerca de 200 famílias estavam na mais absoluta indigência. O “prefeito de sobrenome comprido” (como o chamava o Prof.Irving Fisher da Universidade de Yale) conhecia as ideias de Silvio Gesell e decidiu testá-las.

Ele tinha uma longa lista de projetos que ele queria executar: repavimentar ruas, estender o esgoto a todo o município, arborizar as vias públicas e uma série de obras de manutenção. Embora houvesse muita gente disposta e qualificada para esses trabalhos, o prefeito tinha só 40.000 xelins no banco, uma soma ridícula para tudo o que precisava ser feito. Note que esta situação é muito semelhante à do Jogo do Dinheiro Suficiente que vimos antes.

Em lugar de gastar os 40.000 Xelins começando o primeiro projeto da sua longa lista, ele resolveu depositar o dinheiro em uma conta de poupança constituindo um lastro para emitir as “notas com selos de Wörgl” totalizando esse mesmo valor de 40.000 xelins. E utilizou as notas emitidas para pagar pelo trabalho no primeiro projeto.

Como cada mês era preciso colar um selo (que custava 1% do valor nominal da nota) no verso da nota, todos que recebiam uma nota procuravam gastá-la logo, e com isso automaticamente geravam oportunidade de trabalho para outras pessoas. Quando as pessoas já não sabiam mais em que gastar suas notas com selos, começaram até a pagar seus impostos antes do vencimento.

Wörgl foi a única aldeia da Áustria que conseguiu corrigir seu desemprego, enquanto todo o resto do país tinha níveis extremamente altos. Não só as ruas foram recapeadas, como o sistema de esgotos e todos os demais projetos da longa lista da prefeitura foram concluídos. Além disto, foram construídas novas moradias, uma pista de esqui e até uma obra que hoje exibe com orgulho uma placa com os dizeres: “Esta ponte foi construída com nosso próprio Dinheiro Livre” (vejam as fotos). Nas imediações de Wörgl, seis aldeias copiaram o sistema. Uma delas conseguiu construir uma piscina municipal com a verba que restou. O primeiro-ministro francês, Ëdouard Dalladier, fez uma visita à zona para ver com seus próprios olhos “o milagre de Wörgl”.

Fotografia de frente e verso da nota Wörgl na qual se veem os quadrados indicando os meses do ano e os selos.

Construção de um edifício e de uma ponte.

É essencial entender que nesse caso a maior parte do milagre da criação de emprego não se deveu diretamente aos projetos do prefeito – como ocorreu com as obras públicas do presidente Roosevelt, que comentaremos adiante. O que possibilitou a maioria desses trabalhos foi a circulação das notas com selos depois que elas começaram a ser usadas pelas primeiras pessoas contratadas pelo prefeito. Na verdade, cada xelim em notas com selos criou de 12 a 14 vezes mais postos de trabalho que os xelins normais, que circulavam paralelamente! (veja o quadro a seguir). O artifício “anti-entesouramento” demonstrou ser extremamente eficaz como método de geração espontânea de empregos.

O experimento de Wörgl: fatos, números e mitos264
O experimento durou de 5 de julho de 1932 até 21 de novembro de 1933. Foram emitidas “cédulas de trabalho” valendo 1, 5 e 10 xelins. Só havia em circulação, em média, 5500 xelins em moeda complementar, mas eles circularam 416 vezes nos 13,5 meses em que o experimento foi permitido, produzindo uma atividade econômica no valor de 2.547.360 xelins (cerca de US$ 7,5 milhões atuais). Em decorrência disso, naquele ano o investimento em ativos produtivos cresceu 219% sobre o ano anterior. E além disso, com a taxa anti-entesouramento cobrada mensalmente a cidade custeou sopa para 220 famílias.


Hoje, o programa político de Unterguggenberger seria considerado um plano socialdemocrata de “caminho do meio”, como ele proclamava em suas campanhas, algo “contra o fascismo e contra o comunismo com suas teorias econômicas utópicas, contra o capitalismo de estado, a burocracia e da falta de liberdade econômica, e a favor da iniciativa privada e da liberdade econômica”.265

No entanto, as autoridades monetárias na década de 30 classificaram seu experimento como “Unfug” (disparate). Depois o qualificaram de comunista, e após a guerra de ideia fascista…

A demonstração de Wörgl foi tão bem sucedida, que o sistema foi reproduzido primeiro no município vizinho, Kitzbühel, em janeiro de 1933. Em junho desse mesmo ano, Unterguggenberger fez uma conferência com representantes de 170 cidades e aldeias. Em pouco tempo 200 municípios da Áustria queriam imitá-lo. Foi quando o Banco Central, em pânico, decidiu fazer valer seu monopólio sobre a emissão de dinheiro. O povo moveu uma ação contra o banco central, mas perdeu, em 1933, e em todas as subsequentes apelações, inclusive na Suprema Corte Austríaca. Desde então constitui crime na Áustria emitir “moedas de emergência”.

E assim, Wörgl foi obrigada a ter novamente 30% de desemprego. Em 1934, a insatisfação social explodiu em toda a Áustria. Para reprimir as manifestações civis foram declarados ilegais todos os partidos de esquerda. O partido de Michael Unterguggenberger foi classificado nesta categoria e ele foi destituído do seu cargo. Morreu em 1936, ainda muito querido pela população local.

Já vimos este filme antes? Quando um povo é privado da liberdade de ajudar a si próprio no nível local, sua única alternativa é uma autoridade central do tipo “salvador da pátria”. E como qualquer economista pode atestar, quando há suficiente demanda, a oferta sempre aparece. Nem que seja preciso importar.

Durante a Anexação de 1938, grande parte da população austríaca recebeu Hitler de braços abertos, como sendo o salvador da economia e da política. O resto da história já sabemos.

Moedas locais durante a Grande Depressão dos Estados Unidos
Na década de 30, foram criadas moedas complementares em vários lugares no mundo todo: nos países bálticos, na Bulgária, Canadá, Dinamarca, Equador, Espanha, França (o projeto “Valor”), Holanda, Itália, México, Romênia, Suécia, Suíça, e até na Finlândia e na China. E nem todas foram eliminadas: como logo veremos, pelo menos um desses sistemas sobreviveu à guerra e segue funcionando com êxito (o sistema WIR da Suíça, descrito mais adiante).

Mas a “mãe” de todas as aplicações de notas com selos e o lugar onde elas estiveram mais próximas de se tornarem uma política oficial foi os Estados Unidos, país que tem um longo histórico de moedas complementares que na realidade não se conhece, em geral.

Com uma regularidade muito precisa, em situações de stress similares as pessoas reinventam espontaneamente a mesma solução. Moedas complementares foram criadas durante situações de pânico financeiro em 1837, 1873, 1893, e em particular em 1907, assim como durante a Guerra Civil de 1861-65.

Irving Fisher, Professor da Universidade de Yale, autor de um livro clássico sobre taxas de juros, amplamente reconhecido como o economista mais proeminente dos Estados Unidos na sua época ouviu falar do experimento de Wörgl e publicou vários artigos a este respeito em seu país. Sua conclusão era a seguinte: “As notas com selos não são uma panaceia, mas creio que são a medida mais eficaz contra a depressão econômica que se encontrou até agora”.266 Ele assessorou várias comunidades na implantação de sistemas de notas com selos, e foi de tal maneira inundado de pedidos, que para atender as solicitações resolveu publicar rapidamente um opúsculo.267

Ele contra-indicava usos mal embasados do sistema, como foi o caso de Charles J. Zylstra no município de Hawarden, em Iowa, que em 1932 aplicou erroneamente a teoria de Gesell, estipulando que os selos fossem colocados à nota após cada transação, em lugar de – como é o correto – a cada semana ou a cada mês. Na prática, a cobrança baseada nas operações realizadas constituíam um imposto sobre as vendas, incentivando ao invés de desestimular o entesouramento. Como não teve os efeitos desejados, os usuários terminaram abominando o sistema. Zylstra era deputado da Câmara de Representantes do seu estado, e como tal se tornou um ativo e proeminente defensor deste método, lamentavelmente equivocado. A 45ª Assembleia Geral de Iowa aprovou uma resolução, sancionada pelo governador em 25 de fevereiro de 1933, autorizando em todas as comarcas o uso de tais notas para aliviar a pobreza e o desemprego. Esta aplicação errada é descrita por alguns detratores dos sistemas de moedas complementares como sendo “típica”, quando na verdade foi uma exceção.

Apesar destes percalços, as aplicações desse sistema nos Estados Unidos foram na sua maioria planejadas corretamente e bem sucedidas. Existe inclusive um catálogo interessante ilustrado com milhares de exemplos de notas locais empregadas em quase todos os estados da União.268

Em 18 de fevereiro de 1933, o senador Bankhead, do Alabama, apresentou no Senado o projeto de lei S.5674, ao mesmo tempo que o deputado Pettingill, de Indiana, fazia o mesmo na Câmara de Representantes com o titulo H.R.14.757. A intenção de ambos os projetos era emitir US$ 1 bilhão em notas com selos no valor de um dólar cada, reembolsáveis por meio de 52 selos semanais de 2 centavos cada, com caráter de moeda de curso legal em todo o país. Seriam distribuídas entre os estados em forma proporcional à população. Após serem analisados e debatidos nas câmaras, ambos os projetos foram enviados à Comissão do Sistema Bancário e Moeda para avaliação mais detalhada.

O chamado “stamp scrip movement” (movimento das notas com selos), não só atraiu apoio de autoridades do nível federal, como se propagou em 450 municípios em todo o país. Por exemplo, a cidade de St. Louis, no Missouri, esteve a ponto de emitir um total de US$ 100.000 em notas com selos e o Óregon planejou uma emissão de US$75 milhões.

Este foi o contexto das conversas entre o Prof. Irving Fisher e Dean Acheson, subsecretário do Tesouro na época. Fisher tinha convicção de que as notas com selos eram a saída para a Grande Depressão, e empenhou seu vasto conhecimento na busca de provar isto. Ele declarou oficialmente que “a aplicação correta das notas com selos resolveria a crise da Grande Depressão, nos EUA em apenas três semanas”.269 Dean Acheson, que era uma pessoa prudente, decidiu verificar a teoria com um dos seus professores de economia de Harvard, o muito respeitado Prof.Russel Sprague. A resposta de Sprague foi que, em sua opinião, o sistema poderia realmente colocar o país para trabalhar novamente e tirá-lo da Grande Depressão, mas a descentralização teria algumas implicações políticas, e por isto seria conveniente consultar o Presidente…

Sabemos qual foi a reação de Franklin Roosevelt pelo seu pronunciamento (provavelmente o mais célebre) algumas semanas mais tarde. “A única coisa a temer é o próprio temor”.270 Nesse discurso, ele anunciou uma série de iniciativas de impacto, centralizadoras, visando combater a crise: ampliação da instituição financeira Reconstruction Finance Corporation, RFC, bem como um conjunto de projetos federais de grande escala para a criação de empregos. Basicamente, é o programa conhecido como “New Deal”, concluído em 1934 com a fundação do primeiro banco de exportação e importação (o Eximbank) dos Estados Unidos. E firmou um decreto do Executivo proibindo em todo o país todas as chamadas “moedas de emergência” em vigência bem como as que estavam em vias de serem implementadas.

Foi assim que o “caminho não foi seguido” nos Estados Unidos nos anos 30. Foi por um triz, mas a mentalidade da época definitivamente tendia para decisões centralistas espetaculares, que rendem mais créditos políticos para quem as promove.

O mais interessante é que entre os historiadores da economia, é cada vez mais consensual que no final das contas não foram as iniciativas centralizadoras que tiraram o país da Grande Depressão. Elas eram melhor que nada e muita gente trabalhadora dedicou esforços valiosos a esses programas, mas a maioria dos historiadores de economia concorda, hoje, que o fantasma da Grande Depressão só foi derrotado quando as economias – dos Estados Unidos e a alemã – passaram a se preparar para a Segunda Guerra Mundial.

Algumas lições políticas
O principal é que, decisões sobre legislação do sistema bancário e da moeda, que podem parecer técnicas e tediosas, na verdade, são as maiores bombas relógio da política. É impossível provar que Hitler não teria sido eleito ou que jamais haveria ocorrido a Anexação da Áustria se a Wara e outras iniciativas populares como as de dinheiro com selos tivessem sido permitidas. E não podemos demonstrar que a Segunda Guerra Mundial não teria estourado se o caminho não seguido tivesse tido uma chance na década de 30. Obviamente, muitas outras variáveis afetam fenômenos complexos como estes. A história não é um experimento de laboratório no qual podemos recomeçar do zero e ordenadamente alterar uma variável isolada de cada vez.

Apesar disto, a história demonstra que ao exterminar as iniciativas populares que buscavam resolver problemas no nível local, uma sociedade instruída e sofisticada foi acuada e passou a usar de formas cada vez menos democráticas, e de violência contra certos grupos minoritários feitos de bodes expiatórios, terminando por entrar em guerra. Não é de se estranhar que a repressão das iniciativas tenha este poder, pois o círculo vicioso do desemprego (figura 6.1) é cumulativo. Mussolini tinha razão ao dizer que “o fascismo não é uma doutrina, é uma resposta à necessidade de ação”. Os anos 30 foram uma prova a mais de como o círculo vicioso do desemprego liga violência, temor, polarização e instabilidades políticas. O ciclo só não se fechou com a criação de um desemprego maior ainda porque teve início a maior instabilidade de todas: a guerra.

Estes antecedentes históricos permitem fazer três observações:
• Quem decidir suprimir iniciativas com moedas complementares deve assumir a responsabilidade de criar soluções alternativas e encontrar uma maneira de pagar pelos serviços que essas iniciativas prestam. De nada vale fazer objeções devido a algum aspecto técnico e deixar o caos social e político e o desespero se instalarem, pois sabemos exatamente aonde isto nos leva: já experimentamos isso.
• Quando se impede indivíduos ou grupos de resolverem seus problemas no nível local, automaticamente se cria a demanda por um “salvador da pátria”, seja um governo central, o Führer, o Duce, Jirinovski, Pat Buchanan, Le Pen ou Gianfranco Fini – ou qualquer de seus sucessores – um salvador sempre aparece.
• Os dados revelam, também, que a única forma eficaz que os métodos centralizados têm de reduzir sensivelmente o desemprego estrutural grave é preparar um país para a guerra. Houve esse tipo de motivação econômica não só na Segunda Guerra Mundial, mas em muitos outros conflitos.

Decisões monetárias de natureza “técnica” e consequências de natureza política
Para ilustrar as grandes implicações políticas das questões monetárias, seguiremos os passos de um indivíduo em particular, que foi determinante em muitas decisões fundamentais da Alemanha daquela época: Hjalmar Schacht. Ele foi duas vezes presidente do banco central alemão (chamado de Reichsbank na época); primeiro de 1923 a 1930, e a segunda vez, muito mais controvertida, entre 1933 e janeiro de 1939, quando se tornou “o mago de Hitler”.271 Na sua história há algumas das estranhas características fatídicas das tragédias gregas. Há também um toque do mito do Dr. Frankenstein, tão prototípico do século XX, no qual um cientista cria um monstro que termina destruindo tudo ao seu redor, incluindo seu criador. A ironia é que neste caso o problema pode não ter sido o excesso de experimentação monetária, mas a escassez.

Sem dúvida, a intenção de Schacht entre 1923 e 1930 não era beneficiar o partido nazista, mas foi precisamente isso o que ele conseguiu. Mais tarde, quando as consequências já eram irreversíveis, ele mudou de lado “para tentar controlar Hitler”, mas ao invés disto, ele acabou tendo a questionável honra de ter sido tanto prisioneiro em campos de concentração como réu do Tribunal de Nuremberg depois da guerra.

O mago de Hitler ou um Dr. Frankenstein monetário?
A crise monetária alemã de 1923 fez com que um homem que, aos 46 anos, nunca havia ocupado cargo público algum assumisse o leme. No dia 12 de novembro, Gustav Stresemann nomeou Hjalmar Schacht para o cargo especialmente criado de “secretário da moeda” (Reichswährungskommissar). Três dias depois foram emitidas as primeiras notas da nova moeda o Rentenmark e proibido, a partir daquele momento, qualquer tipo de “moeda de emergência” (Notgeld). Esta norma não diferenciava as moedas de curta duração, sem solidez alguma dos sistemas robustos de moedas com lastro concreto, como o Wara.

O então presidente do banco central, Rudolf Havenstein, foi solicitado por Stresemann a renunciar ao cargo, mas se negou. Porém, ele resolveu o problema do chanceler morrendo de parada cardíaca no dia 20 do mesmo mês. Schacht foi nomeado para o posto por ser um conservador em matéria monetária, com sólidas convicções democráticas. Porém, para designá-lo, Stresemann necessitava do apoio dos socialdemocratas e isto implicou uma batalha feroz contra a candidatura de Karl Helfferich, cujos vínculos com a extrema direita levantavam suspeitas.

Poucos meses mais tarde, em 1º de abril de 1924, no outro extremo do país e do espectro social, Hitler, acusado de “perturbação da ordem pública” foi detido em Landsberg-am-Lech, na Baviera, onde escreveu Mein Kampf (Minha Luta). Tinha início a contagem regressiva que terminaria no encontro desses dois destinos.

Schacht ganhou fama de ser duro e ortodoxo na condução do Banco Central, seguindo a linha “nada de experimentos monetários”. No início, sua ortodoxia funcionou bem, mas com o tempo acarretou aumento do desemprego, o que favorecia os propósitos do adversário Partido Nacional Socialista. (para ser justo – embora este argumento não se encaixe na minha analogia com Frankenstein – devo dizer que não se pode jogar em Schacht a maior parte da culpa da ascensão de Hitler ao poder. As indenizações draconianas impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes e a hiperinflação que resultou disto, criaram as condições para o nazismo muito antes de Schacht influenciar alguma coisa. Apesar disto, fica claro que o remédio que ele receitou não reverteu a polarização política, pelo contrário, a intensificou a tal ponto, que se tornou irreversível.)

É preciso enfatizar mais uma vez que Schacht não estava em absoluto do lado de Hitler quando introduziu as novas medidas. Por exemplo, quando em 1926 resolveu se desligar do Partido Democrata, foi em protesto contra a proposta de confiscar propriedades da família aristocrática Hohenzollern; e ele se demitiu do Reichsbank em 1930 em decorrência das condições inaceitáveis que as indenizações do Plano Young impuseram à Alemanha.

Somente durante uma viagem de navio para Nova York, ainda nesse mesmo ano, que Schacht leu pela primeira vez Mein Kampf, e o desqualificou como sendo um “documento populista” e “um insulto à língua alemã”.272

Porém, em novembro de 1932, o futuro ministro de propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, registrou em seu diário pessoal273 que havia conhecido Schacht e acreditava que ele poderia ser útil. Algumas semanas mais tarde, Goebbels o apresentou a Hitler. Em 20 de fevereiro de 1933, Goebbels havia convencido Schacht de que nas eleições de março Hitler triunfaria e que essas eleições “seriam as últimas, sem dúvida, dos próximos dez anos, e talvez dos próximos cem”. Schacht decidiu cooperar com Hitler e anos depois, em Nuremberg, ele justificaria essa decisão dizendo que era a única forma que ele via de tentar controlar Hitler. Segundo David Marsh,274 o verdadeiro motivo podia ser a mera ambição: Schacht pode ter cooperado com Hitler visando apenas recuperar poder. E existem dados independentes que podem validar esta interpretação. Por exemplo, o embaixador dos Estados Unidos em Berlin, William Dodd, descreve em seu diário em outubro de 1934 que, na sua opinião, “se Hitler for assassinado, Schacht provavelmente seria o convocado para conduzir o Estado alemão”.275

Em todos esses anos, inequivocamente, Schacht apoiou Hitler em público, mas sua relação pessoal com ele era muito mais complexa. Por exemplo, o chefe da SS fez a seguinte queixa reveladora: Schacht se dirigia sempre a Hitler chamando-o simplesmente de “Herr Chancellor” (senhor chanceler) em lugar de “Mein Führer” (meu líder); e o próprio Hitler destacou que Schacht era o único que tomava essas liberdades na maneira de tratá-lo.276

Mas ao invés de Schacht controlar Hitler, na verdade o que ocorreu foi que a partir de 1936, Hitler foi transferindo todo o poder de decisão para Hermann Goering. Schacht se mostrava cada vez mais preocupado em relação aos efeitos que as vexações infligidas a judeus e a certos grupos economicamente influentes, como os maçons, poderiam ter sobre a reputação do país no exterior. Para a postura que Schacht adotava em público, o ponto de virada foi a famosa Kristallnacht (a Noite dos Cristais, 9 de novembro de 1938), na qual o Estado Alemão incendiou 250 sinagogas, assassinou cerca de uma centena de judeus e enviou outros 26.000 para campos de concentração. Nesse ano, na confraternização de Natal com sua equipe de trabalho no Reichsbank, Schacht declarou abertamente sua posição: “A Kristallnacht foi uma desgraça para nossa cultura e deve deixar vermelho de vergonha todo alemão decente”.

Mas já era tarde demais. David Marsh conclui que se Schacht tivesse sido obrigado a renunciar ao seu cargo no Reichsbank em 1937 em função das dúvidas que ele expressou posteriormente sobre os nazistas, talvez o curso da história teria sido outro. Porém, ele não foi o único nessa época, (nem na Alemanha nem no exterior) que errou ao estimar a força que estava empurrando Hitler para o abismo.277

Schacht e a maioria da diretoria do Reichsbank foram obrigados a deixar seus cargos em 20 de janeiro de 1939, por terem se negado a emitir mais dinheiro para financiar a campanha bélica de Hitler. Seu sucessor foi Fuchs, um homem fraco que sempre dizia a Hitler o que ele queria ouvir. Schacht terminou passando em vários campos de concentração, inclusive em Dachau, depois de ter sido envolvido no complô de 20 de julho de 1944, para assassinar Hitler. E foi libertado pelos soldados americanos em abril de 1945. Foi julgado no Tribunal de Nuremberg pelos anos de colaboração com Hitler. Morreu amargurado, em 1970, aos 93 anos de idade.

A história de Schacht é relevante para a questão das moedas complementares por mostrar que por mais que um presidente de banco central se aferre a ser competente, isso não impede que consequências políticas graves sejam atribuídas a decisões monetárias de natureza “técnica”.

Os sistemas atuais
Muito poucas moedas complementares sobreviveram às turbulências da segunda guerra mundial, ou aos processos de reconstrução e o boom econômico que vieram posteriormente. Como se sabe, é só quando a necessidade bate à porta, que de repente, os sistemas locais reaparecem, assim como os cogumelos, que brotam assim que surgem as condições propícias. Por essa razão, sistemas locais estão se formando nos lugares onde, por alguma razão, o desemprego atingiu níveis extraordinariamente altos.

A figura abaixo é a que melhor sintetiza o crescimento espetacular de vários tipos de moedas complementares na última década. Até os anos 80, havia menos de cem sistemas deste tipo no mundo; na última década essa quantidade se multiplicou por 20.

Outros
Japão
Argentina Outros países europeus
Itália
Alemanha e Áustria
França
Bélgica Holanda e Luxemburgo
Reino Unido
Austrália
Nova Zelândia
Estados Unidos e Canadá

Figura 6.4 Quantidade de sistemas de moedas comunitárias que funcionam em 12 países, 1984-2003 278

No restante deste capítulo e no próximo, veremos brevemente os diferentes tipos de moedas complementares em uso hoje e como elas foram implementadas nos diversos países.

Esclarecendo algumas diferenças
Antes de descrever alguns exemplos contemporâneos de moedas não tradicionais, é importante aclarar certas distinções. Em parte da bibliografia sobre novas moedas, por vezes aparece uma confusão entre escambo e moedas complementares. Há vezes em que o escambo é descrito erroneamente como qualquer intercâmbio sem uso de moeda nacional “normal”. Porém, por definição o escambo é o intercâmbio de bens e serviços sem uso de moeda alguma, a condição prévia é que as duas pessoas envolvidas tenham algo que a outra quer. Em termos técnicos se diria que as duas partes devem ter “necessidades e recursos compensáveis”. Isto limita muito a fluidez dos intercâmbios. Além do mais, foi precisamente por isso que o dinheiro foi criado. Já uma moeda complementar é um acordo dentro de uma comunidade para aceitar como meio de pagamento uma moeda que não seja a moeda nacional. É chamada “complementar”, precisamente porque o propósito não é substituir, mas desempenhar funções sociais para as quais a moeda oficial não foi concebida. E também porque a maioria dos usuários continua usando a moeda nacional paralelamente. É comum uma transação ser feita com parte do pagamento em um tipo de moeda e parte no outro.

Outra distinção útil é a diferença entre moeda fiduciária e moedas de crédito mútuo. Como já vimos (no capítulo 3), dinheiro fiduciário é um tipo de moeda criada do nada por uma autoridade monetária. Por exemplo, todas as nossas moedas nacionais (incluindo o euro) são fiduciárias. Já as moedas de crédito mútuo são criadas pelos próprios participantes em uma transação, como um débito e um crédito simultâneos. Descreveremos com mais detalhe como o dinheiro de crédito mútuo funciona, quando falarmos dos LETS e dos Time Dollars, que são moedas deste tipo. Segundo Thomas Greco, há antecedentes do uso deste tipo de moedas no estado de Massachusetts já na época colonial.279 Os sistemas de crédito mútuo são simplesmente a formalização monetária do costume de ajudar um ao outro, que existe em quase todas as sociedades tradicionais. No sul da França, por exemplo, era chamado aller aux aïdats.[N.T aller aux aïdats é uma expressão no dialeto da província Béarn da região dos Pirineus corresponde à expressão brasileira “mutirão”]

Estas distinções nos ajudarão a identificar os tipos de moeda cujo uso estimula ao invés de eliminar a reciprocidade e a cooperação. As moedas complementares, em particular as de crédito mútuo, provaram ser eficazes neste sentido, porque, ao contrário das moedas nacionais fiduciárias, são compatíveis com uma economia da dádiva. Às vezes, inclusive, elas espontaneamente propiciam o ressurgimento da tradição comunitária de troca de doações.

Para finalizar, é extraordinário que nem uma das moedas mais eficazes para promover o espírito comunitário renda juros. Recordemos que o juro é uma das características tidas como “óbvias” dos nossos conhecidos sistemas monetários nacionais. O juro é também o mecanismo oculto que, conforme ficou demonstrado, acarreta concorrência em vez de cooperação entre as pessoas (veja “O décimo primeiro círculo” no capítulo 3).

LETS
De longe, o sistema de moeda complementar mais empregado hoje é o LETS (Local Exchange Trading System), ou Sistema de Comercialização e Intercâmbio Local, reinventado no começo da década de 80 por Michael Linton na Columbia Britânica.280

Protótipos canadenses
Em 1983, Michael Linton e David Weston lançaram em Vancouver, um procedimento muito simples mas eficaz para ampliar a circulação dos escassos dólares que ficavam nas comunidades com níveis altos de desemprego. Eles fundaram uma entidade local sem fins lucrativos, basicamente uma sociedade de crédito mútuo, com um único e indispensável ativo: um computador. A organização cobrava uma pequena taxa de admissão dos associados para cobrir os custos iniciais da operação.

Logo após esta experiência piloto, ocorreu que no nordeste do Canadá em decorrência de muitos anos de pesca excessiva, de repente houve a necessidade de impor aos pescadores limites de volume para tentar recompor os cardumes. Por isto, de repente, também, comunidades litorâneas inteiras precisaram interromper suas atividades. Vilas pesqueiras que tinham sido muito prósperas chegaram à beira da miséria, com níveis de desemprego de 30% a 40%. O sistema LETS foi uma forma de lidar com essa crise.

Vejamos o caso de Amy, que resolveu participar no LETS-Happyville da sua cidade. Ela pagou a taxa de admissão de 5 dólares e a taxa anual de 10 dólares.281 A conta de Amy começa com um saldo zero. Em um mural (físico ou eletrônico) ela viu que a mecânica Sarah faz revisão em automóveis e John, dentista, também participa no sistema. Por outro lado, Harold procura quem forneça pão integral caseiro. Amy viu em tudo isto possíveis intercâmbios. Ela negocia com Sarah uma revisão do seu automóvel por 30 “dólares verdes” mais 20 dólares comuns em efetivo para as velas de ignição e paga a John pelo tratamento dentário 50 dólares “verdes” mais 10 dólares comuns. E combina com Harold de entregar dois pães integrais por 10 dólares “verdes” e descobre que ele deseja também, produtos da sua horta no valor de outros 30 “verdes”.

As parcelas em dólares convencionais são pagas diretamente entre os participantes como em qualquer outra venda, e somente os dólares “verdes” são registrados por telefone ou por meio de um bilhete enviado ao LETS. No final, Amy obtém o que necessita desembolsando só 30 dólares em efetivo por bens e serviços cujo valor total é 110. E devendo 40 “verdes” à comunidade como um todo. Os “dólares verdes” não são uma moeda escassa. Assim que as pessoas combinam uma transação, passam a dispor do dinheiro. Os “verdes” não põem os participantes uns contra os outros da forma como os dólares normais põem (“décimo primeiro círculo”, lembra?). Na maioria dos sistemas, não são cobrados juros sobre os valores devidos. Por último, todos os participantes têm acesso às informações sobre crédito ou débito de todos, de modo que o controle é auto gerido, impedindo que haja tentativas de abuso com acúmulo de dívidas.

No Canadá há entre 25 e 30 sistemas LETS neste momento, mas o método se tornou muito maior no Reino Unido do que no seu país de origem. E de lá ele se expandiu para uma dezena de outros países, em particular para regiões com alto desemprego.

Reino Unido
Em 1994, um jornalista da agência Reuters chamado Alan Wheatley enviou este informe:

Warminster tem seu “link”, Tomes tem a “bolota” e Manchester tem sua “bobina”
(De Manchester, Inglaterra)
Estes são os nomes de algumas das cerca de 200 moedas locais criadas na Grã Bretanha, no Sistema de Comercialização e Intercâmbio Local (Local Exchanges Trading Schemes ou LETS), a maioria delas no último ano e meio, como iniciativas autogeridas para reavivar a atividade econômica em comunidades devastadas pela recessão. “Creio que elas se multiplicaram por causa da falta de dinheiro, essa é a história que seu ouve em todo lugar”, diz Siobhan Harpur, que trabalha no Museu Nacional de História do Trabalhador, em Manchester, e contribuiu para criar um projeto desse tipo nessa metrópole de três milhões de habitantes. “No ano 2000, pelo menos 40% da economia de uma cidade como Manchester – ele acrescenta– vai circular com moedas complementares. Ninguém terá que trabalhar em troca de libras esterlinas mais de 20 horas por semana.” Para incentivar o sistema, o governo local emprestou 10.000 libras a serem pagas em “bobinas”, que ele usará para pagar serviços pedagógicos e outros.

Ed Mayo, diretor da New Economics Foundation (Fundação da Nova Economia) – um instituto de estudos sobre “economia alternativa” – esclarece que os programas de moedas complementares cumprem um papel particularmente útil lubrificando as engrenagens do comércio entre pequenas empresas travadas pela falta de dinheiro. “as linhas de crédito para estas empresas são limitadas e os planos locais podem ajudá-las a fazerem negócios entre elas”, afirma Mayo, que atualmente está criando um LETS, em Greenwich na região metropolitana de Londres. Segundo ele, “seria errôneo subestimar as moedas complementares considerando-as uma moda passageira propagada por místicos benfeitores da humanidade. Algumas pessoas participam porque têm interesse em recriar o sentimento comunitário, mas para outros não é um hobby, é um ganha-pão com o qual conseguem bens e serviços que de outra maneira talvez não obteriam.”

Geoff Mulgan, diretor do Demos, um instituto de estudos sobre poder e política, acredita que as economias paralelas como as dos LETS podem dar oportunidade de trabalho a muitas pessoas que não têm as habilidades ou competências necessárias para participar do que ele chama “a primeira economia”, a que se baseia no dinheiro. E segundo ele, “Além disso, as economias paralelas podem ser mais adequadas que os métodos econômicos tradicionais à cultura predominante em boa parte da Grã Bretanha hoje, em especial à dos jovens desempregados.”

Um grupo de voluntários dedicados promoveu uma extraordinária campanha de informação comunitária que fez do Reino Unido um terreno fértil para esforços de instauração de moedas complementares. Em 1991 um grupo relacionado com o LETSLINK UK (o braço do LETS no Reino Unido) com a participação de Liz Shephard e Harry Turner, foi fundamental para este processo, que possibilitou o surgimento de várias inovações e expansões do modelo original, tais como: aperfeiçoamento do “Guia de Ofertas e Demandas” e o desenvolvimento de novos aplicativos. E foi criado o prêmio Schumacher para dar reconhecimento formal ao “triunfo do esforço individual”. E é importante mencionar, também, o papel da New Economics Foundation (fundação da nova economia), que é um desmembramento da TOES – The Other Economy Summit (a outra cúpula econômica). Há projetos de LETS específicos para a área da saúde, bem sucedidos também (veja o quadro a seguir).

Um projeto de saúde mental baseado em LETS
O Creative Living Centre (centro de vida criativa) em Manchester é uma entidade beneficente que oferece serviços de apoio a pessoas com transtornos emocionais (problemas leves de saúde mental). Fica em um edifício de uma fundação dedicada a serviços de saúde, que pertence a um enorme hospital neuropsiquiátrico. O projeto é operado por um grupo de pessoas que tiveram experiências pessoais com transtornos psiquiátricos em cooperação com a National Mind (mente nacional), uma entidade de assistência à saúde mental. Um dos mecanismos de apoio a esta rede é um LETS.

Aproximadamente cem pessoas recebem atendimento semanal. O LETS do Creative Living tem 150 membros. Há uma loja LETS, pode-se alugar salas e espaços para atividades do LETS, e há feiras e leilões periodicamente. No jardim em torno da sede foi iniciado um projeto de horta comunitária, há uma cafeteria e aulas de arte funcionando no sistema LETS. Há também terapias complementares, além dos produtos e serviços comercializados em geral no LETS independentemente do Creative Living.

Em decorrência desse experimento foi realizada em Manchester uma conferência intitulada “LETS e a saúde mental”, atraindo centenas de participantes de todo o país. Atualmente já existem no Reino Unido várias entidades sem fins lucrativos na área da saúde que incorporaram o LETS em seu projeto de criação de Healthy Living Centres (centros de vida saudável), no âmbito de uma iniciativa do governo visando articular as comunidades para lidar com as questões de saúde.

Peter Baldwin, ministro da Seguridade Social da Austrália, durante o governo conservador de Paul Keating, anunciou em 8 de dezembro de 1993 que “a Seguridade Social não considerará os créditos do tipo LETS como receitas adicionais. Planos deste tipo constituem uma iniciativa comunitária útil e não devem ser desestimulados artificialmente por medidas relacionadas à Seguridade Social. Creio que existem bons argumentos para dar aos beneficiários da Seguridade Social a flexibilidade necessária para participar em tais planos. Os sistemas como o LETS, em particular, são uma forma de atividade que ajuda os participantes a se manterem atualizados em relação às habilidades e hábitos necessários para o mercado de trabalho, e na verdade ao próprio mercado de trabalho”.

Em 1998 já estavam em funcionamento no Reino Unido mais de 400 LETS. Esse número aumentou 100% desde o artigo escrito por Alan Wheatley em 1994. Porém, devemos destacar que, por mais que esse crescimento seja impressionante, no quadro geral da economia o processo continua sendo marginal. Estima-se que no total envolve cerca de 30.000 pessoas e um giro de capital total anual de só 2,2 milhões de Libras Esterlinas.282

Outro indicador da profundidade dos experimentos sociais com moedas hoje em andamento no Reino Unido é o fato de existirem 500 clubes de crédito (fundos em moeda nacional “normal” criados pelas comunidades para empréstimos recíprocos entre os membros, também conhecidos como “cooperativas de crédito”).283

Nova Zelândia
David James, um quaker de Whangarei, e Vivian Hutchinson, uma ativista comunitária de New Plymouth, na Nova Zelândia, participaram em 1984 de um seminário sobre economia alternativa organizado por quakers em Londres. Quando voltaram ao seu país, o recém eleito governo Lange-Douglas havia iniciado a maior reestruturação da política econômica desde a época da Grande Depressão. As novas medidas, combinadas com a recessão global da época, acarretaram altos níveis de desemprego em toda a Nova Zelândia, principalmente nas zonas rurais e florestais.

Em 1986, tanto a tensão social como as novas ideias haviam atingido a massa crítica necessária, e David James lançou o primeiro plano de “dólares verdes” do país, denominado Whangarei Exchange and Barter System (Sistema de Intercâmbio e Escambo de Whangarei) ou WEBS (redes). Além disto, ele começou a promover seminários para divulgar a ideia. Hilary Allison (responsável pelo Programa de Emprego Alternativo do Departamento de Assuntos Internos, da prefeitura de Dunedin), decidiu em 1988 financiar uma turnê informativa pelas regiões de Otago e Southland. A emissora de telejornais TVNZ noticiou o sucesso do sistema em Whangarei e a boa nova se espalhou com enorme velocidade.

Conhecemos mais a situação da Nova Zelândia que a de muitos outros lugares graças à primeira tese de doutorado escrita sobre LETS, de Mark Jackson 284 Ele começou por inventariar os 61 sistemas de “dólares verdes” relacionados na edição da primavera de 1993 da New Zealand Green Dollar Quarterly (Dólar Verde da Nova Zelândia Trimestral). Desses, 47 estavam funcionando bem, e os outros 14 estavam em estado terminal ou haviam morrido.

Os antecedentes dos ativistas pioneiros que tiveram um papel decisivo no êxito dos sistemas neozelandeses de dólares verdes nos dão uma ideia da enorme variedade de pessoas que estão na vanguarda das tecnologias das moedas complementares. Entre elas há autoridades governamentais, fundamentalistas cristãos, hippies, políticos reformistas convencionais e cidadãos comuns.

Uma das descobertas mais intrigantes dessa tese é que a participação da mulher nesse processo aumenta com o tempo, independentemente de origem social e de inclinação política. Na verdade, nas comunidades onde já foram implantados os dólares verdes, são as mulheres frequentemente que têm as taxas mais altas de participação.

E por último, mas não menos importante, houve, na Nova Zelândia, muitas avaliações e debates dentro dos órgãos de arrecadação de impostos e também no Departamento de Assistência Social, responsável pelo sistema de benefícios para desempregados e pela assistência social. A autoridade tributária considera como regra geral que, quando se trata de serviços profissionais sistemáticos (por exemplo, um encanador quando presta seus serviços), as receitas em dólares verdes são consideradas renda, incidem impostos e estes devem ser recolhidos em dólares neozelandeses. Já quando a atividade não é a habitual (por exemplo, se esse encanador faz um reparo em um automóvel e cobra em dólares verdes), não é tributável.

O Departamento de Assistência Social teve um papel fundamental apoiando financeiramente o início das operações de vários LETS. Porém, os escritórios das diferentes partes do país tinham interpretações diferentes quanto a serem ou não devidos os benefícios normais para desempregados quando alguém tivesse recebido algum pagamento em dólares verdes. Ao final, após avaliar os efeitos sociais que esta medida poderia acarretar, o organismo decidiu que os dólares verdes não eram motivo para excluir a ninguém do sistema assistencial, uma vez que:
a) contribuem para que o indivíduo conserve e adquira habilidades;
b) a participação ajuda a manter a motivação para buscar empregos “normais”, e
c) estes sistemas costumam ser um trampolim para trabalhos autônomos.

Austrália
Embora o governo não tenha se envolvido tão ativamente nos LETS como ocorreu na Nova Zelândia, a Austrália é atualmente o país com o maior índice de sistemas de moedas complementares per capita, com cerca de 200 sistemas em funcionamento, segundo as últimas estimativas. Em 1991 eram apenas 45, eles quadruplicaram em três anos. Um dos mais conhecidos é o LETS Blue Mountains, criado nos arredores de Sidney, com mais de mil integrantes. Uma das razões do rápido avanço é o fato de alguns governos provinciais, como o da Austrália Ocidental, terem avaliado em campo os resultados e apoiado o lançamento de novos sistemas LETS.

O caso da França: “Le Grain de Sel”
Poderíamos continuar indefinidamente mostrando país por país desde o norte da Europa, a Escandinávia, Alemanha e Holanda; inventariando o que ocorre em cada lugar; mas só mencionarei mais um país, a França, porque ilustra como é explosivo o processo de multiplicação das moedas complementares quando as condições de desemprego atingem gravidade suficiente.

No início da década de 1990, quando o desemprego começou a disparar, Claude Freysonnet, uma agricultora orgânica da região de Ariège, decidiu tomar a iniciativa. Em 1993 um amigo holandês, Phillip Forrer, havia comentado sobre moedas complementares, assim, sem demora foi criado o Grain de Sel (grão de sal), expressão que tanto em francês como em inglês tem duplo sentido, “tomar algo com um grão de sal” significa não acreditar ingenuamente, usar uma certa criticidade, não tomar ao pé da letra. E SEL é também a sigla de “Système d’Échange Local” (sistema de intercâmbio local).

Hoje, Claude vende sua produção de queijos orgânicos aos 300 membros da rede Grain de Sel de Ariège. Ela vem investindo os ganhos que obtém com essas transações em árvores frutíferas para seu pomar, bicicletas para os filhos e comprou até um automóvel. Além das transações individuais típicas do LETS, o grupo implantou uma nova tradição: a cada 15 dias fazem uma grande festa aberta na feira de Poix. As pessoas vêm para vender não só queijos, frutas e tortas, como nas feiras normais, mas também horas de trabalho de encanadores, cortes de cabelo, viagens de veleiro, aulas de inglês, etc.. E tudo exclusivamente em Grãos de Sal! Muitos moradores da região participam da feira simplesmente porque é mais divertido comprar e vender desta maneira.

Dois anos e meio depois, Claude já tem imitadores no seu país. Uma porção. Na França há mais de 200 redes “SEL”. As unidades monetárias foram batizadas com nomes como “a trufa” ou “concha do mar”. Além disto, existem 350 centros especializados em intercâmbio exclusivamente de informação e de conhecimentos, que integram a “Réseaux d’Échange de Savoirs” (rede de intercâmbio de conhecimento). Este conceito existe em países vizinhos também. Um exemplo típico é o da “Maison de l’Amitié” (casa da amizade) do sonolento município de Beauraing, na Bélgica. Na capa do folheto de divulgação deles se lê: “Eu te ensino, tu me ensinas, aprendemos juntos”. Esta iniciativa desencadeou o processo de publicação de um manual para implantação de um centro de intercâmbio de informação.285

Segundo um estudo realizado em dezembro de 1994 pelo CREDOC (Centre de Recherche pour l’Étude et l’Observation des Conditions de Vie, (centro de pesquisa para o estudo e a observação das condições de vida), atualmente um em cada quatro franceses realiza operações comerciais sem usar o franco oficial; 2% dos franceses não usa a moeda oficial na maior parte das suas transações, 10% usa outras moedas com certa regularidade e 13%, de vez em quando. Mas até na França há os estraga-prazeres de plantão: o “Fisc” (a autoridade tributária) pretende abocanhar uma fatia dos intercâmbios que excedam 20.000 Francos anuais, ou que constituam a atividade profissional habitual do cidadão (como ocorre no Reino Unido).

WIR
O WIR286 é um exemplo de moeda complementar suíça, gerida e usada por uma comunidade de consumidores e pequenas empresas. É interessante por três razões. Primeiro, porque é o mais antigo de todos os sistemas que operam no mundo ocidental: fundado em 1934 por 16 pessoas em Zurique, ele cresceu ininterruptamente por 60 anos, tanto em número de participantes como em volume de negócios. Segundo, porque comprova que as moedas complementares têm sentido inclusive no mais conservador e teimoso dos países capitalistas, que possui um dos mais altos níveis de renda do planeta. E terceiro, porque o sistema atingiu um tamanho respeitável. Em 1994, no seu 60º aniversário, o volume anual chegou a SFr2,5 bilhões (mais de US$2 bilhões), com 80.000 membros em todas as regiões do país. Suas transações são realizadas em quatro idiomas e o sistema possui seu edifício bancário próprio além de 6 estupendas agências regionais.

WIR é a abreviatura de “Wirtschaftsring-Genossenschaft” (que poderia ser traduzido, aproximadamente, como “círculo de apoio mútuo econômico”) e “wir” além disto é o pronome “nós” em alemão.

Dois dos seus principais membros fundadores, Werner Zimmermann e Paul Enz, foram autênticos visionários (veja o quadro a seguir).

Os fundadores do WIR
Em 1933, Werner Zimmermann publicou um trabalho sobre “A Liberação das Mulheres” no qual reivindicava “compensação monetária para o trabalho das mães”. Note que isto ocorria na Suíça, o último país Europeu a reconhecer o direito de voto das mulheres (em 1971). Em 1935, Zimmermann dava palestras sobre “a morte das florestas e dos rios: a questão da vida da água”, e em 1972 publicou “Energia nuclear: bênção ou maldição?”.

Paul Enz, que dirigia uma cadeia de lojas de produtos naturais em Zurique, em 1931, criou uma entidade de horticultura que tinha como missão “cuidar e promover a recuperação física e ética de toda a nação”.

Zimmermann e Enz haviam estudado as teorias de Silvio Gesell e decidiram imitar dois “círculos” que estavam aplicando esses conhecimentos, um na Escandinávia e o outro no Báltico, no início da década de 30.

Nas palavras deles próprios: “O que pretendemos? Um trabalho gratificante, uma renda justa e prosperidade assegurada. É para isso que se empenham todos os trabalhadores, do ponto de vista econômico, e é o que todos podem e devem ter…”.287 Zimmermann explicou que haviam escolhido o nome WIR (nós) em oposição a “ich” (eu), “porque juntos como comunidade protegemos melhor os interesses individuais”.288

O começo foi duro. A criação desta moeda complementar foi duramente atacada pela imprensa, pelos bancos e pelos círculos comerciais mais tradicionais. Porém, Zimmermann e Enz conseguiram reunir um capital de giro de aproximadamente SFr140.000, na sua maioria em contribuições de SFr50 e SFr100. Considerando que isso foi em plena Grande Depressão, é uma façanha extraordinária.

O sistema WIR foi implantado em 1935 com 2950 membros, mas com os transtornos decorrentes da guerra esse número foi reduzido a 624 apenas em 1945. Apesar disso, depois da guerra o total de participantes voltou a subir: 12.567 membros em 1960, 24.227 em 1980 e mais de 80.000 atualmente. Na sua maioria, são pessoas de classe média, e empresas pequenas ou médias. O volume de negócios cresceu muito: em 1973 o total do faturamento ainda era apenas SFr196 milhões, mas chegou a quase SFr 1 bilhão em 1980 e hoje está estimado em mais de SFr 2,5 bilhões. Em 1994 o volume dos créditos em aberto equivalia a cerca de SFr 1 bilhão.

Para obter um Wir, o membro pode vender algum produto ou serviço a outro ou solicitar um crédito à Coordenação do sistema. Em outras palavras, o WIR é um misto de crédito mútuo (quando a operação é uma venda direta) com moeda fiduciária (quando a Coordenação do Centro concede um empréstimo). Os créditos têm uma taxa de juro muito baixa (1,75% a.a.) e na prática em geral são garantidos por propriedades imobiliárias ou outros ativos. Como ocorre com qualquer outra moeda, a confiança é o elemento chave. Cada vez que um membro do círculo paga um empréstimo ao Centro, os créditos WIR correspondentes automaticamente saem de circulação. Foi estabelecida a paridade entre o valor do WIR e o do franco suíço (1 WIR = 1 franco suíço), mas todos os pagamentos devem ser feitos em WIR. (No jargão técnico diríamos que a unidade contábil é o franco suíço e o meio de pagamento, o WIR).

Segundo os membros, as razões para participar do WIR são as seguintes razões:
• É uma forma de fazer negócios muito eficiente em termos de custos, já que para todas as operações em WIR, a comissão sobre as vendas é só 0,6%.
• Dá acesso a uma base de clientes selecionada e fiel.
• O crédito é muito mais barato que em moeda nacional.
• Há os serviços adicionais (mala direta, publicidade entre os membros, publicações, etc.).
• Protege contra interferências externas, como aumentos repentinos da taxa de juro da moeda nacional.
• Para pequenas empresas é uma forma de conseguir vantagens que, em geral, só as grandes têm.

Assim, o WIR nos dá uma ideia do potencial econômico de um sistema de moeda complementar quando ele atinge plena maturidade.

Moedas para o desenvolvimento regional
Uma das aplicações mais promissoras das moedas complementares – e também uma das mais recentes – se refere ao desenvolvimento local. E é, também, um sinal significativo de que algumas autoridades importantes começaram a levar a sério estas moedas. Aqui apresento brevemente dois estudos de caso: uma iniciativa da Comissão Européia e – talvez o exemplo mais extraordinário de todos – o do Ministério da Indústria e do Comércio Internacional do Japão.

Japão
Toshiharu Kato, diretor da Divisão dos Setores de Serviços do Ministério da Indústria e do Comércio Internacional – o poderoso órgão japonês de coordenação entre o Estado e as empresas – realizou pessoalmente durante três anos um estudo nos Estados Unidos sobre dois modelos de desenvolvimento com alta tecnologia: o “Modelo da Rota 128” e o “Modelo do Vale do Silício”. O primeiro tem esse nome em vista do desenvolvimento de empresas de alta tecnologia que se estabeleceram nas proximidades de Boston, em torno de um núcleo de corporações, (como a Raytheon e a Hewlett Packard), e instituições acadêmicas como o MIT, o instituto de tecnologia de Massachusetts. O segundo modelo se refere à proliferação de pequenas empresas de alta tecnologia na área de informática e empresas de capital de risco aglomeradas em torno da Universidade de Stanford, perto de San Francisco. Toshiharu Kato chegou à conclusão de que para o Japão, o futuro é uma onda do tipo “Vale do Silício”, com grande densidade de contatos entre centenas de empresas pequenas (sem grandes empresas no centro). O mais extraordinário é que – ele levou a lógica da sua estratégia de desenvolvimento regional às últimas consequências e introduziu um novo conceito de moeda regional, que ele chamou EcoMoney (veja o quadro a seguir).

Ele criou uma rede de EcoMoneys, uma entidade sem fins lucrativos de apoio à implantação de moedas locais e regionais. O experimento foi iniciado com quatro projetos piloto, logo se ampliou para 10 modelos distintos de implementação. Alguns só operam em uma pequena comunidade (como o de Yamada, no município de Toyama), outro em uma pequena cidade de 16.000 habitantes (Kuriyama, em Hokkaido), e até em cidades* inteiras (como Shizuoka, Chiba e Shiga). Em alguns projetos as moedas são do tipo LETS, em outros são como os Fureai Kippu (que já mencionei e retomarei no próximo capítulo) e há casos que combinam diversos serviços em um único sistema de cartão eletrônico. Com o EcoMoney o sistema proporciona uma lista impressionante com 27 tipos de serviços diferentes: de assistência social, educação, prevenção de catástrofes, proteção ambiental, valorização dos patrimônios culturais; e toda uma série de “atividades para o bem-estar da população”, por exemplo, de empresas que fornecem alimentos naturais para crianças alérgicas a certas substâncias sintéticas, produção de sabão com óleo de cozinha reciclado e cuidados de idosos e enfermos em domicílio.

O modelo de desenvolvimento do futuro do Japão e o EcoMoney
(Fragmentos de memorandos de Toshiharu Kato, Ministério da Economia, do Comércio e da Indústria)289
“Tomando como modelo o Vale do Silício, o Japão necessita de um intenso esforço de criação de diversidade nas suas diferentes regiões a fim de promover um novo sistema socioeconômico baseado na comunidade local… À medida que avança em direção à sociedade da informação, o país precisa de inovações em sua economia e em sua vida comunitária para liderar como sociedade de vanguarda. Para fazer parte da sociedade da informação da próxima geração, o Japão deve implementar um plano de ação concreto para sua transformação. Isso envolve a coordenação de empresas, Estado, entidades de ensino e a comunidade a fim de que cooperem como uma organização.

Cada região desenvolverá seu parque industrial, o que resultará em bases econômicas com especificidade própria, com ambientes empresariais e comunidades criativas. (…)

”E se buscamos na academia, o pensamento econômico moderno não tem soluções claras a oferecer. A visão de mundo do pensamento tradicional da economia deduz todo o movimento da economia da mera soma das suas partes. Com esta concepção é impossível analisar e compreender as mudanças associadas à passagem do sistema de um atrator a outro. (…)
”A verdadeira função da política econômica é deslocar o atrator que está no centro do movimento econômico, e com isso, colocar a economia no caminho da solução dos problemas. Para isso, devemos não só levar em consideração as decisões dos indivíduos e empresas que constituem a sociedade no nível macro, precisamos também ter em mente as interações entre eles. (…)
”O novo modelo de desenvolvimento japonês será baseado em regiões e sua característica será uma estrutura dual de economia regional e comunidade.”290

Uma das ferramentas principais introduzidas por Toshiharu Kato para gerar esta dinâmica de ativação simultânea das economias regionais e das comunidades foi o EcoMoney. O EcoMoney – como ele escreveu – é o dinheiro do século XXI, que poderá ser usado em troca de vários tipos de informação, inclusive em domínios que envolvem as relações humanas, funções consideradas femininas, colaborativas, em áreas como ambiente, assistência social, vida comunitária e cultura. (…) O EcoMoney é usado sempre no intercâmbio direto de bens e serviços, de modo que não acelera a emissão de dinheiro, não havendo, portanto, risco de inflação, nem de “bolha financeira”, nem da compressão da circulação de moeda depois do estouro de uma “bolha”. (…)

As pessoas podem usar o dinheiro comum paralelamente ao EcoMoney e usar eficientemente um ou outro para promover o estilo de vida mais adequado. (…) em última instância, o objetivo da implementação do EcoMoney é nutrir a confiança mútua entre as pessoas, para que possa ser cultivado o espírito comunitário.”291

Em outubro de 1999, além dos 10 projetos piloto em funcionamento havia outros 30 em fase de avaliação (as especificações dos novos sistemas estavam sendo definidas ao mesmo tempo em que os resultados dos dez projetos piloto estavam sendo avaliados). Esses projetos estão sendo combinados com a generalização dos cartões eletrônicos do Ministério de Saúde e do Bem-Estar Social. Nos smartcards de Yokosuka já convergem os dados do seguro de saúde, do EcoMoney e da moeda nacional usada nas compras do dia a dia.

Os planos para a criação de uma “Rede de Comunidades de Informação da Próxima Geração” ampliam esse conceito permitindo incluir dados sobre atendimentos de saúde e alergias; verificação de segurança para catástrofes; diversos tipos de licenças; identificação do indivíduo; compras via Internet ou outras; cartões telefônicos e descontos para interurbanos, gasolina, transporte público; e programas de milhagem.

Independentemente de essas funções todas ao final convergirem ou não para um único cartão eletrônico, é válido dizer que o Japão está determinado a ser um líder em termos de estratégias de desenvolvimento regional para a Era da Informação e está usando as ferramentas adequadas para isso: as moedas complementares.

Algumas grandes empresas já estão se envolvendo com o EcoMoney; por exemplo, a Nippon Telegraph & Telephone (NTT), está desenvolvendo sistemas de softwares no contexto do seu projeto “Rede de Informação de Assistência Social para o Cotidiano” (que interconecta o município, empresas e entidades sem fins lucrativos, informações sobre saúde e assistência, assim como capacitação profissional, voluntariado, etc.). A Oracle Japan também manifestou interesse em participar.

Financiamento de pequenas empresas
Para ilustrar um pouco mais a flexibilidade do conceito de moedas complementares, vejamos alguns exemplos de pequenas empresas que se financiaram usando esse tipo de moeda. Entram nessa categoria os experimentos de Berkshire, no estado de Massachusetts, e o chamado “Dining Dinero” emitido pelo Café De La Paz em Berkeley, Califórnia.
Nenhuma dessas moedas foi pensada como meio de pagamento geral mas como mecanismo alternativo de financiamento para propósitos específicos, com o apoio da comunidade.

Em Berkshire surgiram quatro experimentos principais: os Deli Dollars, as Berkshire Farm Preserve Notes (notas de preservação da agricultura de Berckshire), Monterey General Store Scrip (as notas do armazém geral de Monterey) e o Knitter Restaurant Scrip (as notas do restaurante Knitter).292 Os bancos convencionais não tinham interesse nesses empreendimentos. Todos eles seguiram um padrão semelhante. Tomemos como exemplo os Farm Preserve Notes, títulos aprovados oficialmente pelo Departamento de Agricultura do estado de Massachusetts e concedidos a pequenos agricultores para obtenção de capital de giro mediante a venda do título por dólares oficiais. O resgate dos títulos era na colheita seguinte, em mercadoria produzida, a um preço reduzido, para incentivar o comprador a pagar por algo a que só receberá vários meses depois. Este método foi muito bem recebido pela clientela e permitiu a agricultores captar capital de giro, e ao mesmo tempo assegurava antecipadamente a venda de parte da próxima colheita a clientes confiáveis.

O Café De La Paz, em Berkeley, Califórnia, precisava de capital para reformar uma sala comunitária ao lado do salão principal do restaurante. Depois de vários bancos terem recusado seus pedidos de crédito, o Café emitiu um título a ser resgatado com almoços e jantares futuros. A contabilidade funciona da seguinte forma: o cliente paga US$100 por 120 dessas notas, chamadas (em uma mistura de inglês e espanhol) “Dining Dinero”. Desse modo,ele obtém um desconto de 20% sobre o preço usual. Como o custo é cerca de US$40, a operação rende US$ 60 dólares para o Café que, além de obter a fidelidade dos clientes, levantou os recursos necessários para renovar a sala comunitária. Todos saem ganhando.

Planos de fidelidade local
O último exemplo de um tipo de moeda complementar projetado especialmente para criar emprego é o plano de fidelidade local. É fato amplamente reconhecido, hoje, que no futuro as pequenas empresas serão as principais criadoras de postos de trabalho, apesar de que o desenvolvimento dos hipermercados e dos grandes shopping centers vem avançando inabalável nas últimas décadas. Por exemplo, nos 10 anos entre 1986 e 1996, os hipermercados do Reino Unido aumentaram de 12,9% para 23% sua participação sobre o total do espaço ocupado por todo o varejo. Em algumas áreas, duas grandes cadeias de supermercados absorvem 70% das vendas de produtos de primeira necessidade.293 Resultado: o comércio local vem morrendo sistematicamente e os centros das cidades estão se tornando zonas-fantasma, com altos índices de desemprego e criminalidade. Isto não tem que ser necessariamente assim, como demonstrou um açougueiro inovador em uma pequena aldeia da Inglaterra (veja o quadro a seguir).

Operação de Salvamento da área Central: o caso de Leominster294
Graham Hurley, açougueiro da pequena aldeia de Leominster, resolveu reagir contra os hipermercados quando 17% das pequenas lojas do seu município haviam fechado as portas para sempre e o desemprego havia subido para 8,1%. Ele inventou o plano “Leal a Leominster”. As lojas pagavam £20 de taxa de admissão e recebiam os cartões e cartazes “Leal a Leominster”. Em um ano, ele afiliou 63 empresas e emitiu 8000 “cartões de fidelidade” (posteriormente esse total atingiu 15000). Para atrair também os turistas, foram emitidos cartões temporários “Visitante de Leominster”. Algumas empresas registraram aumento de 30% nas vendas. O plano teve tanto êxito que empresas de outros municípios vieram se instalar em Leominster para aproveitar o movimento. No ano seguinte, a ideia foi replicada pelos municípios de Midsummer Norton e Radstock, que conseguiram atingir um total de 8000 novos clientes e um aumento de 15% no faturamento. Nesse mesmo ano, Bath imitou o modelo lançando o “Bath Shopping Card”, e Newcastle, Wilmslow, New Milton, Havant e Harlesden fizeram o mesmo pouco depois.

Definitivamente, o potencial destes esquemas ainda não foi plenamente explorando. Por exemplo, não foram realizadas ações no sentido de reunir nomes e endereços dos membros nem de vendas cruzadas de serviços adicionais.

Até o momento, mal começamos a engatinhar, no que se refere às possibilidades dos planos de fidelidade local para a revitalização das áreas centrais das cidades, incentivando a criação de postos de trabalho em pequenas empresas, competindo em condições mais adequadas contra as corporações de varejo e com melhora da qualidade de vida em geral. As vendas via Internet, segundo se prevê, devem aumentar sua participação para 20% das vendas das empresas na Europa, em cinco anos.295 Isto torna cada vez mais importante que grupos de pequenas empresas aprendam a usar usos sofisticados dos sistemas de moedas complementares.

Conclusão: as moedas complementares como “protótipos preliminares”
Por tudo isto, as moedas complementares fazem sentido do ponto de vista social, econômico e empresarial. E é importante considerar, também, que muitos dos atuais sistemas estão no estágio em que estava a engenharia aeronáutica quando os irmãos Wright fizeram suas primeiras tentativas de voo. O feito extraordinário no caso dos irmãos Wright foi o fato de seu aparelho ter realmente levantado voo. E no entanto, foram as demonstrações práticas deles e dos seus “loucos” camaradas, o que definitivamente tornou possível os voos corriqueiros de hoje, no mundo todo, de passageiros e dos produtos mais perecíveis. E é significativo, também, que o New York Times tenha mencionado pela primeira vez a façanha dos irmãos Wright quatro anos depois do ocorrido, e somente porque na demonstração reportada compareceu o então presidente dos Estados Unidos. E o entendimento teórico do motivo de tais aparelhos conseguirem voar ainda precisou esperar uns quantos anos.

Não desmerece em nada a maioria das atuais moedas complementares, elas serem consideradas “protótipos preliminares”. Praticamente todos os sistemas em funcionamento hoje continuam sendo obviamente marginais, em termos, por exemplo, do volume total da atividade econômica. Assim como aconteceu com os irmãos Wright, as experiências estão sendo em geral ignoradas, e quando são notadas, algumas vezes são ridicularizadas pelas sumidades dos meios de comunicação de massa convencionais ou da academia. A maioria ainda está esperando um “testemunho presidencial” para ser levada a sério. Mas o que importa, aqui, é que elas já provaram que conseguem levantar voo e que produzem os efeitos desejados na escala para a qual elas foram projetadas.

Concretamente, as seguintes descobertas ficaram comprovadas na prática:

  1. As moedas complementares viabilizam intercâmbios e transações que de outro modo não seriam realizados. Isto significa na prática que mais atividade econômica está sendo gerada – ou seja: mais trabalho e mais riqueza. Duas diferentes pesquisas de campo demonstraram que muitos cidadãos passam a prestar seus serviços em consequência de haver moeda complementar disponível na comunidade (no primeiro caso um terço dos entrevistados, e no outro mais da metade).296
  2. Esse trabalho e essa riqueza adicionais são criados onde eles são mais necessários, sem necessidade de aumento de impostos, burocracia governamental, e sem elevar o risco de inflação na economia convencional (esta questão será desenvolvida detalhadamente no capítulo 8). Note que se trata de uma riqueza adicional, e não do resultado da redistribuição da riqueza existente. Portanto, as moedas complementares não são uma nova forma de assistência social. O assistencialismo é uma transferência compulsiva de recursos de ricos para pobres via impostos; já a utilização de uma moeda complementar é voluntária para todo o mundo, ela cria riqueza nova e, uma vez em funcionamento, ela se torna um mecanismo totalmente auto-financiado para enfrentar muitos problemas sociais sem nova tributação nem subsídios permanentes.
  3. As moedas complementares locais fazem sentido não só do ponto de vista social, mas também empresarial. Elas permitem às pequenas empresas locais competir melhor contra as grandes cadeias de distribuição. E as pequenas aceitarão mais facilmente uma moeda local porque podem gastá-la na comunidade, os agricultores, por exemplo, demandam mão-de-obra local para a colheita. Já os fornecedores das grandes cadeias de distribuição em geral estão distantes das comunidades dos clientes, e por isso é menos provável que se interessem por um sistema de moeda local. Neste sentido, as moedas complementares podem contribuir, também, para que as economias locais sejam mais auto-suficientes, é uma medida modesta, mas saudável, para contrabalançar a implacável globalização econômica. Elas criam um ambiente econômico menos desfavorável para os pequenos comerciantes, melhorando a competição e, portanto, beneficiando tanto os consumidores como a sociedade em geral.
  4. O caso do WIR e o de Curitiba* mostram que os sistemas de moedas complementares podem alcançar volumes significativos. No primeiro caso, 80.000 membros e vários bilhões de dólares; no segundo, uma cidade com milhões de habitantes, nas condições prevalecentes no terceiro mundo.

Apesar de tudo isso, eu não afirmo que as moedas complementares sejam uma solução suficiente para os complexos problemas do desemprego na Era da Informação, nem que formas mais tradicionais de incentivo à criação de postos de trabalho não devam ser implementadas. Eu defendo, simplesmente que as moedas complementares são, potencialmente, uma ferramenta importante, que até o momento não estão sendo devidamente notadas, e que elas merecem mais atenção que a recebida até agora. Dada a escala previsível que o problema do desemprego terá no período de transição das próximas décadas, que sentido faz ignorar instrumentos que demonstraram que podem ser eficazes?

CAPÍTULO 7

Moedas comunitárias

. O dinheiro simbolizava o ato de dar e receber amor entre indivíduos, ato que transmitia a eles a sensação de terem raízes emocionais nas suas comunidades. (…) Ele na sua origem era um símbolo da alma humana.
– William S. Desmonde297
. A economia do futuro se baseia em relações mais que em posse.
– John Perry Barlow
. O que os idealistas sonharam, o que os hippies falavam, agora as pessoas simplesmente fazem.
– Anônimo

Neste capítulo veremos outra questão monetária relacionada com nossa Máquina Compactadora do Tempo: a da Onda do Envelhecimento. Isto é, como a sociedade fará para bancar a longevidade dos seus idosos?
Esta pergunta é parte de um tema mais amplo: A crise do sentimento de comunidade. Os problemas relacionados às necessidades da criança e do idoso, educação, criminalidade e qualidade de vida em geral são, todos eles, sintomas do mesmo fenômeno: a crise do sentimento de comunidade.

A crise no sentimento de comunidade se tornou um padrão universal em todo o mundo moderno. Embora em geral não percebamos a relação dessa tendência com o dinheiro, neste capítulo demonstrarei que tanto a causa como a solução do problema estão nos sistemas monetários.

O colapso das comunidades

O banco do bosque Muir
Era o final daquela primavera muito úmida de 1998, após o “El Niño”, um senhor grisalho tomava sol no único banco do bosque de Muir, onde os raios de sol da tarde atravessavam as copas das sequóias. Enquanto meditava sobre quantas delas já estavam lá quando o Império Romano caiu, um jovem sentou ao seu lado. Seu rosto era familiar, mas ele não lembrava de onde conhecia o rapaz, seu terno social já passado de moda, e perfeitamente limpo o fazia parecer um tanto deslocado.
–Lindo dia –disse o velho para puxar conversa.
–Está um dia ótimo para mim!… acabo de conseguir meu primeiro emprego, terminei meus estudos! –respondeu animado.
–Parabéns!.
–Auxiliar de estatística na Travelers Insurance – explicou, satisfeito.
–É uma boa empresa, é importante. Foi também meu primeiro emprego há uns 30 anos.
–E o melhor é que agora vou poder casar com a minha namorada, comprar um carro…
–Não me diga que ela se chama Sherry! – interrompeu.
–Chama! Por que?
Então o velho entendeu por que havia reconhecido o garoto. E continuou falando com ar distraído: –Você vai ter dois filhos. Vai viver bem, considerando as circunstâncias. Não se preocupe com a Terceira Guerra Mundial; a questão da Coréia não vai dar em nada. O comunismo não vai dominar o mundo. Quase todo mundo vai poder comprar um carro.
O jovem olhou desconcertado, mas o monólogo não parou:
–O mais estranho é que os problemas não serão esses, serão todas as coisas que hoje você considera totalmente inquestionáveis. Coisas óbvias, como as crianças terem um pai e uma mãe. Nascerem em uma família. E depois de nascer, terem vontade de viver. O “sonho americano” de que os filhos progridam mais que os pais. Que as escolas sirvam para aprender. Que é seguro ir a pé até o mercado no centro da cidade.
O jovem quis interferir, mas só conseguiu articular um hesitante “Mas…”.
E … deixar portas destrancadas? Esquece.. Você vai acabar colocando no seu carro um aviso de “não tenho aparelho de som”, para afastar os ladrões.
Quando o rapaz, visivelmente perturbado, se levantou para ir embora, o idoso perguntou:
–Sabe quem eu sou?
–Sim, mas eu não acredito em você – disse já se afastando do seu ser mais velho.
Encolhendo os ombros ficou vendo desaparecer sua juventude na curva do caminho, sem olhar para trás.

Em 1997, mais de 90% das famílias dos Estados Unidos tinham ao menos um carro. Em 30 anos, o PIB dos Estados Unidos triplicou em termos reais, e o PIB per capita mais que dobrou.
Atualmente, pela primeira vez, cerca de 51% das crianças dos Estados Unidos vivem em famílias com um só dos pais.298
Entre 1960 e 1991 o número de nascimentos de filhos de mães não casadas aumentou 400%. Nas dez cidades mais importantes dos Estados Unidos, mais da metade dos nascimentos são de país não casados oficialmente.299
Nos últimos 30 anos, a taxa de suicídios entre adolescentes triplicou, sendo atualmente a segunda causa de morte entre eles. Para cada suicídio consumado, há de 50 a cem tentativas mal-sucedidas.300
Entre 1995 e 1996, a quantidade de novas receitas de Prozac para jovens de 13 a 18 anos cresceu de 148.000 a 217.000. Para as crianças de 6 a 12 anos, o salto é mais aterrador ainda: de 51.000 a 203.000 receitas.
Em 1970, uma pessoa de 30 anos ganhava 15% mais que seu pai na mesma idade; hoje é possível que ganhe 25% menos.301 Entre 1960 e 1993, o Teste de Aptidão Escolar [Scholastic Aptitude Test, SAT] teve uma queda de 73 pontos nos seus resultados. Cerca da metade dos cidadãos dos Estados Unidos entre 21 e 25 anos carecem de habilidades básicas para leitura e a escrita, são incapazes de calcular o saldo em um talão de cheques ou de entender um mapa. E 20% dos estudantes secundaristas sentem necessidade de carregar consigo regularmente um arma de fogo, uma faca, uma navalha, um taco ou outro tipo de arma.302 Em 1995, 1,36 milhão de crianças de entre 6 e 12 anos levaram alguma arma à escola. Em 1998, detectores de metais e novas medidas de segurança fizeram este total baixar para um milhão.303
embora a população dos Estados Unidos tenha aumentado 41%, o número de crimes violentos subiu 550% desde 1960. Assim, 8 em cada 10 cidadãos dos Estados Unidos podem ser vítimas de um crime desse tipo uma vez na vida pelo menos.304 E 99% dos cidadãos dos Estados Unidos serão vítima de furto no mínimo uma vez na vida, 87% serão roubados três vezes ou mais.305

Em todo o mundo, tanto nos países ricos como nos pobres, a estrutura da vida familiar está passando por mudanças fundamentais aceleradas. Segundo um estudo recente, “a ideia de que a família é uma unidade estável e coesa (…) é um mito. Na realidade, tendências como a da maternidade fora do casamento, aumento da proporção dos divórcios, famílias com menos membros e a feminização da pobreza não se circunscrevem aos Estados Unidos, são mundiais”.306 No que se refere à porcentagem de crianças filhas de mães solteiras nos países desenvolvidos, os Estados Unidos estão no meio do intervalo, a Islândia, a Suécia, a Dinamarca, a França e a Grã Bretanha estavam em situação menos favorável em 1992 tanto em percentual como em aumento ao longo do tempo. Só o Japão ficou praticamente inalterado nos últimos 30 anos.307

Em todo o mundo se ouve a mesma queixa: “As coisas mudaram. Antes tínhamos mais espírito comunitário”. Em cada cultura, a questão pode se referir a aspectos diferentes, mas a tendência é uma só. Suas consequências também são similares. Entre elas: vandalismo contra a propriedade pública e índices de criminalidade, em particular entre os jovens.

Quanto mais “desenvolvido” o país, mais ele aprofundou essa tendência (veja o quadro a seguir). Por exemplo, no século XIX, no norte da Europa e nos Estados Unidos a norma era a família ampliada (avós, tios, primos, etc.). Na década de 1950, os domicílios típicos eram os da família nuclear. Atualmente, nos Estados Unidos a identidade social passou da família nuclear para a família com pais solteiros, com 51% das crianças dos Estados Unidos vivendo com um, apenas, dos progenitores.308 O mais enigmático é que essa mesma alteração parece estar ocorrendo no mundo todo, praticamente, embora por razões diferentes.

Definição de “família” segundo o um idoso aborígene da Austrália 309
“Vocês brancos não entendem o que queremos dizer com ‘família’. Quando um bebê nasce, ele passa às mãos das suas ‘mães’, isto é, a mãe que o gerou, e todas as suas irmãs e tias – elas são as responsáveis por alimentá-lo e amá-lo – e também às mãos dos seus ‘pais’, o pai biológico e todos os seus irmãos e tios – que se encarregam de zelar por ele e ensiná-lo. Todos os demais membros da tribo são irmãos e irmãs. Achamos realmente primitivo para um bebê ter só uma mãe e um pai. Na sociedade ocidental, muitas crianças nem sequer têm seus dois pais. Imagine a experiência de amor, apoio e cuidado que eles teriam com todo um grupo de mães e pais.”
Será que somos realmente “primitivos” por acreditar que um pai e uma mãe são suficientes para uma criança? Talvez a “angústia existencial” faça parte da cultura ocidental, apenas, e não necessariamente da condição humana.

Na Itália, por exemplo, até algumas décadas atrás, a famiglia ainda era a família ampliada, com 60 a 80 pessoas, de várias gerações, como avós, pais, tios, primos, sobrinhos, sogros, cunhados, etc. Atualmente, o padrão é a família nuclear, em particular no norte do país, que é a região mais “modernizada”. Outras culturas do sul da Europa e da América Latina seguem a mesma tendência.

Desde os índios hopi do Arizona, os kogi da Colômbia até os chipibo na região amazônica do Peru, ouvimos comentários de que a juventude está perdendo seus laços com a tribo e se identifica com subgrupos mais pequenos, inclusive só com seus parentes consanguíneos, “como os brancos”. Frequentemente tudo isso é desconsiderado, por ser ou o preço a se pagar pelo progresso ou um sinal da decadência da sociedade (conforme a idade e a tendência política do observador) Mas será que a crise do sentimento de comunidade é uma doença contagiosa? É concebível que elas tenham, todas, uma origem comum mais profunda? Qual?

Para compreender como se perde o espírito comunitário, precisamos descobrir como ele é criado. De todas as disciplinas que estudam a comunidade, a antropologia é a que oferece as considerações mais úteis. Os antropólogos descobriram que o espírito comunitário não surge necessariamente da proximidade física (se fosse assim, um edifício com 200 apartamentos em uma metrópole se tornaria uma comunidade). Da mesma forma, as comunidades não se formam automaticamente pelo mero compartilhamento de um idioma, de uma religião, de uma cultura, nem mesmo do sangue. Sem dúvida, esses podem ser elementos secundários e dar sustentação ao processo, mas o fator chave é outro. Os antropólogos descobriram que a comunidade se baseia na reciprocidade do intercâmbio de dádivas.310

A construção do espírito comunitário e a “economia da dádiva”
Se a comunidade fosse um tecido, o que seria o fio? Ou, para usar outra metáfora, se fosse uma molécula, o que seria o átomo que a constitui, ou o menor ato que a cria? Quando precisamos de uma caixa de pregos, vamos à loja de ferragens e compramos. Não esperamos, nem nós, nem o vendedor, mais reciprocidade que essa no intercâmbio – e isso constitui uma das principais razões da eficácia das transações monetárias, o fato de cada uma delas ser independe dos demais – mas elas não criam comunidade.

A economia da dádiva como evolução das habilidades para a sobrevivência social
Segundo o antropólogo Stanley Ambrose, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, as doações foram a primeira forma de seguridade social. “Os laços sociais estabelecidos pela troca de presentes ajudavam as pessoas a enfrentar tempos difíceis, algo particularmente importante em um ambiente difícil e imprevisível ”No Quênia, os caçadores-coletores da tribo San ainda estabelecem esse tipo de rede com a troca de colares de casca de ovo de avestruz, e cada presente contribui para assegurar favores futuros. A idade dessa tradição foi determinada quando o Dr.Ambrose descobriu em uma cova chamada Enkapune Ya Muto, na fronteira do Quênia, restos de uma oficina de colares, com mais de seiscentos pedaços de cascas e colares acabados, com 40.000 anos de idade. “Isto deu aos africanos uma vantagem em relação aos homens de Neanderthal, que podem não ter usado esse mecanismo simbólico de solidariedade social.”311

Agora, suponhamos que ao sair para comprar outra caixa de pregos, no caminho, vemos o vizinho, na porta da casa dele. Quando lhe contamos o que vamos a fazer, ele responde: “No outro dia comprei 6 caixas. Tome, lhe dou uma, assim você não precisa ir até a loja”. Além disto, se nega a receber o que lhe oferecemos em pagamento. O que acontece? Do ponto de vista puramente material, em ambos casos terminamos obtendo a caixa de pregos. Mas um antropólogo diria que no segundo caso ocorreu algo mais. Quando voltamos a encontrar esse vizinho, sem dúvida o cumprimentaremos, e se ele um dia bater à nossa porta porque se esqueceu de comprar açúcar, muito provavelmente lhe daremos do nosso. A doação da caixa de pregos é uma transação que constrói comunidade. A compra não.

Uma transação comercial é um sistema fechado: os pregos contra o dinheiro. Já a doação é um sistema aberto, deixa um saldo em aberto que possivelmente se complete de alguma forma no futuro. O processo da dádiva cria algo que o intercâmbio monetário não cria. Acrescenta um novo fio no tecido da comunidade. Há uma quantidade avassaladora de evidências documentadas comprovando a relação entre doações e comunidade em todas as partes do mundo, em todas as épocas.

Alguns exemplos
É engraçado eu ter precisado de antropólogos para descobrir a relação entre dádivas e a formação de comunidades. A etimologia da palavra comunidade poderia informar essa relação de forma mais explicita até, sem necessidade de tanto trabalho de campo por parte dos antropólogos. A palavra comunidade deriva de duas raízes latinas: cum, que significa juntos, mutuamente, e munus, que significa proporcionar, munir; o verbo correspondente é munere (dar). Portanto, comunidade = “dar mutuamente”. Não poderia ser mais óbvio.

Nos três grupos de exemplos abaixo essa regra implícita –comunidades se constroem ao longo do tempo com trocas de doações – está operando desde tempos imemoriais:

  1. Comunidades monásticas (cristãs e budistas).
  2. Comunidades tradicionais (África, Ilhas do Pacífico, América do Norte).
  3. Sociedade moderna (Ocidente, Japão e a comunidade científica).
    Você pode ler todos ou só os que preferir. Todos corroboram a mesma ideia.
  4. Comunidades monásticas
    Bento de Núrsia (Benedetto da Norcia) introduziu alguns conceitos celtas no cristianismo nascente. No século V ele fundou a ordem dos beneditinos, a primeira organização monástica cristã do Ocidente. Suas regras especificam que a communitas é criada pela forma de organização das necessidades econômicas desses mosteiros. Os monges devem ser auto-suficientes como grupo, mas totalmente interdependentes um do outro. Cada um tem uma função – de abade a porteiro, cozinheiro, escriba, ferreiro, queijeiro – mas o trabalho é realizado como doação para a comunidade. Os mosteiros conheciam perfeitamente os intercâmbios monetários, usados para conectá-los com o resto do mundo. Por isso é deliberado e significativo que a regra beneditina proíba explicitamente qualquer intercâmbio monetário entre os membros da comunidade.

As tradições monásticas não cristãs foram mais longe, sem a vantagem de ter conhecido a etimologia latina da palavra comunidade.
Por exemplo: “Pela regra monástica budista, os monges e as monjas não podem aceitar dinheiro nem efetuar trocas ou transações comerciais com os leigos. Vivem inteiramente na economia da dádiva. Os leigos que sustentam economicamente o monastério oferecem doações ou atendem necessidades materiais e, os monges por sua vez oferecem a eles seus ensinamentos. Idealmente, esse é um intercâmbio que vem do coração, totalmente voluntário. Nesta economia, o retorno não depende do valor material do objeto dado, mas da pureza de coração de quem doa ou de quem recebe”312

  1. Comunidades tradicionais
    No início da década de 1950, Lorna Marshall e seu marido viveram em uma comunidade de bosquímanos na África. Como presente de despedida, deram a cada mulher do grupo um bracelete de conchas de cauris ou cipreias. Como na região não existiam estes moluscos (o casal os havia trazido de Nova York) Lorna partiu imaginando que efeito isso teria sobre as pesquisas arqueológicas do futuro. Um ano depois, quando os Marshall voltaram lá, se surpreenderam ao descobrir que nenhuma das conchas de cauris tinha ficado lá. “Elas apareceram, não em forma de colares inteiros, mas de uma em uma ou em pares em adornos de outras pessoas nas regiões fronteiriças”.313 As conchas presenteadas foram derramadas como água por toda a comunidade mais ampla.

Embora frequentemente tenhamos a tendência de pensar que as sociedades onde vigora a economia da dádiva são primitivas e as subestimemos desdenhosamente, alguns dos rituais de doação e recebimento são extraordinariamente complexos e sofisticados. Nas sociedades tradicionais, eles estão entre as atividades sociais mais importantes. Sua complexidade é em si sinal da importância atribuída à doação.

Por exemplo, na Polinésia, para uma única cerimônia de casamento os tikopianos realizam 24 tipos diferentes de rituais de troca de obséquios.314 O processo dura vários dias. No arquipélago Massim, adornos denominados kula, que não têm qualquer outra utilidade, são transferidos constantemente de uma ilha à outra como dádivas cerimoniais. Os soulava são colares usados só por mulheres, eles circulam entre as ilhas em sentido anti-horário, enquanto os braceletes mwali usados por homens circulam no sentido contrário.315


Índios do noroeste dos Estados Unidos organizam grandes encontros entre todas as tribos vizinhas para celebrar o potlatch (literalmente, “nutrir, dar”). O status de cada grupo depende da qualidade e quantidade de objetos oferecidos. Nós consideramos uma pessoa famosa por acumular muito dinheiro ou por ter o título de “Sua Alteza Real”; já os títulos honoríficos dos kwakiutl caracterizam a generosidade demonstrada por uma pessoa com seus atos (um titulo por exemplo, é “aquele cujas propriedades foram consumidas em banquetes” ou “aquele cujas propriedades fluem”).316

  1. Sociedades modernas e comunidades científicas
    O que restou das nossas comunidades familiares ocidentais ainda está presente em festas como Ação de Graças, Natal, aniversários, e – como qualquer varejista pode atestar – nas trocas de presentes. Os casamentos atuais, isto é, os rituais em que duas famílias se unem formalmente para criar uma comunidade única maior, ainda estão marcados pela troca de presentes.

O Japão é o país desenvolvido que está contrariando a tendência de crises do espírito comunitário. Isso se atribui em geral a uma peculiaridade misteriosa da psique ou da estrutura social do Japão. Porém, também nesse caso se aplica nossa “chave mestra”, a troca de presentes. A tradição japonesa do Butsu Butsu Kokan se refere à reciprocidade das doações, que exclui explicitamente as transações monetárias. O próprio nome já diz, literalmente “troca-objeto-por-objeto”. Esses obséquios constituem um ritual essencial em praticamente todos os aspectos da cultura japonesa, eles são trocados permanentemente, não só dentro da família ampliada, mas entre colegas, pessoas queridas, pessoas superiores na escala social, na idade e no trabalho. Muitas vezes são uma maneira de compartilhar o talento para a pintura ou a caligrafia, dotes culturais ou outros dons sociais. Não se trata do valor monetário do presente, o que conta é a intenção e a qualidade do contato pessoal.


Até a mais “moderna” de todas as comunidades – a comunidade científica internacional – se nutre segundo essa mesma regra implícita. Na verdade, os cientistas que contribuem com suas ideias recebem em troca reconhecimento e prestígio. Já quem só age por dinheiro se limita a escrever livros de texto elementares com fins comerciais não obtém reconhecimento algum e pode ser até depreciado. “Um dos motivos pelos quais a publicação de livros de texto ou manuais tende a ser uma forma desprestigiada de comunicação científica [é que] o autor se apropria do legado da comunidade em benefício próprio.”317 Resumindo, para que as ideias de uma pessoa sejam reconhecidas pela comunidade científica, a condição expressa é que o cientista as ofereça à comunidade, como contribuição, isto é, sem cobrar por elas.


Almut Kowalski, uma cientista alemã contemporânea, desenvolveu toda uma teoria alternativa baseada em doações para explicar como funciona a realidade física. Ela afirma que desde os átomos até as galáxias, as plantas, os órgãos do nosso corpo, em tudo há processos que ela descreve como um mecanismo central de intercâmbios, um “sintonizar e dar generosamente”. Por exemplo, os rins “se sintonizam” com o que o resto do organismo necessita e “dão generosamente” o que podem em benefício do todo. A teoria do hólon, de Ken Wilber, aponta para uma ideia similar.318

Como as comunidades colapsam?
Não deveria nos surpreender que para desfazer o tecido de uma comunidade se faça o contrário daquilo que contribuiu para criá-la. Por isso, proponho como regra geral que as comunidades entram em crise sempre que os intercâmbios monetários não recíprocos tomam o lugar da troca de dádivas.

Revisitemos alguns exemplos específicos de construção do espírito comunitário, começando com a última, a da comunidade científica. Todos esses exemplos demonstram que uma comunidade se desfaz quando intercâmbios envolvendo moedas nacionais “normais” tomam o lugar das trocas generosas.

Segundo o Dr. Jonathan Kind, professor de Genética do MIT: “No passado, parte da força da ciência biomédica norte-americana estava na liberdade do intercâmbio de materiais, cepas de organismos e informação. (…) Mas agora [que as universidades tentam obter dinheiro com as possibilidades comerciais da recombinação do DNA], se ganhos privados e o patenteamento de microorganismos são sancionados e institucionalizados, ninguém envia suas cepas porque ninguém quer que elas fiquem no setor público. Isso já está acontecendo. As pessoas já não compartilham suas cepas de bactérias e seus resultados com tanta liberdade como antes”.319 Uma área do tecido da comunidade científica começou a esgarçar.

O primeiro contato significativo entre brancos e índios do noroeste dos Estados Unidos foi na época da Revolução Americana, com o capitão Cook. Logo vieram os comerciantes de peles, e na década de 1830 a Hudson Bay Company inaugurou seus primeiros postos de fronteira. Só o que interessava a toda essa gente eram as peles; fora isso, não tinham qualquer relação com os índios. Décadas antes da chegada dos missionários para tentar mudar as tradições “pagãs” dos nativos, algumas comunidades indígenas começaram a se desmembrar por causa do contato com os intercâmbios comerciais. As tribos que substituíram a troca de presentes dentro da comunidade por intercâmbios monetários foram as que, uma geração mais tarde, haviam desaparecido.

Este processo se observou em todas as partes do planeta cada vez que as sociedades tradicionais passaram a interagir comercialmente com o mundo ocidental. Assim que começavam os intercâmbios monetários não recíprocos se deteriorava o espírito comunitário. Na década de 1970, presenciei isso na região amazônica do Peru, quando a moeda nacional começou a circular em algumas tribos.

Em vista de tudo o que foi dito até aqui, deveríamos considerar a comunidade não como um estado, mas como um processo. Se ela não se nutrir de intercâmbios recíprocos regulares, tende a decair ou morrer. Por isso eu defino comunidade como um grupo de pessoas que honram as doações mútuas e podem confiar que suas doações serão retribuídos algum dia, de alguma maneira.

Quando analisamos a estranha epidemia mundial de deterioração do sentimento comunitário, descobrimos uma espécie de mecanismo comum subjacente na crise das tribos amazônicas, a transformação das famílias ampliadas italianas em nucleares ou a atual crise da família nuclear nos Estados Unidos. Embora existam outros fatores, certamente, há um que é chave e está apresente em todos estes fenômenos: o começo dos intercâmbios monetários recíprocos. Algumas teorias econômicas consideram a transformação da totalidade das transações em operações monetárias um sinal essencial de “desenvolvimento”, porque a partir daí elas passam a ser captadas pelo sistema de estatísticas do país. Não é de se estranhar que seja nos países mais “desenvolvidos” onde a decadência das comunidades também seja maior.

Hazel Henderson explica esta questão assim: “Se você quer que sua mãe prepare seu café da manhã, vá ao McDonalds onde ela trabalha”. Em uma sociedade onde você precisa pagar ao seu filho para que apare a grama, a família nuclear começa a deteriorar. E quando você decide colocar o vovô dos seus filhos em um asilo, não só a família ampliada desaparece, como você ainda vai ter que pagar a creche

Em uma pesquisa realizada recentemente sobre as prioridades da população dos Estados Unidos, incríveis 86% da população colocaram o desejo de “reconstruir os laços da vizinhança e da comunidade”: no topo da lista.320 Esta é uma prioridade sobre a qual todos parecem estar de acordo. Mas, como reconstruir o espírito comunitário no mundo atual?

Moedas que fomentam o sentimento comunitário
Acabamos de ver a regra aparentemente geral de que sempre que o dinheiro entra no jogo, as comunidades se deterioram. Porém, isto se aplica exclusivamente quando se trata das moedas que geram escassez e competição, como as nossas moedas oficiais nacionais. Na verdade, o uso de outros tipos de moedas tem o efeito exatamente oposto, elas fomentam o sentimento comunitário.

Nada disto é teoria. Estamos falando sobre experimentos na vida real em uma grande variedade de países, em alguns casos durante décadas. Neste campo, a teoria está muito atrás da prática (veja o quadro a seguir). Na verdade, existem moedas nas quais está incorporada a reciprocidade, moedas mais compatíveis com uma economia da dádiva que as nossas moedas nacionais. A prática demonstrou que estas moedas constroem o espírito comunitário ao invés de destruí-lo. Que tipo de dinheiro é esse?

Moedas complementares e teoria econômica
A teoria econômica afirma que não há razão para as pessoas aceitarem os inconvenientes de usar simultaneamente a moeda complementar e a nacional. Entretanto, nos próximos exemplos e nos citados nos capítulos anteriores, ninguém forçou ninguém. O fato é que pessoas de todo o mundo criam e continuam usando suas próprias moedas paralelamente às moedas nacionais normais. Os ingleses dizem: “um fato é mais respeitável que o senhor prefeito de Londres”.
Alguns teóricos convencionais tentaram desmerecer o fenômeno das moedas não tradicionais alegando que são uma forma de evasão de impostos. Mas esse não é um fenômeno que possa ser explicado de forma tão simplista. A prova é que o tipo de moeda complementar com a maior prevalência é o LETS, no qual todas as transações se armazenam em um computador. Para uma autoridade tributária, seria muito simples apurar e tributar as operações. Na verdade, muito mais fácil que no sistema da moeda nacional normal. Os próprios participantes justificam os inconvenientes de usar duas moedas simultaneamente com o renascimento da comunidade graças ao uso de moedas complementares bem planejadas.

Alguns exemplos da vida real
No restante deste capítulo, veremos 6 estudos de caso. Os primeiros três são aplicações ocorridas nos Estados Unidos, os outros foram no Brasil, no Japão e no México, respectivamente. Cada um descreve um enfoque muito diferente e ensina algo distinto, mas se você preferir, ler só os que lhe pareçam mais interessantes, isso já pode bastar para compreender a ideia central:

  1. Os Time Dollars (dólares de tempo), inventados por um advogado importante de Washington e aplicados hoje em centenas de comunidades dos Estados Unidos, estão sendo implementados em 30 estados diferentes para resolver de maneira pragmática os problemas locais (pág. 315).
  2. As Horas Íthaca (horas Ithaca), são cédulas de papel lançadas por um ativista comunitário na pequena cidade universitária de Ithaca, no estado de Nova York. Trata-se de uma comunidade de renda relativamente baixa, com cerca de 27.000 habitantes. Atualmente, 39 comunidades dos Estados Unidos de diversos tipos usam sistemas similares de moeda em papel (pág. 319).
  3. O PEN Exchange (intercâmbio PEN), que ilustra como uma moeda complementar em papel contribuiu para fortalecer o espírito comunitário em Takoma Park, Maryland, um bairro residencial na periferia da cidade de Washington (pág. 323).
  4. Em Curitiba, uma capital com 2,3 milhões de habitantes, um prefeito se valeu de moedas complementares durante 25 anos, conseguindo para uma cidade do Terceiro Mundo padrões de vida do Primeiro em menos de uma geração. Em 1992, Curitiba recebeu das Nações Unidas o título de “cidade mais ecológica do planeta”. Seu prefeito se tornou um herói político reconhecido em todo o país (pág. 325).
  5. No Japão, a aplicação notavelmente bem sucedida, em esfera nacional, da Moeda de Assistência Médica é uma forma inovadora de melhorar a qualidade dos serviços de saúde sem aumentar gastos públicos (pág. 330).
  6. Tlaloc, uma moeda local popular do México, outra versão de moeda complementar de baixa tecnologia, não implica que os usuários tenham individualmente acesso à informática nem sequer a um telefone (pág. 332).

Encerraremos este capítulo com dois exemplos de sistemas de pagamento integrados de alta tecnologia, que permitem transferências tanto de moeda nacional como complementar em uma única transação.

1.Time Dollars
Edgar S. Cahn, professor da Faculdade de Direito do Distrito de Columbia, obteve resultados surpreendentes com sua inovação. Ele desenvolveu o conceito dos Time Dollars em 1986, inicialmente visando asilos na Flórida, um distrito escolar em Chicago e um projeto social da cidade de Washington. Atualmente, ele se espalhou para centenas de outros locais. Um incentivo foi o fato de a autoridade máxima tributária dos Estados Unidos, [o Internal Revenue Service], , ter determinado que não fossem cobrados impostos sobre as transações efetuadas com essa moeda. Nem no conto eu me atrevi a ir tão longe!
Os Time Dollars são de uma simplicidade elegante, eles funcionam da seguinte maneira: Joe tem deficiência visual e não pode mais guiar, mas precisa ir comprar pantufas no outro lado da cidade. Julia aceita guiar uma hora para ir buscar as pantufas, e obtém assim um crédito de uma hora, enquanto Joe contrai com ela uma dívida de uma hora. Isso fica registrado em uma lousa perto do escritório do superintendente da policia. Julia pode gastar o crédito em biscoitos assados por outro vizinho, enquanto e Joe pode pagar sua dívida trabalhando uma hora na horta da comunidade ou prestando algum outro serviço que sua incapacidade visual não o impeça de realizar. Se Joe pagasse sua dívida trabalhando no jardim de Julia, seria uma simples troca. Mas o fato de poder trabalhar uma hora no jardim de outro vizinho e de Julia poder gastar seu crédito comprando biscoitos da Jane faz com que os intercâmbios em Time Dollars fluam muito mais que as trocas diretas. Não é imprescindível que Joe e Julia tenham “necessidades e recursos compatíveis” para que uma transação aconteça.

Ilustração de Gary Larson: “Einstein descobre que o tempo é, na realidade, dinheiro”.

Por isso os Time Dollars são dinheiro realmente, segundo a definição apresentada antes: são um acordo dentro de uma comunidade para usar algo (neste caso, horas de serviço) como meio de pagamento. Em outras palavras, Joe e Julia criaram dinheiro. Literalmente, assim que concordam em realizar a transação – como no conto – criaram dinheiro. É assim de simples.
Os custos para implantar este sistema são praticamente inexistentes. Em comunidades pequenas, basta ter uma lousa ou um pedaço de papel; para projetos em maior escala, é possível baixar da Internet gratuitamente o programa Timekeeper (www.timedollar.org), ele lista todos os participantes com sinais de mais e de menos ao lado, e pode ser expandido para qualquer quantidade de participantes e horas a serem registradas. Sempre que alguém obtém um crédito, gera automaticamente um débito para outra pessoa; assim a soma de todos os Time Dollars do sistema é igual a zero, sempre, embora Joe receba suas pantufas, Julia coma biscoitos e a horta da comunidade fique cuidada, sem que seja necessário gastar um dólar sequer.

Os bens e serviços intercambiados são só a ponta do iceberg. Foi realizada uma pesquisa comparativa entre asilos e institutos geriátricos que utilizavam este tipo de dólares e os que não.321 Os que usam Time Dollars descobriram que o sistema ajuda a unir ao grupo. Neles, as pessoas se cumprimentam; quando há um aniversario, se arma uma grande festa; as pessoas se cuidam mutuamente; uma vez por semana, organizam jantares e cada convidado contribui trazendo um prato ou bebida; inauguram jardins comunitários. Resumindo: criou-se uma comunidade.

Este simples mecanismo muda o tipo de relação entre as pessoas. as pessoas sentem que sua participação é recompensada, elas se sentem valorizadas, e surgiu um efeito colateral totalmente inesperado: a comunidade se torna mais saudável! Em Brooklyn, Nova York, uma companhia de seguros de saúde chamada Elderplan decidiu aceitar 25% dos prêmios dos planos para a terceira idade em Time Dollars. A companhia criou inclusive seu próprio “Care Bank” (Banco de Serviços de Atendimento), no qual os 125 participantes compartilham uma média de 800 horas de serviços mensais. Começou como um serviço de consertos domésticos através do qual problemas potenciais eram reparados antes que provocassem acidentes. O lema do Banco de Serviços de Atendimento é “Um porta-toalha quebrado hoje é um quadril fraturado amanhã”.322 Para a companhia de seguros, istoé marketing inteligente. Mas a Elderplan tomou estas iniciativas inovadoras, também, porque percebeu que os idosos que faziam parte do sistema dos Time Dollars tinham menos problemas de saúde. O resultado é que para a seguradora os custos com procedimentos de saúde custam menos. Durante o ano 2000, o sistema Elderplan se expandiu, incluindo várias localidades no estado de Nova York. O mesmo banco de horas está lançando um programa novo dirigido especialmente a diabéticos, incluindo um elemento essencial de auto-ajuda. Os créditos de tempo agora podem ser trocados também por entradas de cinema e teatro, produtos medicinais, bilhetes de transporte, vales para supermercados e restaurantes em todo o Brooklyn.

Em um mundo no qual as pessoas idosas constituem um percentual cada vez maior da sociedade, a ponto de os gastos de saúde poderem levar à falência países inteiros, alguém está notando? As pesquisa também demonstram com dados concretos o valor desse modelo.
Os sistemas de Time Dollars provaram que são eficazes não apenas para impulsionar os sistemas de saúde, mas também para melhorar outras questões sociais, como a delinquência juvenil e a ilegalidade nos bairros deteriorados. Um estudo realizado pelo Centro do Envelhecimento da Universidade de Maryland revelou que aproximadamente um terço das pessoas que hoje utilizam o sistema dos Time Dollars nunca haviam sido voluntários antes, e as taxas de “esgotamento” ou “evasão” dos voluntários, que antes atingia 40% anualmente, caiu para 3%.323

Em julho de 1997, mais de duzentos municípios e programas de serviço social dos Estados Unidos haviam lançado sistemas Time Dollars. Um dos estados pioneiros foi o Missouri, onde o sistema passou a ser elemento fundamental da política social. Hoje existem nesse estado 37 sistemas deste tipo. A reforma do sistema de assistência social, que se tornou lei em 1996, descentralizará muitos programas transferindo-os aos estados. É previsível que muitos estados sigam o exemplo de Missouri nos próximos anos e descubram as virtudes dos Time Dollars ou das suas variações. Em julho de 1997, o sistema já havia se estendido a 30 estados, entre eles Massachusetts, onde um dos primeiros sistemas se iniciou com um subsídio de US$ 200.000 da Fundação Robert Woods. Maine foi o primeiro estado a criar oficialmente um cargo de funcionário público de período integral e dedicação exclusiva de “coordenador de Time Dollars”, encarregado de implantar dezenas de redes e conectá-las entre si.324

Sem dúvida, o conceito de Time Dollars está pronto para ser difundido fora do circuito tradicional dos Estados Unidos. Por exemplo, Pat MacMaster, iniciou três projetos em associações de imigrantes cambojanos nos Estados Unidos: nas cidades de Long Beach, na Califórnia (50.000 cambojanos residentes), e em cidades do estado de Massachusetts, Lowell, Chelsea (25% da população é cambojana) e Riviera. Eles estão usando o programa TimeKeeper, baixado gratuitamente da Internet para manter o registro permanente das horas de serviços prestados pelos participantes. Os próprios cambojanos chamam o sistema de dinheiro “que faz comunidade”, o que deixa claro qual eles acham que é a qualidade mais interessante do sistema. E eles têm planos, também, de introduzir esse tipo de sistema no Camboja, “porque lpode ser mais útil ainda”.

  1. Horas Íthaca
    Ithaca é uma pequena cidade universitária com uma população de cerca de 27.000 habitantes no norte do estado de Nova York. Não é um município rico, ela, por exemplo, tem a maior porcentagem de “pobres empregados” no estado: gente que trabalha período integral, mas cuja renda é tão baixa que ainda assim se qualificam para receber da assistência social os food stamps [vales-alimento e produtos de primeira necessidade].

Paul Glover, um ativista comunitário de Ithaca, sentia que a proximidade da cidade de Nova York fazia que a energia da comunidade fosse sempre drenada pela megalópole, e decidiu fazer algo a este respeito. Em novembro de 1991, lançou uma moeda complementar para estimular as pessoas a investirem seu tempo e seu dinheiro dentro da comunidade. Embora o sistema exija um pouco mais de estrutura que os Time Dollars, ainda assim é muito simples.

Exemplo de nota das Horas Ithaca.

O coração do sistema é um boletim bimestral em formato de tablóide que divulga os produtos e serviços de pessoas e empresas que aceitam as Horas Ithaca. Cada Hora equivale a 10 dólares, e representa aproximadamente uma hora de trabalho remunerada segundo o salário mínimo generoso vigente nessa região. Há notas de 2 Horas, 1, ½ e ¼. A maioria das notas é emitida pela primeira vez quando um anunciantes aparece no periódico. Cada anunciante recebe quatro Horas em notas por publicar seu aviso. Por decisão dos participantes, o raio geográfico de funcionamento do sistema foi limitado aproximadamente 30 quilômetros do centro do município.

O boletim bimestral traz em geral cerca de 1200 anúncios, com mais de 200 empresas. Entre elas, estão um supermercado local, os três cinemas do lugar, o mercado de produtos agrícolas, serviços de saúde, advogados, consultores e o melhor restaurante da cidade. O banco local também aceita contas em moeda complementar, e conseguiu, com isso, atrair uma base de clientes muito fiel.

Uma das chaves aqui é o fato de os anunciantes pagarem sua quota usando uma combinação das duas moedas. Por exemplo, um pintor anuncia que o preço do seu serviço é US$10 por hora, 60-40 (ou seja 60% em Horas Ithaca e 40% em US$, para pagar a tinta, pincéis, a gasolina, impostos, etc.). Outro pintor poderia pedir US$11 por hora, 90-10 (o que significa que ele aceita até 90% em Horas Ithaca). Então, se um comprador tem mais Horas Ithaca que dólares, pode optar pelo segundo pintor, mesmo que cobre nominalmente um pouco mais.

Para dar outro exemplo, os cinemas de Ithaca aceitam 100% do valor da entrada em Horas Ithaca nas seções vespertinas, porque o custo de projetar o filme é fixo, independe da quantidade de pessoas na sala (havendo assentos vazios, o custo marginal gerado por um espectador mais é, na verdade, zero).

Mais de mil pessoas usam regularmente a moeda complementar, e muitas pagar aluguel e outros serviços em Horas Ithaca. E 9,5% das Horas Ithaca emitidas são destinadas a organizações sem fins lucrativos locais que realizam diversas atividades para a comunidade em geral. Até o momento, 19 organizações várias deste tipo foram beneficiadas com estas doações.
Alguns relatos reais de participantes:

Ed é oftalmologista e atende em troca de Horas Ithaca. Ele gasta a maior parte delas na compra de produtos alimentícios. “Ninguém deveria ficar sem consulta médica por estar sem dólares”, diz. “As Horas e as trocas são uma solução para a necessidade de atendimento. O nome Horas nos diz que o tempo de todos é importante, e eu gosto disso.”

Richie ganha Horas com sua empresa de locação de vídeos, e ele as gasta com livros, transportes, serviços de vigia, de caseiro, de cortador de grama, sapateiro, etc. “As Horas se tornaram a ferramenta para apoiar determinados agricultores no mercado. Quando vou comprar, busco o cartaz amarelo que anuncia ‘Aceitamos Horas Ithaca’. Assim o dinheiro fica na comunidade, e isso significa prosperidade econômica para todos.”

Neal é um dos fornecedores de Richie, ele vende alimentos orgânicos e gasta suas Horas em filmes, pão e contrata ajuda na época da colheita. “As comunidades todas precisam plantar seus alimentos o máximo que puderem. É absurdo que o transporte de um alimento gaste mais calorias que as que ele contém. Nossa cédula diz: ‘Em Ithaca confiamos’. Isso é o principal, não é?”

Outros comentários de participantes ilustram os diversos motivos para aderir ao sistema (veja o quadro). Paul Glover resume as vantagens: “Com nosso dinheiro foram geradas milhares de transações e muitas amizades, e nosso comércio local aumentou em centenas de milhares o que nós chamamos nosso “produto interno do bairro”. As grandes decisões sobre o sistema como um todo (impressões, valores das cédulas, modos de emissão, subvenções ) são tomadas em jantares informais duas vezes por mês para os quais cada um traz um prato ou bebida, na reunião do nosso “Ithaca Reserve Board” (comitê de política monetária de Ithaca”)

O sistema apareceu na TV em rede nacional, primeiro no Japão e mais recentemente nos Estados Unidos. Os participantes estão felizes com os resultados, e as empresas se vêm beneficiadas pelo fato de que mais pessoas ficam e gastam seu dinheiro na comunidade tanto em dólares como em Horas. Mesmo quem não gosta do estilo do ativista Paul Glover, nem de política, já começou a aceitar o sistema, que já está se expandindo por todo o país. Paul Glover vende por 25 dólares ou 2,5 Horas e meia um kit de implementação do sistema. Em 1997, já havia 39 sistemas desse tipo no mundo.

No fim das contas: é um modelo bem sucedido, com custos de implantação muito baixos. E funciona. Mas ele tem uma desvantagem comum a todas as moedas fiduciárias: alguém precisa decidir centralmente quanta moeda emitir. “Ithaca Reserve Board” decide de forma democrática, mas qualquer presidente de banco central sabe que gerir a quantidade de moeda fiduciária em circulação é uma questão capciosa. O principal risco é que quando a quantidade de moeda complementar emitida é maior do que a quantidade que as pessoas querem usar, haverá inflação e desvalorização. Isso não vai acontecer enquanto os gestores da Hora Ithaca seguirem o exemplo de Paul Glover e seus colegas e se mantiverem prudentes nas decisões sobre oferta de moeda, mas esse risco faz com que eu não recomende um uso generalizado desse tipo de sistema.

  1. O PEN Exchange
    Olaf Egeberg vive na cidade de Takoma Park, Maryland, encostada à cidade de Washington, onde se encontram o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal. Quando se aposentou, resolveu retribuir de alguma forma à sua comunidade. Ele pensou o seguinte: “Nestes tempos, perdemos de vista o recurso mais valioso: perdemos de vista um ao outro. Podemos criar uma sociedade em que todos estão bem próximos aqui mesmo, onde estivermos. Creio que atualmente os bairros são a sociedade mais importante que devemos fortalecer”.

Ao contrário de Ithaca, Takoma Park tinha um desemprego muito baixo (cerca de 1%), era, sem dúvida, uma comunidade de classe média Olaf decidiu definir seu bairro como sendo todas as famílias – aproximadamente 450 no total – que vivem a cinco minutos de distância a pé ou menos do centro da cidade. Daí o nome PEN “Philadelphia-Eastern Neighborhood” (Filadélfia, bairro do leste].
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Ele escreveu uma carta para 50 pessoas da sua comunidade descrevendo como o PEN contribuiria para “criar uma sociedade capaz de dar mais apoio aos membros, com mais contato humano, mais comunicação, mais conhecimento mútuo que antes”. Não obteve uma resposta sequer.

Intrigado com essa falta de reação, decidiu ir pessoalmente a cada uma das casas dos vizinhos. O mistério foi revelado imediatamente: ninguém acreditava que tivesse alguma coisa para oferecer. Pensaram que se tratava das transações comerciais comuns. Por exemplo, um contador cujo hobby era colher cogumelos nos fins de semana não supunha que outras pessoas poderiam se interessar por aprender sobre esse assunto. Uma aposentada que havia vivido 10 anos na Europa nunca havia contemplado a possibilidade de trocar conhecimentos sobre essa área por outra coisa que ela precisasse. Existe uma grande diferença entre as páginas amarelas e o catálogo telefônico do PEN, que lista uma infinidade de bens e serviços que as pessoas poderiam evitar de pagar em dólares. Além disto, em muitos casos são atividades que as pessoas fazem por prazer. Trabalhos divertidos, e não monótonos.

Por isso, tem um algo a mais em Takoma Park. Aconteceu que a moeda complementar e a lista telefônica do PEN são só o combustível que faz funcionar a imaginação, um pretexto para fazer os primeiros contatos. A maioria dos intercâmbios usa a moeda complementar só para uma parte da transação – às vezes nem a usam – e incluem itens que em princípio nem se pensava que podiam entrar na lista. Aos poucos, os vizinhos adquiriram o hábito de dar sua ajuda de presente, sem dinheiro de tipo algum em troca.

Como o propósito de Olaf era reconectar as pessoas, é um sinal positivo que as coisas tenham evoluído dessa maneira. O Washington Post325 publicou uma matéria sobre esse assunto, citando Mary Rodríguez, de 89 anos, que em 40 anos vividos em Takoma Park nunca havia visto nada parecido: “em tantos bairros você nunca chega a conhecer a pessoa da casa ao lado. Aqui os vizinhos fazem coisas uns para os outros. Dá a sensação de estarmos em uma cidadezinha pequena”. Depois de três anos, apenas, o tecido da comunidade foi fortalecido e supera em muito o que uma análise econômica poderia revelar sobre intercâmbio de bens e serviços. Os vizinhos recebem informações atualizadas sobre os assuntos locais via e-mail e os moradores mais experientes em informática ensinam gratuitamente sobre Internet a qualquer vizinho que queira aprender.

Nikolai Vishnesky, de 40 anos, começou o sistema de envio de e-mails no ano passado: “Agora as pessoas podem usar a tecnologia empregada nas interações globais e fazer dela um recurso local”.

Os vizinhos reduziram a criminalidade patrulhando as ruas à noite, eles publicam um jornal do bairro, se revezam para cuidar das crianças em grupos de recreação, ajudam os idosos que não podem sair de casa, plantam alimentos em um sitio comunitário em Upper Marlboro e organizam boas-vindas para os novos moradores. Martha Monroe, de 38 anos, afirma: “somos diferentes, porque na maioria dos bairros residenciais nos subúrbios de Washington as pessoas voltam do trabalho na cidade, assistem TV e vão dormir”.

  1. Curitiba: a cidade brasileira que saiu do Terceiro Mundo326
    Em 1971, o arquiteto Jaime Lerner foi eleito prefeito de Curitiba, capital do Paraná. A população urbana, como é comum na América Latina cresceu desenfreadamente, passando de 120.000 habitantes em 1942 para mais de um milhão quando Lerner assumiu. E em 1997 já havia alcançado 2,3 milhões. A maior parte dessas pessoas, como é, também, comum na América Latina, vivia em favelas, em casas precárias, construídas com papelão e chapas de metal. Uma das primeiras dores de cabeça do novo prefeito foi o lixo. Os caminhões de coleta sequer conseguiam passar nos becos das favelas. Por isso, o lixo ficava amontoado, atraía roedores e todo tipo de doença se proliferava. Eram montanhas de problemas.

Como não tinham dinheiro para implementar soluções “normais”, do tipo demolir as moradias e construir ruas, a equipe de Lerner inventou outro método. Instalaram grandes contêineres metálicos com os seguintes dizeres em letras bem grandes: vidro, papel, plástico, etc. identificando cada tipo de resíduo com uma cor, para os que não sabiam ler. Quem trouxesse uma sacola de lixo seletivo recebia um vale que dava direito a uma passagem de ônibus urbano. Além disto, criou o Cambio Verde – um programa de coleta em escolas que oferecia cadernos aos alunos mais pobres. Em pouco tempo, dezenas de milhares de crianças começaram a limpar suas comunidades, e logo aprenderam a distinguir inclusive entre os diferentes tipos de plástico. Os pais usavam os vales-transporte para ir ao trabalho. Em minha opinião, o que Lerner fez foi inventar “dinheiro Curitiba”. Os vales para o ônibus são uma forma de moeda complementar. Seu programa “Lixo que não é lixo” bem poderia ter chamado “Lixo que é seu dinheiro”.327

Atualmente, 70% dos domicílios de Curitiba participam desse processo. Só os 62 bairros mais pobres trocaram 11.000 toneladas de resíduos por cerca de um milhão de vales-transporte e 1200 toneladas de alimentos. Nos últimos três anos, mais de cem escolas trocaram 200 toneladas de lixo por 1,9 milhão de cadernos. E nesse programa, a reciclagem de papel sozinha significa o equivalente a 1200 árvores poupadas. Por dia.
É preciso deixar em claro que em princípio a equipe de Lerner não tinha a ideia de criar uma moeda complementar. O que aconteceu foi que eles fizeram uma análise de sistemas integrados envolvendo todos os principais problemas que eles tinham naquele momento e para solucioná-los terminaram criando espontaneamente uma moeda. E também que a moeda da reciclagem não é a única moeda local que esse enfoque produziu em Curitiba. Por exemplo, foi criado um outro sistema monetário específico para financiar a restauração de edifícios históricos, criar espaços verdes e a habitação popular sem ônus financeiro para o município. Seu nome em português é “Solo Criado” e funciona da seguinte forma.

Como a maioria das cidades, Curitiba tem um zoneamento minucioso especificando a quantidade de andares que podem ser construídos em cada área. Mas em Curitiba, há dois patamares: o nível normal permitido e o nível máximo. Por exemplo, um hotel com uma planta de 10 mil m2 está sendo construído em uma área onde a quantidade de andares permitida é 10 e a máxima, é 15. Para poder construir 15 andares, o hotel tem que comprar 50 mil m2 (5 x 10 mil m2) no mercado de Solo Criado. Nesse mercado, o município só cumpre a função de intermediário para o ajuste entre oferta e demanda.

Mas onde é gerada a oferta dos terrenos do Solo Criado? Uma das fontes são os prédios históricos. Por exemplo, o Clube Italiano possui um lindo monumento histórico chamado Casa Garibaldi, uma propriedade de 25 mil m2, que precisava de uma obra completa de restauração mas o Clube não dispunha dos recursos para isto. Porém, como nessa área podem ser construídos até dois andares, o Clube vendeu 50 mil m2 (2 andares x 25 mil m2) a quem apresentasse a melhor oferta – por exemplo, o dono do hotel mencionado há pouco –. O dinheiro arrecadado fica nas mãos da administração do Clube, mas tem que ser usado para a restauração do imóvel. Assim, para ter direito a construir seus andares adicionais, o hotel acaba pagando a restauração do edifício histórico sem que a cidade precise disponibilizar verba alguma.

Outras fontes de “criação de terrenos” são áreas verdes com árvores protegidas e a construção de moradias populares em outras partes da cidade. Vários dos 16 grandes parques naturais abertos ao público nos últimos tempos foram totalmente financiados desta maneira. Os proprietários de grandes terrenos obtiveram autorização para construir em um lado da rua com a condição de destinar o outro lado do terreno a um parque público. O novo empreendimento passa a ter um valor adicional por estar a poucos passos do parque, a população de Curitiba passa a ter um novo parque para seus passeios de fim de semana e o município não tem que contrair dívidas nem aumentar impostos para conseguir tudo isso. Todos saem ganhando.

O mais interessante da nossa perspectiva é que o mercado dos “terrenos criados” é um outro tipo de moeda complementar especializada, que permite a Curitiba possuir propriedades públicas para as quais as outras cidades precisam conseguir um financiamento tradicional.

A esta altura, isto já deveria soar familiar. Sempre que se implementa um novo tipo de sistema monetário bem projetado, começam a acontecer coisas bem maiores que o dinheiro e as atividades econômicas que ele gera. O que no início era um problema de acúmulo de lixo e de saúde pública, tornou-se uma solução para dificuldades de transporte e desemprego de maneira muito inovadora. Com o sistema Solo Criado, foram geradas vantagens públicas importantes para a cidade a custo zero.

O segredo não é alguma característica peculiar dessa cidade ou desse povo, mas o enfoque dos sistemas integrados que gerou moedas complementares para solucionar os problemas existentes. O resultado líquido é uma cidade onde muitas coisas funcionam ao contrário do saber convencional (veja o quadro a seguir).

Curitiba: outra estratégia de desenvolvimento
O transporte público é mais estimulado que o uso de automóveis individuais, e isto se consegue tornando o transporte público melhor e mais conveniente que o transporte particular. Por exemplo, o transporte público é mais rápido devido a um procedimento original para embarque rápido de passageiros: a tarifa é paga antes de entrar nas paradas tubulares elevadas projetadas especialmente para este fim. Quando o ônibus chega, seções inteiras tanto do veículo como das paradas são abertas de modo que grande quantidade de gente pode entrar e sair em poucos segundos. Não se perde tempo com cobrança ou recolhimento dos bilhetes. E os corredores expressos especiais para o transporte público fizeram do ônibus a forma mais veloz e adequada para se deslocar dentro da cidade. Por uma tarifa única de R$0,65 (cerca de 50 centavos de dólar) as pessoas podem se locomover qualquer que seja a distância e isso inclui conexão com outras modalidades do sistema público de transporte e com linhas metropolitanas. A prova definitiva foi o sistema público ter se tornado o preferido, um em cada quatro usuários do sistema público tem automóvel, mas prefere não usá-lo dentro da cidade. A eficácia do sistema fez possível criar diversas áreas de pedestres no centro da cidade, incluindo o boulevard principal. Atualmente, estas ruas são usadas para apresentações de música e de teatro popular com artistas locais, e festivais de arte para crianças. Além disso, foi criada a Rua 24 Horas com lojas, restaurantes e serviços mantendo a vitalidade da região central, em vez do cenário fantasmagórico comum na maior parte dos centros das cidades modernas.
O planejamento urbano convencional estipula que as cidades com mais de um milhão de habitantes devem ter um sistema de trens subterrâneos para evitar o congestionamento do trânsito. De forma similar, as cidades que geram mais de mil toneladas de resíduos sólidos por dia precisam instalar onerosas plantas de separação mecânica dos resíduos. Curitiba não tem uma coisa nem a outra. E o investimento necessário para seu sistema de transporte público custa só 5% do necessário para um sistema de metrô de porte equivalente. Esta economia permitiu que a cidade mantivesse uma das frotas de ônibus urbanos mais novas do planeta.
Há uma Universidade Livre do Meio Ambiente que oferece cursos práticos, gratuitos e de curta duração para donas de casa, síndicos de edifícios, comerciantes e taxistas. Todos eles aprendem sobre as consequências ambientais das suas atividades cotidianas. O edifício da Universidade é um monumento arquitetônico sensacional, construído na sua maior parte com postes telefônicos reciclados, fica próximo a um lago, em uma área hoje idílica que um dia foi uma pedreira abandonada.
Curitiba é a única cidade do Brasil que tem um nível de poluição hoje significativamente menor que na década de 1950; além disto, comparada a outras cidades brasileiras similares, sua taxa de criminalidade é menor e a escolaridade é mais alta. É a única cidade do país que se recusou a receber verbas federais porque tinha soluções que implicavam menos trâmites burocráticos.
Um lixão situado dentro da cidade foi transformado em um jardim botânico que hoje se tornou tanto área de lazer como centro de pesquisa. Ademais, Curitiba tem hoje 16 parques naturais em torno da cidade, cada um com um tema diferente. Por isto, a cidade atingiu uma média de 52 m2 de verde por habitante – o padrão ideal é 48 m2, segundo a ONU – nível raramente alcançado tanto no primeiro como no terceiro mundo. Mais ainda: todos estes parques são facilmente acessados com transporte público, de modo que a população em geral pode desfrutar deles e de fato desfruta.
Em 1992, as Nações Unidas reconheceram Curitiba como a cidade ecológica modelo do mundo. Jaime Lerner se tornou conhecido internacionalmente por suas iniciativas. Outras cidades começaram a notar e cerca de 20 municípios começaram a implementar o sistema de transporte público integrado. Cidade do Cabo imitou várias das idéias iniciadas em Curitiba. Urbanistas de Buenos Aires, Santiago do Chile, Montreal, Paris, Praga, México e Lagos visitaram a cidade e ficaram impressionados com o que viram.

Possivelmente, o sinal mais claro, no nível político, de que tudo isto funciona é que cada vez que Jaime Lerner concorreu a um cargo eletivo, obteve uma vitória arrasadora. Atualmente ele é governador do estado do Paraná. E foi iniciado um movimento para lançá-lo candidato a presidente do Brasil nas próximas eleições.

O fenômeno de Curitiba demonstra que podem surgir trajetórias políticas relacionadas a moedas complementares. O sucesso de Jaime Lerner não pode ser atribuído simplesmente ao carisma pessoal ou à sua origem étnica. A prova é que vimos o início não de uma, mas de ao menos três carreiras políticas baseadas na força destas ideias. As dos prefeitos que sucederam Jaime Lerner – Rafael Greca e Cassio Taniguchi, cada um com uma personalidade e uma origem étnica muito diferente – começaram fazendo parte da sua equipe de planejamento. O necessário nesse caminho é capacidade de imaginar e executar.

Finalizando: o impacto dos sistemas complementares pode ser medido em termos econômicos. A renda do curitibano médio é 3,3 salários mínimos, mas em termos reais, isso equivale a pelo menos 30% mais (ou seja, cerca de cinco vezes o salário mínimo). Esta diferença de 30% corresponde a receitas geradas diretamente em formas monetárias não tradicionais, como o da remuneração em produtos alimentícios por serviços de coleta seletiva. Outra evidência é o fato de Curitiba ter, de longe, o sistema de assistência social mais desenvolvido do Brasil, e um dos programas culturais e educacionais mais dinâmicos, mesmo sem uma carga tributária superior à do restante do país. Inclusive do ponto de vista das estatísticas macroeconômicas convencionais, há claros indícios de que está acontecendo algo fora do comum em Curitiba. Entre 1975 e 1995, o produto interno cresceu cerca de 75% mais que o do estado do Paraná, e 48% mais que o do Brasil, e estas diferenças nas taxas de crescimento foram mantidas nos últimos anos. Entre 1993 e 1995, o produto interno de Curitiba cresceu 41% mais que o do Paraná e 70% mais que o do país.328

O sucesso de Curitiba atraiu uma migração interna tão grande que a velocidade do aumento da população da capital superou a do estado e a do Brasil. Entre 1980 e 1995, o produto interno per capita de Curitiba cresceu 45% mais rápido que o do Paraná e que o do Brasil.329

O caso concreto de Curitiba demonstrou depois de 25 anos de experiência, que um enfoque sistêmico total, com utilização de moeda nacional tradicional e paralelamente moedas complementares bem planejadas resulta em benefícios para todos, inclusive para quem opera exclusivamente com a economia tradicional das moedas nacionais. Esta abordagem permitiu que uma cidade do terceiro mundo atingisse em apenas uma geração padrões de vida de primeiro mundo.

  1. A moeda japonesa para serviços de saúde
    A população japonesa é a segunda colocada no ranking mundial de velocidade de envelhecimento. Já tem 800.000 aposentados que necessitam de assistência periódica e mais um milhão de pessoas com necessidades especiais. Além disto, o Ministério da Saúde prevê um aumento significativo desses números num futuro próximo.
    A fim de enfrentar este problema, que vem aumentando rapidamente, os japoneses implementaram um novo tipo de moeda para serviços de saúde.330

Nesse sistema, as horas que um voluntário dedica ajudando idosos ou portadores de necessidades especiais em suas rotinas diárias são creditadas em uma Conta de Tempo. Essa conta funciona exatamente como uma conta de poupança, a única diferença é que a unidade empregada é a hora de serviço e não o iene. Os Créditos de Tempo são usados para complementar seguros de saúde normais. Serviços diferentes têm valores diferentes, por exemplo, servir uma refeição entre 9 da amanhã e 5 da tarde vale menos em créditos que a mesma atividade em outros horários; tarefas domésticas e compras valem menos que os serviços referentes a cuidados corporais. Esta é a moeda mencionada no quadro “Como vive o Sr.Yamada desde que se aposentou”, no capítulo 1. Estes créditos de serviços de saúde garantem atendimentos para os voluntários ou para alguém à sua escolha, da família ou não, a qualquer momento quando precisar deste tipo de serviço. Alguns serviços particulares permitem receber créditos participando do sistema em Tóquio, por exemplo e disponibilizar serviços para seus pais em qualquer parte do país. Muitas pessoas simplesmente se oferecem como voluntários e esperam não necessitar nunca dos créditos. Outras não apenas trabalham voluntariamente, como doam seus créditos de tempo a pessoas que eles acreditam precisarem de serviços de saúde, para estas pessoas o crédito é em dobro, o método funciona como uma assistência dupla: para cada hora de serviço, recebem créditos que dão direito a duas horas de assistência.

O mais significativo é o fato de os próprios idosos preferirem esses serviços aos convencionais, porque os cuidados têm uma qualidade superior à dos proporcionados por funcionários remunerados com ienes. Um dos nomes deste tipo de moeda, Fureai Kippu, (literalmente “Vales para Relacionamentos de Cuidados”), revela o propósito do sistema. Além disto, ele gera um espaço emocional mais confortável para as pessoas de idade que do contrário ficam constrangidas ao ter que pedir serviços gratuitos.

Os japoneses informam, também, que a participação do trabalho voluntário aumentou significativamente, inclusive de pessoas que não se interessaram por abrir Contas de Tempo próprias. Possivelmente, porque com este sistema, os voluntários se sentem mais reconhecidos. Este precedente deveria por um ponto final na questão se pagar trabalho voluntário com moeda complementar inibiria os que não recebem pagamento algum.

Ao final de 1998, há mais de trezentos sistemas de créditos de tempo para cuidados de saúde na esfera municipal no Japão, a maior parte deles administrados por entidades privadas como o Instituto Sawayaka de Bem Estar Social o Wonderful Aging Club, Active Club [Clube do Envelhecimento Maravilhoso, Clube Ativo] e o Sistema Japonês de Assistência (organização sem fins lucrativos subsidiada pelo Estado).
Resumindo, a moeda para serviços de saúde no Japão demonstrou ser mais eficaz em termos de custos e mais compassiva que o sistema dominante no Ocidente. Agora que nos Estados Unidos e na Europa começou uma tendência idêntica de envelhecimento da população, por que não aprender da experiência japonesa?

  1. Tlaloc
    Tlaloc é o antigo deus da chuva dos Astecas, importante no panteão pré-colombiano. E é também o nome de uma rua no bairro popular de Colonia Tlaxpana, na atual capital do México. Esta rua é sede do centro de desenvolvimento cooperativo Promoción del Desarrollo Popular A.C., que, impulsionado pelo arquiteto Luis Lopezllera, iniciou em 1987 seu sistema monetário próprio, chamado Tlaloc. O que é particularmente interessante neste exemplo é a combinação de operações de alta e baixa tecnologia, já que não depende de computadores, nem sequer de telefone, para funcionar eficazmente, mas tem, apesar disso, um website próprio (www.laneta.apc.org), tem uma publicação periódica própria (La Otra Bolsa de Valores) e até uma gama completa de serviços comunitários.

Trata-se de um sistema de crédito mútuo no qual a moeda é emitida na forma de cheques. A um certo número de usuários confiáveis são proporcionados talões de cheques, e estes emitem cheques sempre em números redondos (por exemplo, 1, 2, 5, 10, 50). No verso destes cheques há vários espaços para endossos, de modo que a primeira pessoa que recebe um cheque destes pode endossá-lo para o próximo, e assim sucessivamente. Os cheques circulam como qualquer moeda e, periodicamente, alguém pode apresentar o cheque no centro comunitário quando o último usuário tiver obtido o crédito, para que a soma correspondente seja debitada da conta do emissor. Resumindo, este sistema possui as vantagens do crédito mútuo e do papel moeda. Basta um único computador para registrar as contas correntes, e a moeda pode circular sem ser necessário sequer um telefone para fechar as operações.

Outras comunidades começaram a imitar este modelo. Por exemplo, no bairro popular de Toctiuco, em Quito, Equador, circulam cheques chamados “compromissos”.

As moedas complementares na Era da Informação
Neste momento, os sistemas de pagamento com moeda complementar tendem a funcionar paralelamente à moeda nacional existente. Embora muitas transações envolvam pagamentos nos dois tipos de moeda, simultaneamente, a execução em geral implica duas intervenções diferentes. Creio que no futuro o mais conveniente será realizar operações com os dois tipos de moeda usando um só meio. Isto automaticamente proporcionará o mesmo nível de segurança para as duas formas de pagamento, e o custo será mais ou menos o mesmo de se efetuar pagamentos automáticos em uma só moeda.

Um exemplo de moeda integrada: Commonweal, Inc., de Minneapolis
Joel Hodroff, fundador da Commonweal, Inc., em Minneapolis, estado de Minnesota, criou o sistema que eu suspeito ser o primeiro modelo realmente integrado que combina formalmente os sistemas de moeda nacional e complementar.331 Além disto, ele conseguiu um grau admirável de apoio da comunidade empresarial (incluindo presidentes de diversos bancos e do maior shopping center do país), os dirigentes sindicais, a prefeitura, um conselho de delegados da região, ativistas comunitários, especialistas em tecnologia e outros formadores de opinião.

O sistema Herocard da comunidade Commonweal foi projetado visando conscientemente que todos os participantes obtenham benefícios. As empresas conquistam novos clientes e melhoram seus lucros. As organizações sem fins lucrativos atraem mais voluntários, fazem render mais seus dólares, e cada vez que um dos seus membros realiza uma compra com Herocard elas recebem uma comissão, é o que se chama “marketing relacionado a uma causa”. Originalmente, o sistema operava como um simples cartão de débito, mas da forma como foi concebido ele é ideal para usar smart cards com os dois tipos de moeda quando os estabelecimentos comerciais têm leitores de smartcards). Talvez o mais importante seja que, para solucionar os problemas locais, as comunidades mobilizam recursos humanos ou outros, que, do contrário, ficariam sub-utilizados.

Todas as peças deste quebra-cabeça já estão disponíveis, incluindo as tecnologias, e cada uma já foi testada e aprovada pelo mercado separadamente. A novidade é combiná-las todas em um conceito integrado.

O segredo é um sistema de moeda dual, no qual a moeda nacional e a complementar operam simultaneamente. Funciona da seguinte forma:

O conceito
No caso de Minneapolis, são utilizadas duas moedas: os dólares e os C$D. C$D significa Community Service Dollars [dólares de serviço comunitário]. Sua unidade de conta é 1 C$D, que equivale a um dólar comum, e uma hora de trabalho corresponde a 10 C$D.

No sistema Herocard há, além disto, duas organizações complementares: uma é uma empresa com fins lucrativos e a outra uma rede comunitária de desenvolvimento econômico sem fins lucrativos. A primeira opera primordialmente com empresários e gera seu caixa como qualquer outra empresa de compensação de cartões de crédito; a segunda disponibiliza C$Ds para comunidade da rede sem fins lucrativos.

O processo de criação dos C$Ds começa nas empresas. Praticamente todas as empresas mantêm permanentemente uma capacidade não utilizada para poder fazer frente aos horários de pico, e à alta temporada. É portanto uma capacidade que permanece ociosa a maior parte do tempo, como ocorre com os cinemas nos horários da tarde, com os restaurantes (até os mais populares) quando é cedo, e com os hotéis turísticos durante a semana. De modo similar, a maioria dos processos de manufatura podem produzir uma quantidade extra a um custo marginal bem inferior ao custo normal. Por exemplo, os fabricantes de moveis ou as confecções podem produzir itens adicionais em uma dada série a um custo marginal baixo, e com frequência eles fazem isto. Hoje, na maioria dos casos, esta capacidade simplesmente fica ociosa. Os empresários mais empreendedores buscam obter ganhos extra direcionando a produção adicional a operações de escambo comercial ou a vendas a preços diferenciados. Esta já é uma prática muito comum em muitos tipos de áreas de negócios, desde diárias de hotéis até jantares “2 por 1” em restaurantes, indo de produtos têxteis até artigos esportivos.

Em Minneapolis, as empresas têm uma opção a mais: participar do programa Herocard da comunidade Commonweal e aceitar C$Ds. Por exemplo, um restaurante pode otimizar sua ocupação aceitando até 50% de C$Ds para refeições antes das sete da noite (em vez de adotar o sistema habitual “2 por 1”) e pode aceitar até 40% apenas em C$Ds depois desse horário. Um cinema pode receber até 90% em C$Ds para as matinês porque havendo poltronas ociosas, o custo marginal em dólares gerado por um cliente adicional na projeção de um filme é, de fato, zero.

Os C$Ds são emitidos para organizações sem fins lucrativos que prestam serviços à comunidade e pagam seus voluntários com elas.

Um aspecto importante do método de Minneapolis é que após ser descontado em uma empresa, o C$D desaparece (neste sentido, ele se assemelha às milhas das companhias aéreas e aos vales-desconto). E novos C$D são emitidos para recompensar novos serviços prestados à comunidade. Isto restringe o aparecimento de problemas referentes à quantidade de moeda a ser emitida, já que ela se autodestrói automaticamente com o uso.

Vantagens do método da moeda dual
Ele permite às pessoas que tem mais tempo livre e menos dinheiro participar plenamente da economia (como ocorre com os Time Dollars). Além disto, é uma ferramenta de marketing muito eficaz, porque aumenta o tráfego e a fidelidade dos novos clientes sem necessidade de canibalizar a base de clientes que pagam em dólares.
Trata-se de um sistema “ganha-ganha” para todos. Vejamos os benefícios que cada um dos diferentes públicos envolvidos obtém:

Empresários
Do ponto de vista das empresas, existe uma vantagem importante, que supera inclusive às já mencionadas: a fidelidade de seus clientes e a imagem de empresa “amiga da comunidade”. Com este sistema, as empresas atraem clientes que de outro modo não conquistariam, e seguem obtendo ganhos em dólar em cada transação, pois a porcentagem cobrada em dólar deve sempre mais que cobrir os custos marginais em dólares, incluindo impostos. E além de tudo isto, a oferta destes tipos de serviços gera nos bairros uma melhora que de outra forma não ocorreria, e isto constitui um fator positivo para qualquer empresa.

Organizações sem fins lucrativos
Nesse jogo elas estão entre os grandes ganhadores também. Elas podem aumentar as atividades voluntárias, e participar na seleção e na distribuição de C$D também proporciona às organizações mais ativas um maior reconhecimento.

Membros em geral
Os indivíduos encontram nesse sistema uma forma simples de combinar as duas esferas da vida: eles podem conservar seus empregos e trabalhar em algo que os realize. Suas contribuições em trabalho são mais reconhecidas do que eram, e a melhora geral na qualidade da vida comunitária também os beneficia.

Desempregados e empobrecidos
Este sistema permite às pessoas transformar o tempo em dinheiro; Pessoas empobrecidas podem participar mais plenamente do sistema econômico, já que em geral elas são as que têm mais tempo que dinheiro. Além disto, ele oferece uma oportunidade de iniciar uma nova linha de trabalho no universo das organizações sem fins lucrativos, que de outra maneira essas pessoas não teriam. Por ter um procedimento discreto (ninguém além deles próprios precisa saber se o pagamento foi em dólares ou em C$D) o sistema proporciona mais dignidade que os food stamps (vales alimento) ou os cheques recebidos da seguridade social dos EUA. E além disto, não submete as pessoas às complicações desses programas burocráticos.

Para os demais membros da comunidade
Inclusive os que não participam de forma alguma do sistema obtêm um benefício significativo, porque se o programa Commonweal não existisse, não seriam atendidas várias necessidades da comunidade ou elas teriam que ser subvencionadas por meio do pagamento de impostos.

O que o sistema Commonweal oferece é mobilizar recursos que de outra forma ficariam ociosos na comunidade para resolver problemas que exigem solução, recorrendo aos mecanismos do mercado nas suas várias etapas, sem implicar imposto algum.

Até 1998, o sistema estava em sua fase piloto no bairro Lyndale, em Minneapolis. Além das organizações sem fins lucrativos, participavam o shopping Mall of the Americas e outras empresas convencionais, como o National City Bank, que oferece o sistema contábil e os extratos das contas em C$Ds. Este é um exemplo prático de um sistema no qual todos saem ganhando, com uma moeda complementar que integra formalmente em uma única modalidade de pagamento os aspectos competitivo e cooperativo da economia. Trata-se de um exemplo da Economia Integral que será definido detalhadamente no capítulo 10. Ele mostra que, para resolver nossos problemas comunitários, é possível mobilizar recursos não usados (tanto a capacidade instalada ociosa das empresas como o tempo e as habilidades dos cidadãos comuns), com benefícios diretos tangíveis tanto para a economia cooperativa como para a competitiva.

Dinheiro virtual para comunidades virtuais
Um dos aspectos mais intrigantes e estimulantes dos avanços da Internet foi o surgimento das “comunidades virtuais”, descritas contundentemente por Howard Rheingold em Virtual Community: Homesteading on the Electronic Frontier (Comunidade Virtual: Colonização da Fronteira Eletrônica).332 Em nossa sociedade, o espírito comunitário se tornou um recurso tão escasso que o surgimento de uma nova forma de recriá-lo é, verdadeiramente, algo que merece destaque.

Comunidades virtuais versus monopólio das moedas nacionais na Internet
No entanto, o processo que produziu este milagre não costuma ser compreendido plenamente. Mesmo pessoas que criaram comunidades virtuais nem sempre percebiam que o segredo do êxito se relacionava com o fato de estarem criando economias de dádiva na Internet. Nos espaços em que surgiram comunidades virtuais de sucesso o padrão geral era “eu ajudo hoje e quando eu precisar, alguém vai me ajudar também”. Resumindo: trata-se de uma outra aplicação dos princípios que fundamentam as comunidades que descrevemos no começo deste capítulo. As comunidades virtuais atuais são “comunidades” só porque, uma “economia da dádiva” de informações abertas, fez brotar novos vínculos sociais.

Recentemente, o mundo empresarial descobriu a importância deste fenômeno também.333 Apesar disso, parece ser que nem nas empresas nem na Internet há muita clareza sobre a necessidade de certas precauções para não matar a galinha dos ovos de ouro, e as comunidades virtuais simplesmente desaparecerem, assim como ocorreu com as comunidades “primitivas” mais tradicionais que funcionavam com base na economia da dádiva. Da mesma forma como as comunidades tradicionais foram negativamente impactadas pelos processo de concorrência aos quais as moedas nacionais “normais” induzem, as comunidades da Internet podem ser destruídas se os novos sistemas de pagamento elaborados para a Internet se basearem exclusivamente neste tipo de moeda.

À medida que a Internet abrigue um número cada vez maior de empresas comerciais, as pessoas que valorizam a Internet como comunidade talvez devam tomar algumas precauções para que as comunidades virtuais não tenham o mesmo destino que quase todas as economias de dádivas tiveram.

Internet: um espaço yin ideal para a simbiose econômica
Ocorre que certas características da Internet podem fazer dela um espaço ideal onde moedas que fortalecem comunidades prosperem à vontade ao lado das moedas nacionais tradicionais, permitindo uma nova simbiose entre elas.

Como a Internet oferece espaço ilimitado e transcende as fronteiras naturais e culturais, o mercado eletrônico não precisa se limitar a um sistema monetário exclusivo. O espaço virtual é, verdadeiramente, o que os taoistas chamariam um espaço yin: auto-regulado, incontrolável, infinitamente expansível, o sentido original da expressão Caos Auto-regulado. Devido, justamente, à sua flexibilidade e sua não-exclusividade, ele constitui um lugar ideal para a coexistência e integração de diferentes paradigmas econômicos.

No espaço físico, se uma grande empresa compra a Quinta Avenida de Nova York, nenhum sistema alternativo poderá sequer estar apresente nessa avenida no futuro, quanto menos prosperar. Já a Internet pode se ampliar cada vez ais para que haja um sistema paralelo sem que o novo ou o anterior se prejudiquem mutuamente.

A própria Internet se enriquece com o aumento da variedade. Na verdade, a “liberdade de mercado” de diferentes tipos de sistemas monetários pode beneficiar a todos e tornar possíveis novas sinergias entre as comunidades virtuais e locais, melhorando a qualidade de vida dos internautas.

Características desejáveis das moedas da Internet
Defendo que as cinco seguintes características seriam desejáveis para as moedas das comunidades virtuais:
• eficientes e seguras em um sistema de pagamentos eletrônicos;
• conversíveis em gastos locais (isto é: que respondam à pergunta chave: Como posso usar os créditos obtidos na Internet para pagar por alimentos e despesas cotidianas?);
• não ser nacional (uma característica fundamental da Internet é não ter fronteiras nacionais, ao passo que as moedas nacionais foram criadas especificamente para fomentar consciência nacional. Por que um alemão que compra um produto de uma companhia da Índia pela Internet deveria pagar com marcos alemães, dólares o rúpias?);
• ser regulada pelos usuários por meio da própria Internet;
• fortalecer o espírito comunitário;

Nenhuma das moedas ou sistemas de pagamento atualmente em operação na Internet cumpre todos estes pré-requisitos. Mais especificamente, os sistemas de pagamento que usam as moedas nacionais existentes têm, sem dúvida, as primeiras duas características, mas nenhuma das outras.

Uma câmara de compensação de moedas complementares na Internet?
Certamente, as moedas complementares (em particular, as de crédito mútuo) satisfazem todos estes critérios, exceto estarem atualmente disponíveis para transações na Internet. O único passo necessário agora para criar a moeda virtual que cumpra todos esses pré-requisitos é ter uma câmara de compensação automática para este tipo de moedas complementares, que poderia funcionar na própria Internet. Esta Câmara de Compensação de Moedas Complementares permitiria na prática que, por exemplo, alguém que ganhe créditos em Manchester, Reino Unido, prestando um serviço na Internet possa usá-los no LETS da sua cidade. E ao contrário, créditos obtidos na economia local de Manchester seriam mais valiosos porque dariam acesso a bens e serviços oferecidos na Internet. Com este enfoque, a frase “pensar globalmente, agir localmente” adquiriria um sentido mais prático ainda no mundo real.

Note que eu não afirmo que não se deve usar moeda nacional alguma na Internet, nem que as moedas comunitárias do tipo descrito possam ou devam substituir as nacionais. Eu defendo, isto sim, que chegou a hora assegurar que o espírito comunitário não seja aniquilado pela ignorância do poder que a moeda tem na conformação das relações humanas.

Serviços integrados de pagamentos são uma alternativa?
Qualquer empreendimento comercial que queira obter uma vantagem competitiva desenvolvendo sistemas de pagamento mistos de alta qualidade tem à sua disposição outra alternativa à disposição. Quem desenvolver sistemas de pagamento abertos terão uma vantagem estratégica: a transferência de valor na Internet independente do tipo de moeda a ser utilizada. Já existe demanda por pagamentos mistos na Internet: por exemplo, a compra de uma mercadoria da Cendant que pode ser paga metade em dólares, metade em moeda NetMarket, que é a moeda corporativa da Cendant (veja capítulo 5). Haverá demanda por um serviço que permita que uma pessoa envie um convite por email transferindo em um anexo milhas aéreas acumuladas para a compra de uma passagem. Ou de um pagamento mistos, parte em moeda nacional e parte em moeda complementar (o mesmo serviço proporcionado pela Commonweal de Minneapolis, mas na Internet e não em um centro comercial).

Assim como alguns bancos locais conseguiram atrair novos clientes por meio de contas em moeda complementar (como em Ithaca ou em Minneapolis), é previsível que surja um serviço inovador para pagamentos seguros e em tempo real em uma mistura das diferentes moedas usadas pelos clientes.

Algumas interrogações

  1. É possível que as comunidades virtuais entrem em acordo sobre um sistema monetário que não seja o das moedas nacionais, movido a interesses comerciais?
    Acredito que a expansão explosiva da cibereconomia é um avanço importante, mas suspeito, apesar disso, que as comunidades virtuais, ainda incipientes, que são talvez o fenômeno social mais interessante dentro da Internet, se autodestruirão em pouco tempo se forem colonizadas por um monopólio de sistemas de moedas nacionais. Seria uma triste contradição se acontecer com as comunidades pioneiras o mesmo que aconteceu com a maioria das comunidades da economia da dádiva das sociedades “primitivas” tradicionais. Assim como é verdade que as comunidades virtuais são uma grande oportunidade para as empresas, é importante para as próprias empresas que a forma como elas desenvolvem as comunidades virtuais não acabe sufocando-as.
  2. A maioria dos grupos que usam moedas comunitárias já está na Internet, mas obviamente ainda há muitos internautas que não dispõem de uma moeda complementar em sua região. Isto porque o país mais ativo na Internet (os Estados Unidos) até agora tem uma quantidade proporcionalmente menor de sistemas monetários comunitários. Mas creio que durante a próxima recessão dos Estados Unidos, o número de sistemas de moedas complementares deve disparar, como ocorreu em todos os lugares onde houve aumento do desemprego. A descentralização do sistema nacional de assistência social também dinamizará a criação de sistemas específicos (como os Time Dollars). Por isso, a pergunta estratégica é a seguinte: é possível construir uma aliança entre os internautas e os ativistas que promovem as moedas complementares?

Conclusões

“Uma verdadeira comunidade é inclusiva, e seu maior inimigo é a exclusividade. Os grupos que excluem outros por diferenças de religião, étnicas, ou outras ainda mais sutis, não são comunidades”.
– Fundação para o Fomento do Espírito comunitário

Um desejo comum à vasta maioria das pessoas é fazer renascer o espírito comunitário. Todos os exemplos acima confirmam que a implementação de moedas complementares pode contribuir significativamente para este objetivo. Não digo que sejam uma panaceia, mas sem dúvida elas provaram que elas devem estar na caixa das ferramentas usadas para enfrentar os problemas criados pela nossa Máquina Compactadora do Tempo.

Uma alternativa ao assistencialismo?
Às vezes, diante dessas novas formas de lidar com os conflitos sociais, algumas pessoas acham que se trata de uma outra forma de assistencialismo. Esta interpretação é uma transposição da mentalidade da moeda única, e não se aplica aos sistemas de moedas complementares.

A assistência social é um sistema que intervém no mercado para transferir recursos, em geral através da cobrança de impostos dos ricos para aumentar a renda dos pobres.

Por este motivo, moedas complementares não são uma variação do assistencialismo. Elas estão inseridas no sistema de mercado do início ao fim. O uso da moeda complementar é voluntário para todos, não há necessidade de impostos nem subsídios estatais e, uma vez em circulação, elas se tornam mecanismos auto-financiados de solução de muitos problemas sociais.

As moedas complementares poderiam algum dia vir a substituir os sistemas de assistência social ou tornar alguns deles desnecessários, mas em si não constituem uma forma de assistencialismo.

CAPÍTULO 8

Alguns problemas práticos

Envio 7

CAPÍTULO 8

Alguns problemas práticos
. Quando aparece uma inovação importante, é quase certeza que isso se dá de forma desordenada, incompleta, confusa […]. Não há esperança alguma para especulações que não pareçam loucas à primeira vista.
– Freeman Dyson

. Caos é criatividade em busca de forma.
– John Welwood

. O futuro, como tudo mais, já não é mais o mesmo.
– Charles Kettering

Não basta inventar ou implementar uma moeda nova. Como o dinheiro tem um papel central nas nossas sociedades, muitas organizações e pessoas poderosas têm voz ativa nessa questão. Enquanto o movimento das moedas complementares era ínfimo quantitativamente, os que exercem o poder (autoridades tributárias, bancos centrais, etc.) podiam tê-lo ignorado. Mas se ele vir a se tornar uma tendência dominante – conforme recomendamos aqui – e se queremos usar moedas complementares sistematicamente para resolver os problemas que a Máquina Compactadora do Tempo está gerando, não faz sentido pressupor simplesmente que não há motivo para as preocupações e objeções que tais organizações podem querer levantar.

Este capítulo trata destas questões e identifica, também, alguns elementos para a elaboração de uma política social para a Europa, com emprego de moedas complementares, além disto, apresentarei alguns conselhos práticos para interessados em implementar um projeto com moedas complementares. Este material foi organizado em quatro tópicos:

– As moedas complementares e as autoridades legais e tributárias.
– As moedas complementares, os bancos centrais e as pressões inflacionárias.
– Uma política social para a Europa incorporando moedas complementares.
– Algumas diretrizes para a criação de uma moeda complementar.

As moedas complementares e as autoridades legais e tributárias
Qual é a relação entre moedas complementares e os sistemas legal e tributário? Uma resposta curta seria dizer que não há uma barreira intransponível. Mas para embasar uma afirmação tão ampla, acrescento algumas informações.

As moedas complementares são legais?
A legislação, na maioria dos países, não considera ilegal “um acordo dentro de uma comunidade para usar algo como meio de pagamento”, mas dá, por outro lado, o monopólio da “moeda de curso legal” ao setor bancário, sob supervisão de um banco central. Do ponto de vista prático, isto tudo significa que não se pode forçar ninguém a aceitar uma moeda complementar para saldar dívidas legalmente contraídas, e que os impostos devem ser pagos na moeda nacional.

O estudo mais completo sobre a legalidade das moedas complementares foi realizado nos Estados Unidos pelo professor Lewis D.Solomon, do Centro de Nacional do Direito da Universidade George Washington. Ele analisou exaustivamente as legislações de cada um dos estados e a federal.334 Há algumas disposições específicas, como não usar uma moeda complementar fora do estado onde foi criada, e criar um design para as notas visivelmente distinto do empregado na moeda nacional para evitar que se confundam. Tomadas estas precauções básicas, não há maiores limitações legais para a criação de moedas.

Não conheço um estudo sistemático similar na Europa ou em outras partes do mundo, mas a proliferação desenfreada dos sistemas de moedas complementares em todo o mundo confirma que eles não estão violando lei alguma.

E os impostos?
Como regra geral, o que determina se incide ou não impostos sobre uma operação comercial não é o tipo de moeda usada, mas a natureza da operação em si. A maioria dos países considera que incidem impostos sobre toda atividade profissional (por exemplo, um mecânico que realize trabalhos de mecânica), independentemente da moeda usada. E que os impostos devem ser pagos em “moeda de curso legal”, ou seja, em moeda nacional. Já as operações nas quais as pessoas simplesmente se ajudam mutuamente não são tributadas. Houve um antecedente importante nos Estados Unidos, país considerado o mais estrito do mundo em matéria de impostos: todas as operações efetuadas em Time Dollars foram oficialmente isentas de impostos, devido ao seu propósito predominantemente social.

Com certeza algumas pessoas utilizam moedas complementares para evitar a tributação, mas são pessoas que também sonegam os impostos em operações normais em moeda nacional.

E por falar nisso, você sabia que em muitos países – incluindo os Estados Unidos – sempre que se recebe uma passagem oferecida por uma companhia aérea num programa de milhagem, ela deve ser declarada para fins de imposto de renda? Visto desse ponto de vista, as autoridades tributárias consideram esse tipo de moeda corporativa simplesmente uma variedade especializada de moeda. Esse é um caso no qual a teoria tributária está à frente da teoria econômica.

Por último, há motivos de peso, como a sustentabilidade local ou regional, que justificariam o uso de moedas locais para aumentar os impostos em uma região. Como a função dos governos locais ou regionais é – pelo menos em parte – prestar serviços na sua área de abrangência, eles poderiam usar essa arrecadação para pagar por estes serviços parcialmente em moeda local (veja o quadro a seguir).

A sustentabilidade e a escolha da moeda dos impostos
Os governos locais a favor de fomentar sustentabilidade, qualquer que seja a escala, se esquecem, muitas vezes, de que a melhor ferramenta para destruir a sustentabilidade local foi a introdução de uma moeda nacional para arrecadar os impostos locais.
No século XIX, quando a Grã Bretanha decidiu “abrir” as economias africanas às importações britânicas, criou um imposto “por palhoça”. Como cada “palhoça” ou unidade familiar tinha que pagar um imposto anual denominado em moeda nacional, obrigou os indivíduos a auferirem uma renda nessa moeda e, em consequência, fazerem negócios com pessoas de fora do seu círculo. Bastou este imposto para destruir em poucos anos os padrões de comércio local que durante vários séculos haviam permitido às economias locais serem auto-suficientes.


Uma cidade ou região que queira aumentar sua sustentabilidade, mas segue pagando seus impostos exclusivamente em moeda nacional é como um médico que receita álcool para curar um alcoólatra.

As moedas complementares, os bancos centrais e as pressões inflacionárias
Os bancos centrais e a maioria das pessoas envolvidas no movimento das moedas complementares tenderam a se ignorar mutuamente. Os bancos centrais costumam desconsiderar as moedas locais como sendo “abaixo da crítica” devido a terem escala e status inferiores. Quanto aos ativistas comunitários, poucos parecem ter plena ciência de qual é exatamente o papel e o poder dos bancos centrais.

A imagem que se propaga entre a população em geral dos dirigentes dos bancos centrais costuma ser negativa. Em particular nos Estados Unidos, são o alvo favorito das teorias da conspiração, tanto das velhas como das novas. Os subtítulos de alguns livros lançados recentemente sobre esse tema atraíram muitos leitores com insinuações interessantes: o de Steven Solomon, por exemplo, é tentador “Como os Dirigentes Não Eleitos dos Bancos Centrais Governam a Nova Economia Mundial”335 e William Greider lançou “Segredos do Templo: Como a Reserva Federal Governa o País”,336 ambas implicando a existência de segredos e poder. No capítulo 2 já vimos qual é exatamente o papel dos bancos centrais. Mas a combinação de poder e segredos com resultados desagradáveis pode gerar interpretações, as mais inconvenientes. Os bancos centrais não poderiam cumprir sua função – administrar a moeda de uma nação – sem um certo poder e confidencialidade. Já a melhor descrição da necessidade do terceiro ingrediente – o resultado desagradável – é a de Paul Volcker que diz, com seu humor característico: “Um dirigente de banco central começa a suspeitar cada vez que alguém em algum lugar está se divertindo demais”. Em outras palavras: como paladinos da inflação, eles precisam puxar o freio antes que a atividade econômica fique realmente aquecida, e muito compreensivelmente nem os políticos nem a população em geral gostam disso.

Alguns dos profissionais mais brilhantes e mais interessados em servir o bem comum que eu conheci trabalhavam em bancos centrais. Mas eles têm poder e traquejo suficientes para farejar qualquer coisa pouco ortodoxa como moedas complementares, basta que o nível de adesão supere um certo patamar. Porém, nesse momento há um argumento sólido para eles não sucumbirem a esta reação. Ficou comprovado que os bancos centrais têm, de fato, interesse em tolerar – e em certos casos até apoiar – moedas complementares bem projetadas.

Reações dos bancos centrais às moedas complementares
Do ponto de vista de um banco central, a preocupação fundamental é a relação entre as moedas complementares e a inflação. Se o uso em grande escala de uma moeda complementar for inflacionário, é legítimo impedir sua circulação, caso contrário, não. Minha tese é que as moedas complementares bem projetadas não contribuem para inflação e podem até ser empregadas para reduzir pressões inflacionárias sobre a moeda nacional.

Tudo o que aprendemos na teoria econômica ou monetária pressupõe implicitamente que em um país só há um tipo de sistema monetário. Essa é a maior dificuldade quando refletimos sobre inflação no contexto das moedas complementares. Por exemplo, na perspectiva convencional, a criação de uma segunda moeda pode ser interpretada como um mero aumento da oferta monetária local. Que esse processo cria emprego, todo economista compreende instantaneamente, mas ele (erroneamente) conclui também que as moedas complementares automaticamente aumentam a pressão inflacionária da economia como um todo.

Este raciocínio seria válido se, e somente se, as moedas complementares forem todas fiduciárias, como o dólar, o euro ou qualquer outra moeda nacional atual. Na verdade, há um tipo de moeda complementar (a Hora Ithaca, descrita no capítulo 7) que é fiduciária e cujo uso, se amplamente difundido, geraria um risco importante. Mas ficará demonstrado aqui que outros tipos de moedas, entre eles todos os sistemas de crédito mútuo (como os LETS ou os Time Dollars), não aumentam pressões inflacionárias.

Em lugar de argumentar usando a teoria para provar isto, tomemos três exemplos práticos em ordem crescente de complexidade.

Nas trocas diretas sem uso de moeda só o que muda concretamente ao final é quem possui o que. Não há impactos inflacionários porque as quantidades de bens e de moeda em circulação ficam inalteradas.

O caso dos sistemas de crédito mútuo (como o LETS ou os Time Dollars) é similar ao do escambo, pois cada crédito gera simultaneamente um débito de mesmo valor na mesma comunidade. Portanto, a quantidade líquida de moeda em circulação segue intacta, como nas trocas. De uma perspectiva monetária, os sistemas de crédito mútuo simplesmente facilitam as trocas multilaterais, eles têm o mesmo efeito geral que o de um grupo realizando trocas trianguladas ou multilaterais.

Já a questão dos sistemas de pagamento integrados bem projetados – como a Rede de Intercâmbios Comunitários de Minneapolis vista no capítulo anterior – é um pouco mais complexa. A moeda é emitida em função da capacidade ociosa das empresas participantes. O precedente bem conhecido para este tipo de moeda são as famosas “milhas” emitidas pelas companhias aéreas. Emitir essas “milhas” aumenta a quantidade de horas voadas pelos passageiros? A resposta óbvia é “sim”. Mas, isto cria pressão inflacionária no preço das passagens? A resposta, surpreendentemente, é “não”. E não porque o custo por passageiro adicional seja praticamente zero (motivo pelo qual a companhia emite “milhas” gratuitamente, para começo de conversa). Não gera pressão inflacionária porque qualquer gerente de companhia aérea que domine seu ofício se encarregará de garantir que ninguém tire o lugar de um passageiro pagante usando “milhas” gratuitas. Por isso há restrições para “milhas” em feriados de final de ano, na alta estação, ou nos fins de semana para determinados trajetos.

É exatamente isso o que ocorre com a emissão dos C$Ds em Minneapolis. Um restaurante pode aceitar a metade do pagamento em moeda nacional e a outra metade em moeda complementar antes das sete da noite. Assim se usa um espaço que ficaria ocioso, portanto os preços não sofrem pressão inflacionária alguma. A teoria nos diz que em um mercado competitivo um restaurante só aumenta seus preços quando opera acima da sua capacidade instalada. Um dos aspectos intrigantes das moedas complementares – do ponto de vista da teoria do controle da inflação – é o fato de permitir às empresas uma melhor administração da capacidade ociosa. Quando há uma moeda apenas, não é fácil identificar clientes que possibilitem aproveitar melhor a capacidade ociosa e incrementar a produtividade. Oferecer descontos, simplesmente, termina canibalizando a receita gerada com os clientes que pagam com moedas nacionais convencionais.

Isto não quer dizer que esse processo resolva o problema da inflação, mas demonstramos pelo menos que, sempre que entram em campo as moedas complementares, as equações monetárias normais baseadas no uso de uma moeda nacional única induzem a erro. Claramente o jogo passa a ser outro. Pode-se dizer, até, que é possível reduzir o risco de inflação em uma economia estimulando-se o uso de moedas complementares bem projetadas. O caso da Nova Zelândia prova que isto não é só teoria.

Não surpreende que os dirigentes dos bancos centrais reajam com desconfiança diante de moedas desse tipo. Mas o presidente do Banco Central neozelandês tem com o Estado um contrato incomum, que estipula que ele perde seu emprego se a inflação da moeda nacional exceder 2,5% ao ano (é uma das muitas iniciativas originais implementadas uma década atrás, quando a Nova Zelândia decidiu modernizar seus sistemas social e institucional). Com isto, o presidente do Banco Central se concentra no seu objetivo principal: manter a inflação sob controle. Rapidamente ficou evidente que as moedas complementares são úteis nesse sentido. A criação de uma moeda complementar para aliviar os problemas dos bolsões com os maiores níveis de desemprego diminuiu a pressão política por reduções das taxas de juros (que potencialmente elevam a inflação). De repente surgiu o primeiro banco central a favor das moedas complementares… Se os bancos centrais tivessem como objetivo fundamental controlar a inflação em lugar de proteger (por princípio ou dogma monetário) o monopólio da emissão de moeda, prevaleceria uma conclusão similar à da Nova Zelândia.

Por que a Nova Zelândia está no caminho certo?
Existem diversas boas razões para afirmar que a Nova Zelândia está no caminho certo. Várias delas são novas, refletindo um ambiente político e tecnológico que mudou.

O problema da escala geográfica para a política monetária
Suponhamos por um momento que Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, não seja o responsável pelo bem-estar econômico de todo o país, mas só da área mais decaída e pobre da cidade de Washington. Ele implementaria uma política monetária diferente da atual? Com certeza. E com razão.

Um dos problemas fundamentais para os bancos centrais ao tomar decisões sobre a oferta de moeda é que eles precisam considerar a situação econômica do país inteiro. O que as moedas complementares permitem é ajustar a sintonia fina entre meio de troca e necessidades locais. É por isso que os governos da Nova Zelândia e da Austrália estão envolvidos na criação desse tipo de moeda nas comunidades com as piores taxas de desemprego.

Desemprego na Era da Informação
Na segunda metade do século XX, a política monetária foi um dos principais instrumentos usados para neutralizar efeitos do conhecido ciclo econômico de curto prazo. Alguns especialistas – em especial Milton Friedman, da Escola de Economia de Chicago – declararam que os bancos centrais fracassaram de forma lamentável nas suas tentativas de fazer apenas isso. Porém, se os atuais problemas de desemprego decorrem do ajuste estrutural às tecnologias de produção da Era da Informação, a questão é totalmente diferente. Nesse caso, não só Friedman, mas todas as escolas monetaristas terão que concluir que as formas tradicionais de ajustar o ciclo econômico simplesmente não vão mais funcionar.

De volta ao futuro do dinheiro privado?
A história demonstra que para os bancos centrais é fácil emitir moedas comunitárias locais. Mas tentar proteger o monopólio do dinheiro desta forma seria matar uma raposa e deixar um bando de leões famintos rondando o galinheiro. Um sinal revelador de que a moeda fiduciária oficial de um país pode não dar todas as respostas foi a reaparição em grande escala do escambo nos intercâmbios nacionais e internacionais. A sabedoria convencional – que neste caso remonta a Aristóteles337 –afirma que as trocas são apenas uma forma primitiva de comércio que não tem função alguma em uma economia desenvolvida.

Por isto, a versão do escambo no pós-guerra, desde as trocas realizadas pela União Soviética às dos países do Terceiro Mundo, foi atribuída inicialmente à falta de moedas fortes nesses países. Mas essa não pode ser a verdadeira razão, afinal as trocas começaram a ocorrer cada vez mais intensamente, também nos países que tinham moedas fortes. Por exemplo, em 1992 já havia 520 bolsas de escambo nos Estados Unidos com milhares de membros cada. Entre os maiores desses sistemas, vários estarão operando em tempo real na Internet a partir de 1999. Antes da expansão da Internet, transações de escambo nos Estados Unidos e no Canadá totalizaram quase US$6,5 bilhões em 1994 e estão crescendo três vezes mais rápido que o intercâmbio convencional.

A revista “Barter News” (Notícias do Escambo), nesse momento com 30.000 assinantes,338 estima que o escambo deverá atingir US$650 bilhões em 1997, avançando agora a uma taxa anual de 15%. No Canadá, o surgimento do sofisticado cartão de crédito para escambo, chamado Mirville Tremblay, mostra que o escambo pode deixar de ser um tipo excepcional de transação e se tornar um sistema de pagamento bem sucedido nas atividades econômicas cotidianas. O Escritório Federal do Desenvolvimento Regional de Quebec apoiou formalmente o escambo.339 O aumento da literatura econômica sobre como a nova estrutura de informação deverá fazer do escambo a tendência do futuro confirma que tudo isso não é apenas um acaso que ficou de moda.340 E mais diretamente relevante para um banco central que o escambo são as seguintes observações publicadas no jornal Washington Post:

“Realmente, um dos fenômenos financeiros mais intrigantes desta década é o avanço inexorável da importância das ‘moedas privadas’ emitidas por empresas para manterem cativos os seus clientes em seus ‘sistemas econômicos’. Em tempos remotos, esse tipo de dinheiro privado – ou “corporate scrip” – era associado com as aldeias ferroviárias ou com as forças armadas e a Grande Depressão. Hoje, essas moedas “espelho” devem ser vistas como ‘os cupons da elite’. Embora Walt Disney, ou a American Airlines, por exemplo, não tenham um Paul Volcker ou um Alan Greenspan, elas terão o mesmo cuidado na gestão da oferta de moeda e da ‘taxa de inflação’ que a Reserva Federal deve ter. E assim como a economia global está cada vez mais integrada nos últimos 20 anos, os programas de milhagem, de fidelidade das companhias de telecomunicações e outras nos Estados Unidos estão se fundindo totalmente numa economia coesa e invisível.

Já não se trata da fidelidade do cliente a uma marca, mas da fusão gradual desses planos criando um novo tipo de economia do crédito ao consumidor. É só uma questão de tempo e surgirá uma nova geração de ‘banqueiros centrais’ para lidar com os problemas de câmbio.

Os usuários do cartão de crédito do Citicorp podem ‘comprar’ milhas da American Airlines ou adquirir descontos em hotéis e locadoras de automóveis. Alguns clientes da American Express podem comprar ‘milhas’ de outras companhias ou créditos para telefonemas da MCI ou da Sprint através do programa Connect-Plus. E é cada vez mais comum poder intercambiar cupons corporativos, milhas, e créditos vip de companhias aéreas. Esta é uma economia que movimenta bilhões – e está crescendo. “Na cabeça do cliente elas podem bem ser moedas” afirma Alfred J.Kelly Jr., vice-presidente de marketing do programa de milhagem do American Express Travel Related Service. “Sem dúvida haverá mais parcerias entre organizações à medida que elas busquem agregar valor para o cliente. Estamos tentando criar programas específicos para os diferentes segmentos, e não somente agregar valor para nosso cliente, mas também gerar fidelidade à nossa empresa e às nossas parceiras.”

Kelly destaca, por exemplo, que se um cliente da American Express quer “convertibilidade” entre crédito relacionado às milhas, e o programa Connect-Plus, isto é algo que o ‘banco central’ da Amex deve poder oferecer. De repente, o crédito da Amex começa a competir com o dólar como meio de pagamento para comprar tanto viagens como serviços de comunicação.

As moedas emitidas privadamente estão em alta não somente porque as empresa as estão promovendo, mas porque elas são o que o cliente quer. Se o rublo pode ser conversível, por que não as “milhas” da American Airlines? Na verdade, à medida que as tecnologias sofisticadas de informação se infiltrem na economia, as condições necessárias para o crescimento e o gerenciamento das moedas emitidas privadamente melhoram cada vez mais. Fica barato e fácil monitorar as compras e o crédito dos indivíduos. “Da mesma forma como as pessoas buscam administrar seu cartão de crédito, logo elas estarão administrando seus ‘créditos’, lidando com várias moedas ‘espelho’.”341

O que um banco central fará diante dos cupons corporativos que surgirão na Internet, e os atuais – como a já disponível moeda NetMarket da empresa Cendant? Não deveríamos reconhecer que a Era da Informação já suscitou uma questão muito mais fundamental referente a como as moedas nacionais deverão desempenhar sua função no futuro? O perigo é que os bancos centrais podem ser tentados a ficar escarafunchando no raso (isto é, nas moedas complementares de menor escala, politicamente desprotegidas) sem confrontar as grandes mudanças politicamente mais defendidas (isto é, as moedas emitidas por corporações).

Um Apelo
A maior ameaça para a experimentação e para a solução dos problemas gerados pela Máquina Compactadora do Tempo usando criativamente as moedas comunitárias e/ou as que possibilitem a criação de emprego é os bancos centrais possivelmente interpretarem isso como um fenômeno perigoso e contagioso. Um banco central tem o poder de eliminar moedas complementares, ou pode conseguir respaldo jurídico para isso. Um dos meus motivos para escrever este livro era convencer bancos centrais a, nesse caso em particular, não se deixarem levar pelo primeiro impulso técnico. Aqui há muito mais em jogo do que o olho técnico vê à primeira vista. No mundo em que vivemos, o serviço público pode exigir que nossa visão tradicional sobre negócios seja repensada. Outro motivo é apelar para que a comunidade acadêmica comece a avaliar as implicações dos sistemas de moedas múltiplas, em especial de moedas complementares.

Esse é um território até certo ponto inexplorado e precisamos de muito mais conhecimento sobre os impactos que os sistemas duais de moedas (tanto de moedas locais como das emitidas por corporações) têm sobre nossos processos econômicos. Parte da complexidade decorre de que cada moeda cria um sistema de alocação de mercado em sua esfera de atividade, mas elas, além disto, interagem todas no mesmo mercado. Já as várias moedas nacionais não interagem entre si. Cada país tem um uma área privilegiada na qual só a moeda nacional é soberana.

As obras clássicas sobre sistemas de moedas múltiplos em um único país, como as leis de Gresham, supõem que uma das moedas é ‘boa’ e as outras ‘ruins’. Mas, o que ocorre quando todas são ‘boas’ nos segmentos de mercado que se sobrepõem? Este é um dos muitos campos nos quais “está havendo um crescimento alarmante de coisas sobre as quais não sabemos nada”. O que está em jogo é muito relevante. Se a economia cooperativa for trucidada –como ocorreu tantas vezes no passado – seremos condenados a escolher entre dois futuros possíveis ambos comparativamente insatisfatórios: o Inferno na Terra ou o Milênio Corporativo. Se, por outro lado, for possibilitada a experimentação com as moedas complementares, acredito que estamos a meio caminho da Abundância Sustentável.

Como Implementar uma Moeda Complementar
A parte difícil na criação de uma moeda não é conceber a nova variação da moeda complementar, nem mesmo iniciar as operações. A parte difícil é fazer com que seja aceita e usada na sua comunidade. Na verdade, as moedas nacionais têm a seu favor a história e o costume, para não falar da legislação que a torna “moeda de curso legal para o pagamento de todas as dívidas públicas ou privadas”. Sua moeda local não conta com esses fatores, por isso ela tem que conseguir ter uma credibilidade de outra natureza.

No final das contas, para qualquer tipo de moeda, o mais importante é ter credibilidade. Sem isso nada acontece. Os elementos cruciais para o sucesso na implementação de uma moeda complementar são três. um momento apropriado, boa liderança local e ser projetada adequadamente.

O momento apropriado
Os gregos tinham uma palavra especial para isto: Kairos (“o tempo perfeito”) que eles diferenciavam do mero Chronos (tempo). A mesma iniciativa, com as mesmas pessoas, pode ter resultados muito diferentes dependendo do momento. Um “momento oportuno” pode ser positivo ou negativo. Por exemplo: aumentos súbitos do desemprego, conforme mencionado, foram momentos perfeitos para uma rápida expansão do movimento das moedas complementares na Grã-Bretanha e na França e os choques sofridos pelas moedas nacionais da Argentina e do México também motivaram a criação de moedas complementares. Por outro lado, o “momento apropriado” pode ser simplesmente a união do grupo certo de pessoas que decidem fazer algo concreto pela comunidade, o que nos leva ao próximo elemento chave.

Qualidade da Liderança Local
Talvez o fator mais importante para iniciar uma moeda local seja a liderança local. A gestão democrática das moedas locais, controladas com transparência pelos próprios usuários é uma condição essencial para que um sistema seja duradouro. Isso se aplica em especial no caso dos sistemas complementares fiduciários. É necessário que alguém ou um grupo combine visão, empreendedorismo e carisma. Ter visão para imaginar qual outro caminho é possível e para adaptar o modelo a ser usado às circunstâncias locais; empreendedorismo para decidir fazer algo em relação à situação e ser eficaz ao fazer; e por último, carisma para convencer a comunidade a aderir. Se faltar uma dessas três características, o processo termina sendo só “conversa” ou apenas mais um projeto fracassado, entre tantos outros. Mas juntando essas três qualidades em um time, é possível conquistar a credibilidade indispensável para o sucesso de um sistema de moedas complementares. Lembre, no final, em se tratando de dinheiro, o principal é a confiança e, portanto, a confiabilidade das pessoas que estarão promovendo o sistema. Ela vai determinar automaticamente qual escala e que tipo de projeto será viável. Se a liderança tem credibilidade somente em uma área pequena da cidade, trabalhe nessa escala. Se tiver capacidade de mobilizar toda uma região, então é possível implementar um sistema de moeda complementar do tamanho da região. Para concluir, as palavras de Lao Tse são particularmente relevantes para movimentos de base: “A melhor liderança é aquela que no final as pessoas dizem que elas fizeram por si sós.”

Ser projetada adequadamente
O último passo chave é escolher dentre os vários protótipos de moeda complementar disponíveis hoje, o mais adequado às necessidades locais. A tabela abaixo visa ajudar na seleção, proporcionando uma visão geral resumida das principais características dos sistemas vistos até aqui.

Sistemas

Unidade

Emissor

Detalhes

Principal benefício

Moedas nacionais

Dólar , Euro, Ien, Libra (mediadas pelo dólar)

Moeda fiduciária emitida por bancos, sob supervisão do
banco central

Baseadas em dívida,
rendem juros

Moeda de curso legal

LETS
1 dólar verde = 1 US$

Crédito mútuo

Sistema mais difundido hoje

Facilidade na determinação dos preços (1 unidade = 1 US$)

Time Dollars

Hora de serviço

Crédito mútuo

Cambio fixo:
1 hora = 1 hora

É o sistema mais simples de todos
WIR

1 Wir = 1 SF
Crédito mútuo + empréstimos concedidos pela Central

Moeda fiduciária

É o sistema mais maduro de todos (US$ 2 bilhões /ano)

Horas Ithaca

1 hora = US$10

Moeda fiduciária emitida pelo centro comunitário Potluck

A quantidade precisa ser gerida

Fácil de usar (notas em papel)

Sistema japonês de serviços de saúde

Hora de serviço

ONGs governos locais
Câmara de compensação nacional

Serviços de saúde sem custos para o contribuinte

Tlaloc

1 Tlaloc = 1 Peso Mexicano

Crédito mútuo

Emitida na forma de cheques

Tecnologia elementar (não requer computador nem telefone)

ROCS RObust Currency System

Hora de serviço

Crédito mútuo

Taxa de câmbio negociada
Taxa de demurrage

Síntese das características mais robustas

Figura 8.1 Quadro comparativo dos diversos sistemas de moeda

O único tipo que ainda não foi apresentado é o Rocs, o Robust Currency System (sistema de moeda robusto), projetado para resistir choques no sistema monetário, ele sintetiza as características mais sólidas de todos os diferentes sistemas. Ele será descrito em detalhe no final desta seção.

Cada um desses sistemas tem características que, conforme a circunstância, podem ser consideradas uma vantagem ou um defeito. Por exemplo: atrelar a unidade de uma moeda complementar à moeda nacional (como é o caso do LETS, do Wir e do Tlaloc) tem a vantagem de facilitar a determinação de preços para todos inclusive para os estabelecimentos comerciais, porque qualquer produto ou serviço tem o mesmo valor numérico nas duas moedas. Por outro lado, se a moeda nacional entrar em crise, o valor da moeda complementar acompanharia a depreciação. Assim sendo, a moeda complementar logicamente se torna menos eficaz como respaldo, como “estepe”. Dependendo das prioridades da comunidade, faz sentido escolher uma moeda atrelada à nacional, ou não. Se não for atrelada, a unidade que faz mais sentido é a hora. A hora é um padrão universal e é a unidade que quase todos os sistemas que não ancoram sua unidade à moeda nacional estão usando.

Outra decisão chave é usar ou não um modelo de moeda fiduciária (como a Ithaca HOUR ou o WIR) ou um sistema de crédito mútuo (como o LETS, o Time Dollar, o Tlaloc, ou o ROCS). Há dois motivos importantes para que em geral seja preferido o crédito mútuo, em particular no caso de sistemas projetados para expandirem ou serem replicados em maior número:

  1. Todas as moedas fiduciárias, por definição, são emitidas por uma autoridade central, seja um “banco central comunitário”, um indivíduo ou um comitê. A decisão mais complicada – como qualquer diretor de banco central pode atestar – é quanta moeda emitir. Se for demais, o resultado imediato é a inflação e as pessoas mostrarão resistência a aceitar a moeda. Se for escassa, a moeda complementar desempenha só parcialmente seu papel. Já a principal vantagem do sistema de crédito mútuo é que a quantidade de dinheiro é sempre perfeitamente auto-regulada. Os próprios participantes criam moeda no momento de cada transação, por definição, há sempre a quantidade exata em circulação. E, além disto, a soma se reduz automaticamente quando as pessoas realizam transações no sentido oposto ao inicial (por exemplo, uma pessoa recebe um crédito em uma transação e quando o usa para adquirir um bem ou serviço, leva seu saldo a zero). A característica da auto-regulação é importante porque elimina a decisão mais delicada e traiçoeira na gestão de uma moeda complementar.
  2. O segundo motivo é estratégico. Conforme foi mencionado acima, o maior perigo para o movimento das moedas complementares é a repressão por parte do banco central, como ocorreu na década de 1930. É a função legítima dos bancos centrais manter a taxa de inflação da moeda nacional sob controle. Uma proliferação desordenada de moedas complementares fiduciárias poderia impactar o gerenciamento da taxa de inflação da moeda nacional, conforme vimos na seção sobre o banco central, acima. As moedas complementares de crédito mútuo não implicam esse risco e por isto podem aumentar sua importância relativa sem interferir na função do banco central. Estamos ainda muito no início da Era da Informação e, é cedo demais, definitivamente, para dizer qual é o sistema “ideal” de moedas complementares. Por isto, devemos estimular a criatividade e a experimentação. Meu sistema predileto de moeda complementar é o ROCS, porque reúne todas as melhores características que dão solidez a um sistema. No momento em que escrevo, que eu saiba, essa moeda ainda não foi implementada.

A escolha da Hora como unidade de conta, torna esta moeda bastante universal e protegida contra os ataques à moeda nacional. Por ser de crédito mútuo, não há o risco de excesso de emissão, intrínseco a todas as moedas fiduciárias. O que diferencia a ROCS do Time Dollar é o fato de a taxa de câmbio ser negociada entre os participantes. Algumas pessoas podem considerar que o tempo de qualquer membro deveria ter o mesmo valor. Mas isto é utópico, pois na prática resulta simplesmente em algumas pessoas não aceitarem os Time Dollars em troca dos seus serviços, se seus serviços são mais valorizados no mercado “normal” (por exemplo dentistas, cirurgiões, etc.). E por último, o ROCS teria a taxa de demurrage, pelas razões explicadas a seguir.

Algumas lições técnicas de 1930 úteis nos dias de hoje
Uma das características mais interessantes que passaram no teste de centenas de casos da década de 30 (incluindo Wörgl, conforme mencionado no capítulo 6) – que não tem sido imitada nos sistemas mais recentes é a ideia da demurrage. No entanto essa é uma propriedade que tem alguns efeitos desejáveis muito relevantes.

Uma desvantagem pragmática dos sistemas de moedas complementares de hoje é que eles em geral dependem de um esforço de vendas contínuo por parte dos iniciadores. Muitos simplesmente morrem quando os fundadores se cansam de ficar arcando permanentemente com esta tarefa. Mas quando se emprega um mecanismo de demurrage condicionado ao tempo, todos os participantes do sistema se tornam automaticamente promotores motivados do sistema.

É importante mencionar, também, que foram levantadas críticas válidas em relação ao processo de colar selos nas notas usado em 1930. O manejo dos selos é uma inconveniência para todos os envolvidos. E, nos anos 30 havia a tendência de se formarem ondas um dia antes do vencimento do selo mensal, de compradores que preferiam não serem eles a pagar pelo selo. Foram criados os selos semanais para amenizar este efeito, mas ainda assim, de forma reduzida, essa tendência persistia.

Entretanto, com a tecnologia de informação de hoje, estes dois inconvenientes podem ser eliminados facilmente e eficientemente. Os sistemas de moedas complementares de hoje são computadorizados, na sua imensa maioria. Seria muito simples aplicar uma taxa temporal, pequena e permanente sobre os saldos (créditos e débitos) constantes na listagem. Por exemplo, uma taxa diária ou até mesmo horária, que equivalesse cumulativamente a 1% ao mês ou mais. Com a tecnologia dos smart cards, isto pode ser facilmente incluído no próprio programa do cartão.

Hoje, para a maioria das aplicações, eu recomendaria uma taxa da ordem de 1% ao mês. Uma porcentagem muito inferior provavelmente não teria efeito nos padrões de comportamento. Se for mais alta, poderia acabar sendo motivo para recusar a moeda. Nesse caso se justifica fazer alguns experimentos até ajustar bem esse fator.

Uma última razão para aplicar a demurrage é que ela, ademais, contribui para atrair a atenção para as questões de longo prazo. Este aspecto será desenvolvido em detalhe no próximo capítulo.

Capítulo 9:
Uma moeda de referência global – Tornando o Dinheiro Sustentável

-“Senador, o pessoal da ‘Sobrevivência do Planeta’ está aqui para falar com o senhor”
-“Odeio ter que lidar com esse pessoal que só pensa na sua própria causa!”
Charge de Bob Thaves (Newspaper Enterprise Association Inc.)

“SEM PLANETA, NÃO TEM NEGÓCIOS”.
(adesivo de automóvel)

“Confrontadas com uma destruição massiva do meio ambiente, as pessoas em toda parte estão entendendo que não podemos continuar usando os bens da Terra, como no passado. Está começando a surgir uma nova consciência ecológica que, em vez de ser menosprezada, deve ser estimulada e desenvolvida em programas e iniciativas concretas.”
Papa João Paulo II

“É uma boa prática de negócios prever o inevitável e me parece inevitável, gostemos ou não, que estejamos indo em direção a uma economia que precisa ser limitada e seletiva no seu padrão de crescimento. A Terra tem limites – para os americanos essa é uma idéia à qual é difícil se ajustar.”
John D. Rockefeller III

“Nos ossos corroídos das civilizações exterminadas pode-se ler: ‘tarde demais’.”
Martin Luther King Jr.

“O socialismo colapsou porque não permitia aos preços dizer a verdade econômica. O capitalismo pode colapsar porque não permite aos preços dizer a verdade ecológica.”
Øystein Dahle, ex-vice-presidente da Exxon para Noruega e Mar do Norte

“O que mais faz falta hoje é uma moeda universal, um padrão de valor, uma ligação entre o passado e o futuro e o cimento que una as parcelas remotas da raça humana.”
Robert Mundell, ao receber o prêmio do Banco Central da Suécia “em Memória de Alfred Nobel”, em dezembro 1999.342

Proponho uma última vez o jogo “diga-me seus objetivos e projetaremos uma moeda que ajude a atingi-los”. Este capítulo trata de uma última “questão de dinheiro”: “Como conciliar o interesse financeiro com a sustentabilidade de longo prazo?” Uma outra forma de formular a mesma pergunta: É possível uma abordagem em que todos ganhem nas finanças, nos negócios, e na sociedade?

Essa pode ser a questão mais importante de todas, porque o que está em jogo é a própria sobrevivência da nossa e de muitas outras espécies. Um renomado autor de teoria monetária, o francês Jacques Rueff afirmou “O dinheiro vai decidir o destino da humanidade.”343 Vamos precisar ver o último peixe morrer, ou a última floresta ser derrubada, para percebermos que não podemos comer dinheiro?

Apresento essa questão neste capítulo já próximo ao fim do livro porque – ao contrário dos novos modelos de moedas mostrados nos capítulos anteriores – o tipo de moeda proposto aqui é uma inovação total, e portanto, não há exemplos contemporâneos para demonstrá-lo.

Algumas perguntas para presidentes de empresas.
Se você é um presidente de empresa, ou conhece um, responda com franqueza.

  1. Haverá mais crises monetárias?
  2. Tais crises afetam seus negócios?
  3. O que você pensa fazer a respeito?
  4. Qual é o horizonte temporal que você utiliza ao fazer planos para o futuro dos seus filhos?
  5. Que horizonte temporal considera ao pensar nos negócios?
  6. Dada a diferença nos horizontes temporais mencionados nas perguntas 4 e 5, que mundo você e os demais empresários deixarão para os seus filhos?

Se as respostas a estas perguntas o inquietam, o projeto Terra descrito a seguir vai lhe interessar.

Este capítulo começa com uma breve exposição do atual status dos aspectos positivos das realizações da Era Industrial e também dos seus impactos negativos sobre a “Biosfera Terra”. Com este balanço fica evidente a relevância da questão levantada acima.

Na seção seguinte, “Três Ferramentas de Persuasão”, identifico as limitações que impedem de convencer as empresas a fazer algo a não ser por motivos financeiros.

E em seguida mostro a relação direta entre uma característica em particular do sistema oficial da moeda nacional – os juros – e o fenômeno da visão de curto prazo das empresas e da sociedade ocidental de forma geral. E proponho, então, uma solução: “óculos para enxergar de longe” que é ao mesmo tempo uma metáfora e uma possibilidade técnica concreta.

Sustentabilidade de longo prazo
É cada vez mais consenso a insustentabilidade ecológica, social e política da nossa trajetória atual.

Depois de toda uma vida de estudos sobre por que as civilizações desaparecem, o historiador Arnold Toynbee concluiu que há somente duas causas comuns para a extinção de 21 civilizações passadas: extrema concentração de riqueza e inflexibilidade diante de mudanças das condições existentes. Nas últimas décadas, nossa civilização parece ter se enveredado por um caminho que combina estes dois fatores desastrosos. Mas antes de mostrar o papel que o sistema de moedas desempenha, é preciso, primeiro, ver o lado positivo desta situação também.

Resultados positivos do sistema moderno de moedas

É preciso reconhecer que o sistema monetário moderno teve um papel fundamental nas realizações extraordinárias da Era Industrial. Para industrializar uma economia, é necessário concentrar uma quantidade suficiente de recursos. Não se pode construir uma siderúrgica com uma escala pequena, num fundo de quintal (os chineses bem que tentaram isso no final da década de 1970, sem sucesso). E para concentrar recursos, a concorrência entre empresas privadas – parafraseando a frase espirituosa de Churchill sobre a democracia – “é o pior sistema, com exceção de todos os outros”. Você prefere comprar seu próximo carro, almoço, ou computador de um fabricante sem concorrentes? Este sistema definitivamente conseguiu instigar e propagar a Era Industrial em todo o mundo.

As façanhas verdadeiramente excepcionais da Era Industrial podem ser mais bem apreciadas observando seus impactos sobre nossa espécie como um todo. A vida humana foi totalmente transformada pelo processo de industrialização. Só para colocar em perspectiva o que há de totalmente exclusivo nos dois últimos séculos e meio, observe o gráfico abaixo: (figura 9.1)

População mundial (em milhões)
5000
4000
3000
2000
1000
0
-10000 -7000 -5000 -3000 -1000 500 1250 1750 2000
Anos (os valores negativos são AC, os positivos são DC)

Figura 8.1 População Mundial (em milhões)344

A população humana ficou abaixo de 400 milhões durante quase toda a sua existência. Houve, na verdade, vários períodos com redução da população a taxas significativas: praticamente de 10.000 a 8.000 AC e no final da Idade Média, quando a Peste Negra dizimou pelo menos 75 milhões de pessoas (incluindo cerca de um quarto da população européia). A população humana atingiu um bilhão pela primeira vez na primeira metade do século 19. E a partir daí, disparou. Chegamos ao segundo bilhão em 1925, ao terceiro em 1962, e ao quarto em 1975, ao quinto em 1986 e ao sexto em 1999. Nesse momento, é, sem dúvida, uma boa notícia a taxa de crescimento ter começado a ceder. A maioria dos estudiosos deste assunto preveem que esta é a última vez que dobramos a população. Devemos chegar a 7 bilhões em 2009 e a 8 bilhões em 2019.
A população mundial deverá se estabilizar em torno de 10 a 12 bilhões em algum ponto no meio do próximo século.345

O que viabilizou esta explosão demográfica (novamente: para o bem ou para o mal) foi, com certeza, a Revolução Industrial, quando a força humana e a animal foram substituídas pela primeira vez por energias fosseis. A trajetória da produção de bens foi mais íngreme ainda que a do crescimento da população. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita dos países desenvolvidos se multiplicou por 20 entre 1800 e hoje. O padrão de vida disparou. Na Europa, na América do Norte e nas áreas industrializadas da Ásia, passamos da mera subsistência a um estado que nossos ancestrais considerariam uma abundância extraordinária para muitas pessoas. Independentemente das suas desvantagens devemos reconhecer que essas realizações são grandiosas. Mas analisemos friamente o outro lado deste “balanço”.

O estado atual da Biosfera Terra
Até o século passado, a Natureza era percebida como uma força poderosa, que inspirava respeito, sobre a qual os humanos tínhamos muito pouca ou nenhuma influência. Isto agora mudou radicalmente. Em 1996, a World Conservation Union (União para a Conservação Mundial), em colaboração com mais de 600 cientistas, publicou a pesquisa mais abrangente até o momento sobre o estado da vida animal no planeta, com a seguinte conclusão: 25% dos mamíferos e anfíbios, 11% das aves, 20% dos répteis e 34% dos peixes pesquisadas até o momento estão ameaçadas de extinção. Outros 5% a 14% de todas as espécies estão “próximas de estarem ameaçadas.” Uma pesquisa de 1998 concluiu que 6.000 espécies – 10% de todas as espécies de árvores – também estão em perigo.346

Um relatório publicado pelas Nações Unidas em setembro de 1999, baseado nas avaliações de 850 especialistas de todo o mundo, afirma que a velocidade com que a humanidade destrói a biosfera ainda está se acelerando. “Só agora começamos a perceber a verdadeira dimensão dos danos, à medida que juntamos as peças e obtemos uma visão global da rede extremamente complexa e interconectada que é o sistema que dá sustentação à nossa vida”347

Pessoalmente, faço o seguinte balanço de tudo o que acabo de expor, resumindo em três pontos:
• Os resultados positivos encorajam, pois, se decidirmos, sem dúvida nós podemos reverter o processo de degradação ecológica; mas nossa janela de oportunidade para isto está se fechando.
• Os meios usados para estimular a sustentabilidade das empresas e das pessoas (ou seja: principalmente a legislação e a persuasão moral) são insuficientes tanto em termos geográficos como de alcance.
• E o restante deste capítulo demonstra que existe uma possibilidade prática de mudar nosso sistema de moeda para canalizar a potente energia da economia global para uma sustentabilidade de longo prazo.

Os Três Instrumentos de Persuasão
Por que mudar nosso sistema de moedas para atingir uma sustentabilidade de longo prazo? Não há uma forma mais direta de alcançar este objetivo?
Há somente três formas de persuadir as pessoas ou instituições a aderirem a mudanças não espontâneas de comportamento:
• educação e persuasão moral;
• legislação; e
• interesse financeiro.

Nas últimas décadas, quando as pessoas começaram a dar atenção às questões ambientais, foram enfatizadas, quase que exclusivamente, as duas primeiras formas.

A história mostra que quando o interesse financeiro se contrapõe à legislação, ele quase sempre acaba vencendo. Pelas constantes e quase sempre fracassadas batalhas para fazer valer as leis anti-contrabando ou anti-drogas se vê o que devemos esperar se confiarmos unicamente na legislação.

E sempre que o interesse financeiro confronta a pressão moral, a briga é ainda mais feia. Muitas pessoas decidem simplesmente que não podem se dar ao luxo, ou elas não se importam o suficiente para se deixar conduzir pelas diretrizes morais, quando têm que pagar pessoalmente um preço por isto.

Ao que tudo indica, somente podemos esperar mudanças de grande escala no comportamento quando estas três forças motivadoras estão alinhadas na mesma direção. Por exemplo, a reciclagem de garrafas de vidro ou latas de alumínio se torna realmente efetiva quando simultaneamente:
• a legislação determina que devem ser recicladas;
• se realiza uma campanha de informação pública sobre os motivos da reciclagem;
• e por último mas não menos importante, há um depósito reembolsável de 5 ou 10 centavos por garrafa ou lata.

Resumindo: alinhar interesses financeiros com preocupações de longo prazo é uma condição necessária, embora não suficiente para uma estratégia de sustentabilidade bem sucedida. A importância do alinhamento dos interesses financeiros com a sustentabilidade de longo prazo é ainda mais crucial porque muitas questões (como a mudança climática, chuva ácida, camada de ozônio, etc.) precisam ser solucionadas no nível global ou simplesmente não vai fazer muita diferença. E é pequena a probabilidade de regulamentar ou persuadir moralmente o mundo todo. Por exemplo: até 2015, os chineses têm planos de atingir o mesmo nível de emissão de dióxido de carbono verificado no resto do mundo hoje. Esta previsão se baseia nas usinas termelétricas a carvão atualmente em fase de planejamento ou já em construção na China. O que podemos fazer?

O famoso arquiteto William Mc Donough afirma que “Regulamentação é sinal de falha no design.” Ele pergunta: “Quem toma as decisões em um barco?”A resposta é o designer, que projetou antecipadamente no barco 90% do que o capitão vai poder fazer. Eu afirmo que o mesmo está acontecendo com o mundo das empresas: o design do sistema monetário está ordenando previamente 90% das decisões de investimento que são tomadas ou não tomadas no mundo. E regulamentação visando sustentabilidade é uma mera tentativa de corrigir falhas do design do nosso sistema monetário. Além disto, ficou comprovado que a regulamentação é de longe o meio mais ineficaz quando o objetivo é a sustentabilidade.

Nossos manuais de economia afirmam que as empresas e os indivíduos competem por mercados ou recursos. Na verdade, competimos pelo dinheiro, usando mercado e recursos para isso. Com um novo design para o dinheiro que favoreça uma visão de longo prazo, poderíamos canalizar os volumosos recursos das corporações globais para um futuro mais sustentável.

A relação entre sistemas monetários, percepção do tempo e sustentabilidade
Na maioria das vezes, nem os especialistas em questões monetárias nem os ecologistas percebem a conexão entre o sistema monetário e a sustentabilidade. Veremos a seguir que, na verdade, este é um ponto que está passando despercebido. Para nos familiarizarmos com essa relação recorreremos a mais um conto que escrevi para meu afilhado.

O homem com o óculos para ver de perto
(Conto escrito para Kamir, de 7 anos de idade)
Era uma vez num lugar bem perto daqui, um homem que usava óculos fazia tanto tempo, que ele até havia esquecido que estava com eles. O principal problema era que seu óculos, em vez de corrigir sua visão, o estava fazendo ver tudo tão de perto, que ele já não podia enxergar nada além do nariz. Assim ele trombava contra tudo e todos porque apareciam do nada, sem avisar, quando já não dava para desviar. Ele ficou tão preocupado com esse problema, que procurou um cientista.

O cientista ouviu atentamente seu problema e tirou da estante um livro muito grosso sobre óptica cheio de equações e diagramas. E mostrou ao homem que era muito normal ver melhor de perto que de longe. Explicou coisas sobre o número de partículas de luz diminuindo proporcionalmente ao quadrado da distância até a vista. O homem com o óculos de ver de perto não entendeu bem, mas ficou aliviado ao ouvir que havia uma razão científica que tornava a situação muito normal.

Assim, ele seguiu trombando com as pessoas, árvores, até com a própria porta verde na entrada da sua casa e com tudo que só aparecia depois da batida. O homem começou a ficar preocupado de novo, abatido com tantas trombadas, quando deu com a testa em uma parede de tijolos vermelhos particularmente dura. Então resolveu procurar um psiquiatra.

O psiquiatra lhe disse para se deitar num sofá muito grande e começou a fazer um monte de perguntas – como ele se dava com seu pai, com sua mãe, com seus irmãos e irmãs. Depois de responder a todas estas perguntas, o psiquiatra lhe disse que era muito normal que estivesse deprimido e lhe pediu que voltasse uma vez por semana para tratar em profundidade de tudo isto.

Um dia, muito tempo depois, quando o homem com o óculos de ver de perto estava voltando da consulta com o psiquiatra, mais deprimido que nunca, ele trombou com sua netinha de cinco anos que estava esperando por ele na frente da sua casa. Ele se alegrou muito com a visita, e entraram na casa para brincarem juntos.

A garotinha sentou no colo do avô para brincarem de cavalinho e fazendo de conta que balançava as rédeas, de repente esbarrou e fez o óculos cair. Instantaneamente ele percebeu que na verdade enxergava muito mais longe. O rosto sorridente da netinha estava perfeitamente nítido. A porta verde na qual havia topado na semana anterior estava nítida. Ele notou até que a parede de tijolos vermelhos precisava de um conserto no lugar onde sua testa havia batido. Ver as coisas antes de dar de cara com elas era muito bom.

Podemos reformular a relação entre dinheiro, percepção do tempo e sustentabilidade da seguinte maneira: o juro cria no sistema uma tendência estrutural de desprezar o futuro, de ver o mundo com “óculos de ver de perto.” E além disto, quanto mais alta a taxa de juro, mais forte é esta tendência. Vimos no capítulo 3 como o juro está profundamente enraizado no processo de emissão do dinheiro no nosso sistema atual.

Para entender a relação entre o juro e a percepção do tempo são necessários três passos:
• compreender como as decisões de alocação de capital são tomadas em geral usando o método do “Fluxo de Caixa Descontado”;
• como, no atual sistema monetário, esse desconto do futuro é uma das principais causas do conflito direto entre critérios financeiros e sustentabilidade ecológica; e
• como a taxa de desconto usada no Fluxo de Caixa Descontado é afetada diretamente pela taxa de juros da moeda usada na análise de FCD.

“Fluxo de Caixa Descontado” = “Descontar o Futuro”
“Fluxo de Caixa Descontado” é o método utilizado em geral para se decidir investir ou não em um projeto, ou para comparar diferentes projetos. Ele é descrito detalhadamente em qualquer livro-texto de finanças; o que precisamos entender sobre ele, aqui, pode ser explicado com um simples exemplo:

Suponha que um projeto requeira um investimento de US$1.000 hoje e que ele deverá gerar um lucro líquido de US$100 no primeiro dia de cada ano subsequente durante 15 anos. E suponha, também, que não há inflação no período. A Figura 8.3 mostra como seria o fluxo de caixa real desse projeto: ele começa com US$1.000 negativos, com a saída de caixa hoje e para cada um dos próximos 15 anos temos o mesmo valor de US$100 no lado positivo.

Fluxo monetário anual de um projeto

Fluxo de caixa (valores reais em dinheiro)
US$100
US$0 (US$100) ano 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 101112131415
(US$200)
(US$300)
(US$400)
(US$500)
(US$600)
(US$700)
(US$800)
(US$900)
(US$1.000)

Figura 8.3: Fluxo monetário anual de um projeto

Para um analista financeiro, entretanto, esse mesmo projeto deve ser visto de forma diferente (figura 8.4)

Fluxo de caixa em moeda convencional visto por um analista financeiro

US$100
US$0 (US$100) 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 101112 131415 ano
(US$200)
(US$300)
(US$400)
(US$500)
(US$600)
(US$700)
(US$800)
(US$900)
(US$1.000)
Figura 8.4 Fluxo de caixa descontado na visão de um analista financeiro

Ele vê os mesmos US$1.000 no ano 0. Mas o lucro de US$100 depois do primeiro ano vale somente US$91 se a taxa de juro for constante, igual a 10% a.a. durante todo o período do projeto. (todos os valores foram arredondados, pois os decimais não alteram a argumentação)348

Todos sabemos que dinheiro futuro vale menos que dinheiro hoje. A diminuição depende totalmente da “taxa de desconto” aplicada no projeto.

O analista do nosso exemplo sabe que poderia aplicar US$91 em um banco hoje com uma taxa de retorno livre de risco de 10% e automaticamente ter US$100 daqui a um ano. Por este motivo, os US$100 dentro de um ano equivalem a US$91 hoje. Pelo mesmo raciocínio, os US$100 no segundo ano valem somente US$83, no terceiro, US$75, etc. No décimo ano, a entrada de US$100 representará somente US$39; e no décimo quinto ano reles US$24.

Assim sendo, o que parecia um investimento perfeitamente razoável, rendendo US$1.500 sobre um capital de US$1.000 na Figura 8.3, acaba sendo um projeto medíocre quando visto com os óculos de ver de perto do nosso analista financeiro.

Projetando esse valor no período de um século, os últimos US$100 se tornam 7 cents. E em dois séculos, estaremos falando de centésimos de cent. Não surpreende que em nossas sociedades não seja comum pensarmos sobre o impacto das nossas decisões sobre “a sétima geração”, processo que nos exigiria levar em conta os dois próximos séculos.

Não há nada de errado com a vista do analista financeiro nem com seu raciocínio. Ele aplica uma lógica financeira básica, para uma moeda que funciona com taxa de juro positiva.

Visão de curto prazo versus sustentabilidade
Como esse mesmo raciocínio se aplica a todos os investimentos motivados por interesses financeiros, ele cria, no agregado, a pressão, bem conhecida no sistema financeiro, por retornos de curto prazo às custas de qualquer consideração de longo prazo – incluindo a sustentabilidade de longo prazo.

Quando um executivo se queixa que pressões financeiras o forçam a ter em mira exclusivamente os resultados do trimestre seguinte, ele está sendo vitima do “óculos de ver de perto”. Quando os chineses dizem que não podem se dar ao luxo de usar tecnologias de produção com energias limpas, eles estão dizendo, na verdade, que os custos de longo prazo das consequências econômicas futuras descontados a valor presente são desprezíveis comparados à redução de custos imediata que eles obtêm com as tecnologias “sujas” que eles estão planejando usar.

Quando alguém decide que é caro demais instalar painéis solares para aquecer a água de uma casa, implicitamente está dizendo que o custo da eletricidade ou do gás no longo prazo, descontado a valor presente é menor que o desembolso imediato. E quando se constrói uma casa de baixo custo, sem uma insolação adequada, na verdade se está optando entre o custo do aquecimento futuro descontado a valor presente e o custo mais alto da construção hoje.

A relação com a taxa de juro
Na explicação acima, sobre o método do Fluxo de Caixa Descontado adotamos como premissa que a taxa de desconto usada era idêntica à taxa de juro da moeda. Na realidade, a taxa de desconto que deve ser usada é o “custo de capital do projeto”. Sem entrar em detalhes técnicos desnecessários, não há um, mas três componentes nesse custo de capital:
• a taxa de juro da moeda utilizada;
• o custo do capital; e
• um índice de ajuste para refletir as incertezas do fluxo de caixa do projeto propriamente dito.

O terceiro componente é completamente relacionado ao projeto e, portanto, não é afetado pela moeda utilizada, ele ficaria idêntico com qualquer outro sistema monetário, e vamos deixá-lo de lado para os fins da nossa análise aqui.

Já os dois primeiros são diretamente afetados pelo sistema monetário em questão.

Aqui está a principal causa da famosa ‘miopia’ do mercado financeiro, que força as empresas a tomarem decisões que eles sabem que podem ser nocivas para o público e até para a própria empresa no longo prazo.

Um presidente de uma empresa que seja tentado a pensar em termos sociais ou ecológicos mais a longo prazo, rapidamente é eliminado, seja pelo conselho de administração, ou – se necessário – por um novo conselho depois que a empresa tiver sido alvo de uma aquisição hostil.

“Uma raça especial de investidores, o “comprador hostil” é especialista em fazer de empresas estabelecidas, suas presas. O processo básico é simples, embora os detalhes sejam complexos e a luta pelo poder, muitas vezes repugnante: o “comprador hostil” identifica uma empresa negociada em bolsa cujo valor dos ativos supere a soma do preço das suas ações no mercado. Algumas vezes, são companhias que estão enfrentando dificuldades. Mais frequentemente, são bem administradas, financeiramente saudáveis, cumpridoras dos seus deveres, e com visão de futuro. Elas podem ter reservas de caixa substanciais para as fases de declínio do ciclo econômico e possuir recursos naturais geridos de forma a obter uma renda sustentada.”349 Depois da tomada de controle hostil, o “comprador hostil” muda as políticas da companhia para conseguir ganhos de curto prazo, e ironicamente, muitas vezes para pagar o serviço das dívidas gigantescas usadas para a própria aquisição hostil. O resultado é mais uma empresa com o “óculos de ver de perto”…

Resumindo: no atual sistema monetário, um pensamento de mais longo prazo não somente é menos lucrativo, ele na verdade é punido severamente.

Entretanto, é possível desenvolver um sistema monetário que reduza drasticamente o custo do capital reduzindo simultaneamente tanto a taxa de juros como o custo do capital próprio. E você vai ver como este processo realinha o interesse financeiro com a meta da sustentabilidade de longo prazo.

“Óculos de ver de longe”?
O que acontece quando você inverte a posição de um binóculo? De repente, ao invés de trazer para perto um objeto que está longe, ele faz tudo parecer distante.

Em nossa metáfora dos “óculos de ver de perto” uma taxa de juros positiva era a característica do nosso sistema monetário atual que criava uma miopia financeira generalizada e fazia o futuro parecer menos relevante. E quanto mais alta a taxa de juros, mais forte a miopia. Em outras palavras, o resultado de uma taxa de juros positiva é similar ao que acontece quando se olha de forma errada por um binóculo.

O que aconteceria se revertêssemos o óculos do analista financeiro?
Lembram da demurrage mencionada no final do capítulo anterior? A demurrage foi uma criação inovadora de Sílvio Gesell (1862-1930), e sua utilização mais recente foi como o dispositivo anti-acumulação das moedas com selos da década de 1930. Sua hipótese inicial era que o dinheiro é um tipo de serviço público, como o transporte coletivo; e uma pequena taxa é cobrada pelo tempo que ele é retido. A palavra “demurrage” é da época das ferrovias, é a multa cobrada do cliente por deixar um vagão de trem sem uso, aguardando para ser carregado nas suas instalações. O mesmo se aplica hoje nos aluguéis de contêineres.

Do ponto de vista financeiro, uma taxa de demurrage sobre o dinheiro equivale, matematicamente, a uma taxa de juro negativa. Por motivos que ficarão claros em seguida, vou chamar esta taxa associada ao tempo de “taxa da sustentabilidade”.

Agora, o que essa taxa da sustentabilidade ou de demurrage faz com a visão do nosso analista financeiro? O projeto da figura 9.2 de repente pareceria para ele o projeto da figura 9.4

US$(1.000) US$(900) US$(800) US$(700) US$(600) US$(500) US$(400) US$(300) US$(200) US$(100) US$-
US$100 US$200 US$300 US$400 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 ano:
Figura 9.4: visão de um analista financeiro de um fluxo de caixa expresso em uma moeda com taxa de sustentabilidade (ou taxa de demurrage)

Isto não se deve somente à aplicação mecânica da equação do Fluxo de Caixa Descontado. Mesmo que pareça estranho à primeira vista, embora seja o contrário do que estamos acostumados com nossas moedas normais, ainda faz todo o sentido do ponto de vista financeiro.

Suponhamos que você pode escolher entre 100 unidades, hoje ou daqui a um ano, de uma moeda à prova de inflação, sobre a qual incide uma taxa de sustentabilidade. Se você não precisa do dinheiro para consumo imediato e você tem garantia da minha credibilidade nos próximo ano, você logicamente vai preferir o dinheiro daqui a um ano. A razão é o fato de que recebendo o dinheiro somente dentro de um ano, você não precisa pagar a taxa de sustentabilidade durante esse ano. Em termos técnicos, descontado ao valor de hoje, as 100 unidades valerão mais daqui a um ano, do que se você as receber agora. Elas valerão exatamente os 100 mais a taxa de sustentabilidade. Quando usamos moedas com taxa de sustentabilidade, o futuro se torna mais valioso com o tempo, isto é exatamente o oposto do que ocorre com nossas moedas com taxas de juros positivas.

Continua havendo duas questões fundamentais a serem resolvidas:
• Como implementar uma ideia deste tipo? Quem poderia tomar a iniciativa de instituir um novo sistema monetário global em um futuro previsível?
• Um sistema monetário tão heterodoxo é sólido? Quais seriam as consequências econômicas?

Uma Moeda de Referência Global e a Unidade Terra.
Vou chamar de Moeda de Referência Global (MRG) o conceito genérico de moeda que não é ligada a estado-nação algum, e cuja finalidade principal é constituir uma moeda de referência estável para o comércio e para os contratos internacionais.

E proponho como unidade de conta para um tipo particular de MRG, o Terra, que visa ancorar firmemente a MRG no mudo material/físico. Lembre, uma das razões pelas quais o cassino monetário atual pode especular tão selvagemente como acontece hoje, é a desconexão entre o mundo financeiro e a realidade física, esta ligação foi mortalmente ferida pelo Presidente Nixon em 1971. No que se refere a esta função, o Terra seria análogo ao padrão ouro no século XIX.

A unidade Terra é definida como uma cesta padrão de mercadorias e serviços particularmente importantes para o comércio internacional e idealmente o peso relativo de cada um deles na cesta padrão deve refletir sua importância relativa no comércio global.

Por exemplo, o valor do Terra poderia ser estipulado da seguinte forma:
1 Terra = 1/10 barril de petróleo (por exemplo qualidade e entrega Brent)

  • 1 arroba de trigo (a preço da Bolsa de Mercadorias de Chicago)
  • 2 libras de cobre (a preço da Bolsa de Mercadorias de Londres) +…etc.
  • 1/100 onças de ouro (preço de entrega em Nova York)

(Obs.: as commodities acima, qualidade, padrões de entrega e respectivos pesos na unidade Terra estão mencionadas aqui só como exemplo. Na prática, isto seria parte de um acordo negociado entre os participantes. Este padrão também poderia incluir serviços ou índices para aumentar ainda mais a estabilidade da unidade Terra.)

O Terra tem quatro características chave:
• pode ser à prova de inflação por definição.
A Inflação é sempre definida como a variação no valor de uma cesta de bens e serviços e, portanto, se a cesta que compõe o Terra for representativa do comércio global, automaticamente se consegue uma unidade à prova de inflação.
• o valor da nova moeda Terra poderia facilmente ser expresso em qualquer moeda nacional. Qualquer pessoa que queira saber o valor de um Terra em na sua moeda nacional precisa apenas consultar os preços das commodities internacionais que fazem parte da cesta. Estes são preços publicados nas seções de finanças de todos os grandes jornais do mundo e estão disponíveis em tempo real na Internet.
• e, principalmente, o Terra também é automaticamente conversível em qualquer moeda nacional sem necessidade de novos tratados ou acordos internacionais. Quem receber um pagamento em Terras, tem a opção de simplesmente receber a cesta de commodities num local previamente estipulado (como os que já existem para entregas de diferentes mercados de futuros, por exemplo.) E os mercados de commodities existentes poderiam também ser o local do pagamento em dinheiro convencional nacional pelos produtos entregues, quando desejado. É de se esperar que – à medida que fique comprovado que o sistema é confiável e tem credibilidade – cada vez menos pessoas sentirão necessidade de cobrar suas receitas em dinheiro.
• mas a característica mais importante de todas, para os nossos fins aqui, é que a taxa de sustentabilidade está embutida ‘naturalmente’ no sistema monetário. Assim, ele garante a plena integração da moeda proposta no sistema de mercado existente da economia “real” em todos os seus aspectos.

Há um custo real de armazenamento das commodities e a taxa de sustentabilidade seria simplesmente o custo do armazenamento da cesta de commodities. Segundo estimado em um estudo detalhado para uma Moeda de Reserva de Commodities, estes custos (e portanto a taxa de sustentabilidade) estariam em torno de 3% a 3,5% a.a.350

Note que não se trata de um custo novo adicional para a economia como um todo. Estes custos na verdade já estão embutidos na economia atual. O que se propõe é simplesmente transferir o custo existente para o portador da moeda Terra, conferindo aos custos a função social de uma taxa de sustentabilidade.

Conversa de economista
Os livros-texto de economia definem dinheiro em termos da sua função, e as três mais importantes são: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor.

Desde 1972, não há mais um padrão internacional de unidade de conta. Neste sentido uma MRG simplesmente restaura esta função para quem usá-la como moeda contratual.

A função de meio de troca seria desempenhada ou pela MRG ou por moedas nacionais convencionais a critério das partes — assim como hoje se estipula qual moeda nacional será usada em um pagamento internacional.

E por último, a função de reserva de valor não ficaria a cargo da MRG. Poderia ser atribuída aos instrumentos em moeda nacional convencional, ou a novos produtos financeiros especializados com liquidez decorrente do investimento em ativos produtivos.

Esta especialização funcional mostra como a MRG tem uma função complementar à das moedas nacionais comuns.


A MRG induz a uma dinâmica de comportamento de forma similar ao aspecto “bom” da inflação. Mas impede que os “maus” aspectos se manifestem. Os economistas descobriram que um nível moderado de inflação pode gerar um impacto positivo sobre a economia. Por exemplo, quando a inflação de 1980 nos Estados Unidos provocou um retorno líquido negativo nos instrumentos de renda fixa, isso incentivou investimento em projetos produtivos. Entretanto, uma inflação implica também efeitos regressivos como a erosão de todos os acordos de preços e a redistribuição de riqueza da maioria sem sofisticação financeira, para uma minoria sofisticada. A taxa de demurrage da MRG, por este motivo, produz o efeito positivo da inflação, e evita o surgimento do aspecto negativo.

*** A equação de Fisher da velocidade do dinheiro constitui outra forma de ilustrar o impacto da MRG.

T = ∑ (PG) = QV
(onde T = total dos intercâmbios econômicos; P = Preço; G = bens e serviços transacionados; Q= quantidade de moeda e V = velocidade da circulação da moeda).

Para uma dada quantidade de moeda em circulação (um dado Q), a demurrage da MRG eleva a V. Como o Terra é expressa em termos de uma cesta representativa de bens e serviços, ela, por definição, mantém P constante.

A equação de Fisher mostra, portanto, que com a introdução da MRG o total de bens e serviços transacionados aumenta, necessariamente, melhorando o bem-estar econômico geral.


E por último, o emprego da MRG complementando as moedas nacionais convencionais tende automaticamente a compensar o ciclo econômico, melhorando a estabilidade geral e a previsibilidade do sistema econômico mundial porque, por definição, as empresas têm excessos de matérias-primas na fase de declínio do ciclo de negócios. Elas, por este motivo, tenderiam a vender mais matérias-primas para estocagem para a MRG Inc., que paga com Terras. Para evitar a despesa de demurrage, as empresas usariam imediatamente os Terras para pagar seus fornecedores, e estes teriam o mesmo incentivo para passar os Terras adiante em seus pagamentos. A propagação do incentivo para usar a MRG nos intercâmbios iria reaquecer automaticamente a economia nesta fase do ciclo.

E, pelo contrário, na alta do ciclo de negócios, as empresas têm um incentivo sistemático para não somente não vender novos estoques para a “Aliança do Contraciclo”, como também cobrar deles o acesso às matérias-primas. Isto reduziria a quantidade de Terras em circulação quando o ciclo econômico estiver no seu pico, desaquecendo a economia. No auge do ciclo, é possível até que não haja Terra algum em circulação (o que não o impede de continuar sendo usado como moeda contratual de referência).
Tanto Keynes como Friedman demonstraram que com dinheiro convencional, a velocidade da moeda é pró-cíclica (cada um por motivos diferentes: Keynes, em função das variações nas taxas de juros, e seu colega devido ao papel predominante da chamada “receita permanente” de Friedman na determinação da demanda por moeda). O fato de a quantidade de Terras em circulação estar na contra-mão do ciclo econômico tenderia, por este motivo, a neutralizar a natureza pró-cíclica do sistema monetário convencional. Resumindo: a introdução de uma MRG tenderia a amenizar automaticamente o ciclo econômico aumentando a liquidez monetária da economia nas fases de declínio do ciclo.

Solidez teórica y prática
Para os que preferem uma linguagem puramente técnica, o quadro acima “Conversa de economista” sintetiza a noção geral. Do ponto de vista conceitual, o Terra é a combinação de duas ideias: por um lado, uma moeda respaldada por uma cesta de commodities, proposta por muitos dos melhores economistas de todas as gerações351 (incluindo, entre outros, o contemporâneo Jan Tinbergen, agraciado com um prêmio do Banco Central da Suécia “em Memória de Alfred Nobel”), e por outro uma taxa de sustentabilidade indicada originalmente por Silvio Gesell com o nome de taxa de demurrage.

Esta segunda ideia – a cobrança de demurrage na moeda – recebeu um respaldo formal de alguém altamente autorizado, nada mais nada menos, que John Maynard Keynes. Ele afirmava que a demurrage não somente faz sentido do ponto de vista teórico, como na verdade é preferível que o nosso sistema normal de moedas. O capítulo 27 da principal obra de Keynes, Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda afirma explicitamente que: “estes reformadores, que buscam soluções mediante a criação de um custo artificial para a circulação da moeda exigindo que para que mantenha sua qualidade de moeda de curso legal, sejam colados selos periodicamente na moeda, a um custo estipulado, estavam no caminho certo e o valor dessa proposta na prática merece ser considerado.” 352

Keynes concluiu com uma afirmação das mais impressionantes: “O futuro vai aprender mais com Gesell que com Marx.”353 Surpreendentemente, alguns executivos do Fed hoje parecem ter motivos próprios para concordar com ele (veja o quadro).

Um executivo do Fed Recomendando a Demurrage?
A moeda dos Estados Unidos deveria incluir mecanismos de rastreio que permitam ao governo tributar a posse privada de notas de dólar, recomenda Marvin Goodfriend, Senior Vice-President e assessor de políticas do Federal Reserve de Richmond. Em um relatório de 34 páginas, ele argumenta que a taxa de demurrage desincentiva o “entesouramento” da moeda, refreia o mercado negro e atividades criminosas e impulsiona a economia em períodos deflacionários quando as taxas de juros oscilam em níveis próximos de zero.354
Obviamente a motivação e o mecanismo proposto para esta aplicação são diferentes dos que eu apresento aqui. Acredito que seja baixa a probabilidade de as ideias do Sr. Goodfriend serem aprovadas pelo Congresso, mas isto pelo menos demonstra que o conceito de demurrage começou a atrair uma quantidade intrigante de atenção.

A melhor análise contemporânea da tese de Silvio Gesell é a de Dietrich Suhr.355 Ele prova que nossas moedas normais que funcionam com juros positivos induzem a uma má alocação sistemática dos recursos, mas as moedas com juro zero ou com taxa de sustentabilidade, não. E dá respostas sólidas para algumas das críticas às moedas com taxas de sustentabilidade. Estas pessoas estavam a favor de diferentes partes da proposta da MRG por vários motivos válidos –estabilidade monetária, a redução da volatilidade dos ciclos econômicos e das desigualdades internacionais – mas não devido à sustentabilidade. Uma Moeda de Referência Global como o Terra reuniria estas vantagens, além dos benefícios de uma taxa cuja meta é a sustentabilidade de longo prazo.

É importante entender, também, que as pessoas não precisariam lidar pessoalmente com as mercadorias, quando fizessem ou recebessem pagamentos em Terras, assim como uma pessoa que possui contratos de futuros em cobre não precisa manusear o cobre. Um Terra é simplesmente um recibo de um armazém que dá o direito de receber o valor da cesta de mercadorias na moeda com a qual a pessoa trabalhe. Os Terras poderiam, portanto, ser transferidos eletronicamente exatamente como as moedas nacionais de hoje; seriam simplesmente uma moeda estável e à prova de inflação, algo que as moedas nacionais de hoje, comprovadamente não são.

Precedentes Históricos
Note que a idéia de combinar uma moeda lastreada em mercadorias com uma taxa de sustentabilidade não é algo realmente novo. Uma forma embrionária disso foi aplicada no Egito dos faraós. Foi o segredo da extraordinária estabilidade do sistema monetário egípcio, não replicado por nenhuma civilização desde então.356 Ele gerou a estabilidade econômica e abundância por mais de um milênio. Este recorde histórico demonstra, também, a grande capacidade das taxas de sustentabilidade de fomentar o crescimento sustentável, capaz de durar muitos séculos. Voltaremos a este tópico mais adiante 357

Opções de Implementação
Há diversas formas de implementar uma Moeda de Referência Global.
Por exemplo, teoricamente, seria possível tentar obter um consenso para uma reforma no sentido da MRG junto aos governos do mundo via um novo Bretton Woods ou via a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas com as realidades políticas de hoje, é extremamente improvável que os governos cheguem a um novo consenso. Em conversas privadas com executivos do Banco de Compensações Internacionais (BIS) e do FMI eles confirmaram que nas circunstâncias geopolíticas atuais, uma iniciativa monetária fundamentalmente nova só poderia ser tomada pelo setor privado.

O verdadeiro poder de decisão está mais nas mãos das multinacionais que dos governos. As principais prioridades, em termos de tempo, que precisam ser mudadas para se atingir a sustentabilidade são as das corporações globais, e por isto de toda forma seria necessária a adesão do mundo corporativo. É por isto que a estratégia proposta aqui é convencer um grupo chave de corporações a instituírem elas próprias uma Moeda de Referência Global como serviço prestado a quem desejar fazer negócios no comércio internacional.

A MRG como iniciativa empresarial
A MRG faz sentido como iniciativa do setor privado por várias razões. Vejamos:

Padronização do escambo
A forma mais simples de entender a MRG do ponto de vista das empresas é como uma padronização do escambo. Tem sido significativo o crescimento dos intercâmbios diretos, tanto internacionalmente como domesticamente. Nas últimas duas décadas o escambo vem se expandindo e se tornando uma atividade de grande escala e de ampla aceitação, constituindo, inclusive, a atividade dominante em algumas áreas de negócios. Faz-se escambo no segmento de viagens, hotéis, nos meios de comunicação de massa e no comércio internacional. Uma pesquisa de 1995 estimava em US$590 bilhões anuais o total do escambo no nível global. As crises da Ásia e da Rússia no final dos anos 90 deverão fazer crescer ainda mais o escambo. Alguns setores de negócios já desenvolveram unidades padronizadas de intercâmbio, específicas. Por exemplo, a Associação Internacional do Transporte Aéreo, a IATA vem usando já há mais de duas décadas sua unidade de conta mundial própria para pagamentos entre as empresas membros. E de forma similar, os “hotel-rooms” (diárias de hotéis) e “TV Spots” (horários de transmissão da TV) estão evoluindo gradualmente para unidades padronizadas específicas dos seus setores para serem usadas nas trocas. A próxima etapa lógica é desenvolver unidades padronizadas para escambo para operar na Internet. Neste sentido, o Terra ou qualquer outra MRG simplesmente viria a ser uma unidade para trocas comum a diferentes setores. Entretanto, esta unidade para escambo poderia também ser projetada para proporcionar três benefícios adicionais:

  • Uma unidade padrão bem projetada seria mais consistente que as moedas nacionais existentes hoje e poderia ser útil como padrão de valor internacional para fins contratuais e de pagamentos internacionais, e não somente para trocas.
  • Tendo uma cesta lastreada por ume estoque físico de mercadorias, este sistema atuaria como uma poderosa ferramenta contra-cíclica.
  • E, por transferir os custos de armazenamento da cesta ao portador da moeda, esta moeda realinharia os interesses financeiros com as preocupações de mais longo prazo conforme explicado acima.

A importância para as empresas de cada um desses benefícios é a seguinte.

Padrão Internacional de Unidade de Conta
O problema da falta de um padrão internacional de valor foi identificado pela primeira vez por Hogart e Pearce: “Não vai demorar para o mundo começar a reconhecer novamente que fazer negócios sem um padrão de valor adequado hoje é tão possível quanto sem uma unidade convencionada de peso ou de medida.”358

Uma consequência da falta de um padrão internacional foi o aumento da importância dos riscos cambiais, que agora, em geral, são mais altos que os riscos políticos (por exemplo a possibilidade de um governo estrangeiro nacionalizar um investimento), ou mesmo que os riscos de mercados (como os clientes rejeitarem o produto).

Em uma pesquisa realizada em 1992 com as 500 maiores empresas dos Estados Unidos segundo a revista Fortune, todos os respondentes declararam que os riscos cambiais agora são uma das suas principais preocupações. 359. Mais ainda: 85% dos entrevistados revelaram que precisam de estratégias dispendiosas com uso de derivativos para tentar reduzir o risco cambial. É significativo que as empresas que mais utilizam tais hedges também sejam as maiores e mais sofisticadas.360

Um aspecto importante sobre o qual não há pesquisas é o fato de muitos investimentos estrangeiros terminarem não sendo realizados, simplesmente porque o risco cambial não pode ser coberto, ou o custo de cobri-lo é alto demais. Estes custos de oportunidade são prejudiciais não somente para a empresa, mas para a sociedade como um todo.

Tudo isso já se observava antes da inundação de crises monetárias ocorridas recentemente. Com as convulsões na Ásia (1997), Rússia (1998) e Brasil (1999) esta questão atingiu um novo patamar de gravidade. As citações abaixo nos dão uma idéia da seriedade dos riscos de instabilidade monetária, do ponto de vista das autoridades monetárias:

•“Estamos em uma situação que é realmente perigosa” (6 de setembro de 1998) Michel Camdessus, três vezes presidente do FMI
•“Esta é uma situação sem precedentes” Rubin, Secretário do Tesouro dos Estados Unidos (Set/98)
•“Esta é a crise financeira mais séria desde a Segunda Guerra Mundial” Bill McDonough, Presidente do Federal Reserve de NY na reunião do FMI de outubro de 1998 – declaração que o Presidente Bill Clinton citou textualmente poucas semanas depois.

MRGs como o Terra reduziriam, portanto, os custos operacionais em circunstâncias monetárias normais e além disso são um sistema de segurança muito robusto em casos de novas grandes instabilidades monetárias.

Um Antídoto contra o Risco de Depressão
Pela primeira vez em mais de 60 anos, não podemos descartar a possibilidade de uma recessão global fora do controle das autoridades monetárias. Como disse Paul Krugman “Problemas para os quais acreditávamos já ter encontrado solução tornaram-se incuráveis outra vez, assim como ocorre com as bactérias eliminadas temporariamente que no longo prazo desenvolvem resistência aos antibióticos (…) Resumindo, há no ar um nítido odor de década de 30.” 361

O sistema da MRG poderia ser gerido de forma a ter um poderoso efeito contra-cíclico sobre o sistema da moeda oficial, contribuindo, portanto, para a redução dos riscos de uma grande recessão global porque os estoques que lastreiam o Terra logicamente subiriam durante uma a recessão, pois as corporações sempre tem quantidades maiores de estoques disponíveis nesses momentos e isto automaticamente aumentaria a liquidez em Terras. Nos períodos de alta do ciclo econômico, ocorreria o inverso: cairiam os estoques e a liquidez monetária gerada pelo Terra. O sistema da MRG tenderia, por este motivo, a contrabalançar automaticamente o ciclo econômico convencional. A introdução deste sistema seria útil, em particular, para impedir uma recessão de mais longo prazo ou até a depressão que tantos receiam.

Empresas e meio-ambiente: o ponto de vista das empresas
Um artigo especial da Global Business Network sobre Sustentabilidade concluía que “a indústria e o meio-ambiente não podem mais ser compartimentados. O sistema ecológico global e o sistema socioeconômico estão agora integrados – o destino de um está atrelado ao destino do outro. Se a industrialização convencional continuar crescendo, há o risco de ela destruir o sistema ecológico; se o sistema ecológico colapsar, destrói a economia.

O sistema industrial é extremamente vulnerável a uma crise ecológica grave. As empresas multinacionais são como os carros de Fórmula 1, que buscam tempos melhores a cada volta no circuito. Eles partem da hipótese que a pista será perfeitamente lisa e sem obstáculos. As instalações industriais, edifícios, fábricas, linhas de transmissão de energia, estão todos projetados em função de um conjunto estrito de premissas climáticas e ecológicas (um nível máximo prudente de carga eólica, uma resistência moderada a terremotos, um fluxo constante de recursos naturais). Mas agora que há estudos mostrando coisas como os núcleos das geleiras do Ártico, sabemos que a natureza é, com certeza, capaz de produzir perturbações muitíssimo mais severas do que o relativamente reduzido intervalo de variações climáticas que temos observado nos últimos anos. Isto coloca a base operacional da sociedade industrial de hoje diretamente sob o risco de possíveis colapsos ecológicos globais acompanhados de desastres naturais generalizados.”362

Conforme mencionamos no capítulo 1, o setor de seguros foi o primeiro grande setor a ter seu lucro líquido diretamente impactado pela relação entre meio-ambiente e negócios. Mas embora tenha sido o primeiro, sem dúvida não é o único setor preocupado com esta questão.

Conclusões
Pode soar estranho à primeira vista que as empresas assumam a função de criar uma moeda como um bem público. Entretanto, é importante lembrar que as chamadas moedas “nacionais” são na realidade também uma forma de moedas corporativas, emitidas por bancos privados, conforme explicamos nos capítulos 2 e 3. Note, também, que os bancos e o setor de serviços financeiros em geral não estão excluídos do processo da MRG: as instituições financeiras mais criativas prestariam serviços em Terras, exatamente como fazem hoje com contas em divisas.

Na verdade, existe um precedente histórico para iniciativas internacionais tomadas por empresas: a Liga Hanseática (1367-1500). Veja o quadro a seguir.

Precedente histórico de estrutura institucional multinacional criada por empresas (1367-1500)
Em uma época de grande fragmentação no norte da Europa, mercadores de várias cidades independentes (Bremen, Colônia, Hamburgo, Bruges, cidades bálticas, etc.) se uniram para criar um arcabouço legal completo próprio para o comércio (a Hansa), com moedas padronizadas próprias, e até tribunais internacionais para arbitrar disputas. Tudo isto totalmente à parte do sistema político e de governo oficial. Esta estrutura durou bem mais de um século, seis vezes mais que o atual experimento de câmbio flutuante. A Hansa foi definida como marco institucional oficial em 1367, depois de experimentos mais informais durante mais de um século. Este sistema foi extraordinariamente bem sucedido quanto aos seus objetivos. Mas os mercadores em cada porto gastavam tanta energia impedindo que mercadores concorrentes tivessem acesso ao sistema para concorrer em seus mercados, quanto na expansão dos seus mercados no exterior, e além disto, o sistema barrava propositalmente negociantes de determinados países. Ele terminou por desmoronar ao final do século VX quando comerciantes, transportadores e frotas de pesca holandeses e ingleses – inicialmente excluídos – conseguiram contestar esse monopólio.

Se for escolhido o caminho da iniciativa privada para implementar uma MRG de algum tipo, seria importante estabelecer desde o início mecanismos para garantir acesso a um mercado verdadeiramente aberto para todos os participantes do comércio internacional, independentemente de porte ou origem, de forma a evitar que essa parte da história da Liga Hanseática se repita.

Entretanto, uma versão contemporânea também seria significativamente diferente da Hansa. Ela teria que ser global e não regional, um serviço público aberto e não um cartel, e usar conceitos jurídicos e financeiros contemporâneos, tecnologias de comunicação (isto é,:Internet). O fundamental, na verdade, é se os líderes da comunidade empresarial estão dispostos e são capazes ou não de assumir a responsabilidade de reformar o atual sistema monetário com uma iniciativa privada que contribua para que as empresas se tornem realmente sustentáveis. O significado da palavra “empresa” em sueco é “näringsliv” (literalmente “alimentação da vida”), ele seria mais verdadeiro se uma aliança de empresas assumir a iniciativa de implementar o Terra e seria também uma forma altamente eficaz de solucionar o eterno conflito entre as prioridades dos acionistas e as preocupações dos líderes empresariais com a sustentabilidade de longo prazo, sejam elas decorrentes de pressões da opinião pública, da ética pessoal ou com o futuro dos seus próprios netos.

“O mundo não nos foi dado por nossos pais. Ele nos é emprestado por nossos filhos”
(Painel no Salão da Biodiversidade do Museu de História Natural de Nova York)


Algumas pessoas podem se surpreender com a proposta feita neste capítulo, por parecer totalmente a favor das corporações multinacionais. Especialmente depois de eu deixar claro no “Milênio Corporativo” (capítulo 4) os riscos de se estabelecer na prática um monopólio de moedas corporativas privadas. Entretanto, minha proposta não é criar um monopólio. Ao contrário, recomendo uma moeda global corporativa circulando paralelamente à introdução de moedas complementares locais com fins sociais (capítulos 5 a 7). Mais ainda, estou convicto de que não vamos engendrar um mundo de Abundância Sustentável sem o envolvimento das empresas, organizações que se tornaram os principais responsáveis pela construção do nosso futuro, gostemos ou não. A questão aqui é o equilíbrio, e ele não será conseguido excluindo o elemento mais atuante da nossa sociedade. Como todas as peças do quebra-cabeça, incluindo uma Moeda de Referência Global, se encaixam nesse equilíbrio capaz de gerar a Abundância Sustentável, é o assunto do próximo capítulo.

Capítulo 10: Uma visão mais ampliada – O Tao do Dinheiro

“Nosso universo não é um universo mecânico, é um universo em aprendizado.”
Edgar Mitchell363

“Somente com a restauração das conexões danificadas poderemos ser curados. Conexão é cura.”
Wendel Barry364

Até aqui mantivemos a hipótese fundamental embutida implicitamente no pensamento econômico de que a economia é um sistema fechado no qual os intercâmbios monetários determinam o que ocorre. Neste capítulo começaremos a dar uma espiada “fora da caixa”. Minha premissa básica é que nenhuma metáfora sozinha pode nos dar um quadro completo das possibilidades oferecidas por uma revisão das nossas premissas inconscientes referentes ao dinheiro. Multiplicar as perspectivas através de diferentes metáforas deve, portanto, contribuir para desfazer a ilusão de que uma delas descreve o mundo real.

Nove Metáforas
Cada metáfora nos dá apenas um insight de um ângulo em particular. É um pouco como se alguém tentasse fazer um inventário do Museu do Louvre olhando por buracos de fechaduras. Quantos mais buracos tivermos para olhar, maior a chance de termos uma noção do quadro verdadeiro, embora nunca devamos ter a ilusão de que realmente captamos a imagem toda. A visão do buraco da fechadura do pensamento econômico tradicional será complementada por oito outras metáforas, cada uma proporcionando um insight interessante. Juntas, elas nos permitem mapear melhor o terreno. Com esta diversidade de pontos de vista, tenho a esperança, também, de desconstruir a noção de que qualquer uma delas descreve plenamente a realidade como ela é. As nove metáforas são as seguintes:

  1. O ponto de vista do pensamento econômico tradicional
  2. O ponto de vista do pensamento econômico alternativo
  3. A metáfora da biologia
  4. A metáfora do cérebro
  5. O ponto de vista mitológico
  6. O ponto de vista da filosofia ocidental
  7. O ponto de vista do humanismo
  8. O ponto de vista taoísta
  9. O ponto de vista dos sistemas integrados

Se você estiver com pressa, pode escolher somente os “buracos de fechadura” que mais lhe interessarem. Mas, em todo caso, leia os três últimos: o humanista, o taoísta e o dos sistemas integrados, porque eles introduzem conceitos que serão utilizados posteriormente.

  1. O Ponto de vista do pensamento econômico tradicional
    “Toda posição tende a estar certa quanto ao que afirma e errada quanto ao que nega.”
    Stewart Mills, economista clássico

A metáfora mais conhecida do pensamento econômico tradicional tem agora 230 anos de idade e ainda ressoa.
“Todo indivíduo (…) se esforça tanto quanto pode (…) para conduzir (…) sua atividade de modo a produzir o maior ganho (…) não pretendendo promover o bem público, nem sabendo o quanto o está promovendo (…) ele visa somente seu próprio ganho e nisto, como em muitos outros casos, ele é levado por uma mão invisível a promover uma finalidade que não fazia parte da sua intenção (…) Buscando seu auto-interesse ele frequentemente promove o interesse da sociedade mais efetivamente do que quando ele realmente pretende promover.”365

Esta metáfora da mão invisível provém diretamente da forma como eram explicadas naquela época as leis da gravidade de Newton. A mão de Deus fazendo cada partícula da matéria ser atraída a todas as outras. Cada gota de chuva buscando descer o máximo possível dirigida pela mão invisível da gravidade.

No entanto, quase todos os capítulos desse livro mostraram como é o nosso sistema de moedas – não Deus ou a natureza humana – o que realmente vem programando essa mão invisível. Note, ademais, que as principais metáforas embutidas no pensamento dominante na economia (por exemplo, nas teorias do equilíbrio geral ou da formação dos preços), são invariavelmente mecanicistas e/ou matemáticas, de tipo Newtoniano. Inquestionavelmente, elas provaram ser metáforas poderosamente eficientes, mas é bom lembrar que elas são só um mapa, não o território. Este capítulo demonstra que o território econômico é mais vasto e mais diverso do que o pensamento econômico reconhece.

O pensamento econômico tradicional trata como “externalidades” tudo aquilo com o que ele não lida explicitamente no seu marco teórico (figura 10.1a). A OCDE366 propôs um marco teórico com três campos parcialmente sobrepostos: o econômico, o social e o ambiental (figura 10.1b), sendo a área de maior interesse, a representada pela sobreposição dos três campos, ainda que exista um âmbito substancial no qual a economia funcione independentemente dos outros dois. Nossa concepção, inspirada na de Passet,367 parte da premissa de que o campo econômico está totalmente inserido no campo social, e este, por sua vez, não é mais do que um sub-sistema da biosfera que vive no meio-ambiente (figura 10.1c).

A abordagem dos sistemas integrais vai definir mais adiante o “Pensamento Econômico Integral” que inclui tudo o que o pensamento econômico tradicional contempla, mais outras dimensões da atividade e dos intercâmbios humanos que ele tende a negar. Eu o chamo de “Integral” porque ele tenta recuperar uma percepção mais ampla da realidade que a dos modelos tradicionais.

  1. O Ponto de vista do pensamento econômico alternativo
    Surgiu toda uma onda de literatura de “economia alternativa” com níveis diversos de qualidade.368 As metáforas singulares de Hazel Henderson para o sistema econômico estão entre as didaticamente mais divertidas.369

Tradicionalmente, o “bolo” da economia era dividido em três partes: o setor privado (que é a porção maior), o setor público e um setor informal (equivalente a 15% do total, representando o mercado “negro”, o tráfico de drogas e outras atividades econômicas ilegais). Contrastando com essa idéia simplificada de uma economia sem vínculos com as “externalidades” propomos centrar foco nas relações entre a economia e os demais fatores que constituem nossa sociedade (veja a figura 10.1).370

Campo econômico

Externalidades

Figura 10.1a
Concepção convencional da economia

Sociedade

Ambiente

Economia

Figura 10.1b
Concepção da OCDE

Economia
Sociedade
Biosfera e ambiente

Figura 10.1c
Nossa concepção

Figura 10.1 Papel da economia na visão da teoria convencional, da OCDE e na nossa 371

Dessa perspectiva, a economia de mercado do setor privado é apenas a “cobertura do bolo”, a camada externa, ela só se sustenta se estiver apoiada sobre os serviços que o setor público presta (como transporte, educação, aplicação de leis e sanções). E nenhum desses dois setores poderia operar sem as doações gratuitas da economia social cooperativa. Criar uma criança e educá-la para que se integre à sociedade e para desenvolver nela uma atividade pública ou privada faz parte do que Hazel Henderson denominou a “economia do amor”, a esfera da economia que subsidia secreta e permanentemente a economia oficial. O componente mais importante dessa economia do amor é, obviamente, a função desempenhada pelo mundo natural de “patrocinar” a economia oficial, que sequer se dá ao trabalho de reconhecer sua existência.

Outro tema tratado por Henderson é o “objetivo, em geral sacrossanto, do ‘pleno emprego’. Para os economistas e para os criadores das políticas públicas, esta frase se refere, na verdade, ao pleno emprego ‘dos chefes de família’ (ou seja, só da metade da população adulta, usualmente os homens)”. O trabalho das mulheres e crianças, seja nas suas casas, ou como voluntários nas suas comunidades não é levando em consideração. “Tudo isso representava um subsídio enorme para os setores medidos pelo PIB. Esta sustentação secreta desapareceu quando a mobilização gerada pela guerra e a necessidade de dinheiro fizeram com que as mulheres se incorporassem à força de trabalho remunerada. […] Poucos se atreveram a questionar se a economia industrial na verdade estava em condições de empregar e remunerar todos os adultos capacitados para o trabalho, ou se isto causaria um colapso, ou criaria inflação monetária, devastaria as zonas rurais e, por deixar desatendidas as crianças, os idosos e os enfermos, destruiria a vida familiar e comunitária.”372

De repente, as tediosas definições técnicas do PIB ou do nível de emprego revelam um conjunto de cursos de ação política e social ocultos que a um século atrás, quando estes conceitos foram definidos, muito possivelmente eram considerados tão evidentes que nem se julgou necessário mencioná-los. Nos últimos anos, até o Banco Mundial começou a contemplar estes fatos, e ele hoje afirma que o PIB tradicional descreve uma realidade parcial e enganosa, que não leva em conta o grande caudal de receitas não monetárias e os aportes da natureza.

  1. A Metáfora da biologia
    A matemática e a física foram as “ciências modelo”, a metáfora ideal, meta de todo o esforço do progresso cientifico dos últimos dois séculos. Mas isto agora começou a mudar. “O predomínio da física matemática como a ciência das ciências, como o núcleo exemplar do progresso cientifico em geral, que ela constituiu desde o século XVII, agora está terminando. O novo pólo é o das ciências da vida, das linhas de investigação que partem da biologia e da química molecular, da bioquímica, da biogenética (…) Estas linhas agora parecem se desenvolver de forma radial e em espiral em direção a todas as áreas de investigação científica e filosófica, como ocorreu com a física de Descartes e de Newton.”373

As metáforas para o pensamento econômico fornecidas pela bióloga Elisabet Sahtouris são, por este motivo, particularmente relevantes. “Como especialista em biologia da evolução, eu vejo a globalização como natural, inevitável e até mesmo desejável. É um processo em pleno andamento e irreversível. De alguns aspectos dela, nós estamos participando bem e de forma cooperativa, como nossos sistemas postal, de telefonia, e de transporte aéreo globais, mas não do aspecto mais central e importante da globalização – a economia – que atualmente está sendo praticada de uma forma que ameaça a existência de toda a nossa civilização. […] O processo evolucionário nunca se desenvolve bem até que os interesses individual, comunitário, ecossistêmico e planetário estejam sendo satisfeitos simultaneamente de com razoável harmonia. Este é um aspecto da evolução biológica que infelizmente não tem ganhado relevância e, por este motivo, não faz parte do nosso banco de memes (gens sociais). Por mais que sejamos espirituais, nós humanos somos inescapavelmente criaturas biológicas e poderíamos nos beneficiar muito das lições já aprendidas nos quatro bilhões e meio de anos da dança improvisada que chamamos evolução. O que impede as suas células ou os seus órgãos de, ao buscar seu auto-interesse de forma competitiva de maneira que relativamente poucos “vençam” e a maioria “perca”? A resposta óbvia é que eles fazem parte de uma criatura –multicelular – cooperativa , uma entidade integral que começa como uma única célula, mas é mais que a soma de todas as células clonadas da primeira. Se fôssemos uma espécie inteligente – e eu suspeito que seres de outro planeta não nos considerariam inteligentes, dada a nossa conhecida destruição do sistema que dá sustentação à nossa vida e nossos antagonismos ridiculamente juvenis, acerca de o que pertence a quem – estaria óbvio para nós que a atividade humana atingiu um nível perigoso. A cooperação precisa restaurar os desequilíbrios da competição agressiva e da acumulação, se quisermos evitar a nossa extinção junto com a de dezenas de milhares de outras espécies que estamos eliminando do jogo a cada ano.”374

Ela adiciona que tanto o comunismo como o capitalismo têm em comum o fato de serem reprovados no teste de robustez biológica dos sistemas. O modelo comunista falha ao partir do princípio que todas as células ou órgãos estão subordinados ao todo e não devem tomar iniciativas por conta própria. O corpo entende a função das diferenças e da iniciativa. Quanto ao capitalismo, ela argumenta o seguinte: “Considere a economia do mundo e imagine que é a economia de um ser vivo como o seu corpo. Pense o que aconteceria no seu corpo se a matéria-prima células do sangue dos seus ossos fosse extraída pelo ‘norte industrializado”, isto é, pelos pulmões e o coração, e transportada aos centros de produção e distribuição nos quais o sangue é purificado e recebe oxigenação para se tornar um produto útil. Imagine que então seja anunciado que o sangue deverá ser distribuído do centro cardíaco aos órgãos que podem pagar. O que não for comprado é descartado como excedente ou armazenado até que aumente a demanda no mercado. Quanto tempo o seu corpo poderia sobreviver nesse sistema? […] logicamente metáforas têm limites e não estou sugerindo nem por um momento que devemos imitar submissamente modelos baseados no corpo humano. Mas a metáfora do corpo é melhor que as metáforas mecânicas, não realistas, de sociedades perfeitas funcionando como máquinas bem lubrificadas. Corpos são algo que todos temos em comum, independentemente das nossas visões de mundo ou das nossas convicções políticas ou espirituais e eles exemplificam as principais características e princípios de todos os sistemas vivos saudáveis, sejam células, corpos, famílias, comunidades, ecossistemas, nações ou o mundo todo.”375

  1. A Metáfora do cérebro
    A ilustração a seguir representa outra metáfora biológica, a concebida pelo especialista em neurologia, Roger Sperry, para o cérebro humano. Ele afirma que os dois hemisférios cerebrais tendem a se especializar nas suas funções (figura 10.2).

Nesta interpretação, o hemisfério esquerdo do cérebro opera predominantemente de forma linear, lógica, hierárquica e sequencial. Este processo está representado pelo cone hierárquico à esquerda na ilustração inferior. Já o hemisfério direito opera principalmente de forma intuitiva, imaginativa, integrativa e holística, representada pela rede de nós. Embora esta visão da especialização dos dois hemisférios do cérebro não deva ser levada aos extremos, ela ainda assim nos dá um insight interessante sobre uma possível “pré-condição” para as diferentes formas de se interpretar o mundo. Nesta visão, os sistemas econômicos prevalecentes foram interpretados até agora exclusivamente enquanto relevantes para as abordagens do lado esquerdo do cérebro.

linear lógico analítico factual organizado sequencial verbal
intuitivo imaginativo espacial emocional simultâneo holístico

Funções típicas dos hemisférios esquerdo e direito do cérebro
Organização holística: estruturas e funções lineares e circulares

Figura 10.2: Os dois hemisférios do cérebro humano e suas funções 376

  1. O Ponto de vista Mitológico
    A mitologia grega tem uma narrativa maravilhosa que ilustra as consequências de se buscar entender um aspecto da realidade usando um só enfoque. É a história do “toque mortal do rei Midas.” Midas, do reino de Lídia, desejou que tudo o que ele tocasse virasse ouro e Dionísio concedeu a ele seu desejo. No início, isto parecia ser uma grande ideia: ele começou rapidamente a transformar pedras e móveis do seu palácio em um tesouro incrível. Mas então chegou sua filha e quando ele tentou abraçá-la para compartilhar com ela seu contentamento, ela se transformou em uma estátua de ouro também. E quando ele tentou comer, tudo o que ele tentava engolir se tornava ouro. Assim, “o homem mais rico do mundo” acabou morrendo só e faminto.

“Qualquer organismo que destrua o que considera ser um outro, sem se reconhecer nesse outro, alicerça firmemente sua própria destruição” – Edward E.Sampson (especialista em cibernética)377

  1. O Ponto de vista da filosofia ocidental
    “Macho e fêmea os criou. Disto aprendemos que qualquer imagem que não contenha macho e fêmea não é uma imagem elevada e verdadeira”. O Zohar 378

Várias autoridades atribuem a Richard Tarnas “a melhor história intelectual do pensamento ocidental” cobrindo do ano 700 AC até hoje. Ele diferencia dois níveis nos quais uma nova integração precisa ocorrer: o das “meta-narrativas” (a “narrativa por trás de todas as narrativas”) e o equilíbrio entre o masculino e o feminino na sociedade

As Meta-Narrativas de Hoje
Segundo Richard Tarnas379, dois mitos centrais constituem as meta-narrativas do mundo ocidental moderno. “Meta-narrativas” são a “grande narrativa” por trás de todas as outras narrativas que contamos a respeito de nós mesmos e do mundo. A primeira meta-narrativa considera a evolução humana uma conquista histórica em direção ao “Progresso”. Ela vê a história avançando de um estágio “primitivo” caracterizado por “ignorância, limitações e escassez,” para um futuro “moderno” com “um conhecimento enormemente ampliado, liberdade e bem-estar.” Na versão atual deste projeto de Prometeu, tudo é possível por meio da ciência, da tecnologia e da democracia individualista.

A segunda narrativa é o avesso da primeira, uma descrição exata do mesmo processo acima, mas vista da perspectiva dos perdedores. É a meta-narrativa que teve início cerca de 150 anos atrás – a ideia de “declínio” – que nasceu assim que a de “progresso” se popularizou380. Ela deriva da metáfora da “queda”, do momento em que nos apartamos da realidade “sagrada” e de seus valores tradicionalmente associados a ela. A atual versão da narrativa do declínio inclui a perda do significado, da alma e um iminente colapso ecológico.

Tanto a narrativa Heróica como a do Declínio foram criadas uma pela outra, elas são os dois lados de uma mesma realidade. Elas são a mesma realidade olhada de dois pontos de vista válidos. As duas visões se complementam mutuamente. Tarnas afirma que “O oposto de uma grande Verdade é outra grande Verdade”. Nossa tarefa é manter estes dois opostos, que combinados criam um vaso mais rico de possibilidades e insights, “o vaso no qual o divino se manifesta.”

Com os dados disponíveis podem ser construídas muitas visões de mundo diferentes. Uma delas é que estamos em uma corrida contra o tempo entre uma iniciação coletiva e a autodestruição da espécie – a Máquina Compactadora do Tempo (capítulo 1) é um exemplo deste tipo de concepção. A outra narrativa é que já saímos do útero, estamos em pleno trabalho de parto: nossa crise é o nascimento de uma nova civilização.

Masculino e Feminino
Após 400 páginas de levantamento das ideias de quase exclusivamente “machos escrevendo para outros machos,” Tarnas conclui que hoje está ocorrendo uma mudança sem precedentes entre o que ele chama de “masculino” e “feminino”. [Obs.: aqui, “masculino” entre aspas não se refere ao macho ou ao homem, mas a o que os taoístas chamam de “Yang”. E “feminino” se refere ao conceito oriental de “Yin”. Logicamente um homem típico tende a se identificar mais com os traços Yang, mas todos os humanos e humanas têm características “Yin” e “Yang” em diferentes graus em momentos diferentes.] Tarnas conclui em seu Epílogo: “a evolução do pensamento ocidental foi fundada na repressão do feminino – na repressão da consciência não diferenciada unitária, numa progressiva negação da alma do mundo, da comunidade do ser, daquilo que tudo permeia, do mistério e da ambiguidade, da imaginação, da emoção, do instinto, do corpo, da natureza, da mulher – de tudo o que o masculino identificou projetivamente como sendo o outro.”381

“Este é o grande desafio do nosso tempo, o imperativo evolucionário de que o masculino veja mais além e supere sua arrogância e unilateralidade, para tomar posse da sua sombra inconsciente, escolhendo entrar em um relacionamento fundamentalmente novo de reciprocidade com o feminino em todas as suas formas. O feminino então deixa de ter que ser controlado, negado e explorado e se torna algo plenamente reconhecido, respeitado e auto-determinado. […] creio que o desenvolvimento interior ininterrupto do ocidente e o ordenamento masculino da realidade, incessantemente inovador, gradualmente levou, em um movimento dialético imensamente longo, a uma reconciliação com a unidade feminina perdida, a um casamento profundo em muitos níveis do masculino com o feminino, uma união triunfante e curadora. E considero que muitos dos conflitos e confusões da nossa era refletem o fato de que essa saga evolucionária agora pode estar atingindo seu ápice. Porque nosso tempo está lutando para gerar algo fundamentalmente novo na história da humanidade. […] Algo que afirma os ideais indispensáveis expressos pelos apoiadores do feminismo, da ecologia, da ancestralidade e de outras perspectivas contraculturais e multiculturais. Mas eu gostaria de defender, também, aqueles que valorizaram e deram sustentação ao núcleo da tradição ocidental, pois acredito que ela – toda a trajetória desde os poetas épicos da Grécia e dos profetas hebreus, o longo esforço intelectual e espiritual de Sócrates e Platão, de Paulo, Agostinho, Descartes, Kant e Freud – que este estupendo projeto ocidental deve ser visto como parte necessária de uma grande dialética e não simplesmente rejeitado como um complô imperialista chovinista. Esta tradição não somente conseguiu a diferenciação e a autonomia fundamentais do ser humano, imprescindíveis para uma síntese tão grandiosa, ela, além disto, criou meticulosamente as condições para a sua própria auto-transcendência. As duas perspectivas, a masculina e a feminina, são defendidas aqui e transcendidas, reconhecidas como parte de um todo maior; pois uma polaridade requer a outra para sua plenitude. E a síntese gera algo que a ultrapassa: ela traz uma abertura inesperada a uma realidade maior, que não pode ser vislumbrada antes de chegar, porque esta nova realidade é, ela própria, um ato criativo.”382

Resumindo, o que Tarnas vê para o ocidente é o fim da dominação do Yang após no mínimo 27 séculos. O que ele identifica agora não é um deslocamento da dominação do Yang para o Yin, mas uma nova síntese cooperativa na qual ambos são honrados em seus próprios termos. O quadro “Um Mundo em Equilíbrio” do capítulo 1 descreve uma sociedade desse tipo.

  1. O Ponto de vista do humanismo: Dinheiro e Crise de Significado
    “Nada humano me é estranho”
    Provérbio Latino Clássico

Há muitas formas de definir os seres humanos. Uma delas – o “Homem Econômico” convencional –, cujas características remontam a Adam Smith, captura uma parte, mas não as ações e motivações humanas como um todo. A tabela a seguir compara duas maneiras de ver esta questão.

O ponto de vista do humanismo

Homem econômico
Os humanos são seres com necessidades, que tomam decisões racionais, e buscam seu auto-interesse.
Homem relacional
Os humanos são seres que têm desejos e temores, são guiados pelas suas emoções e paixões, eles desenvolvem significados mediante as relações que estabelecem.

O “homem relacional” amplia muito a definição do que importa no comportamento humano. Note que o significado sempre é derivado de relações – pode ser com filhos, com Deus, com um parceiro, com a natureza, o país, a comunidade, etc. Não surpreende, portanto, que viver em um sistema monetário que promove a eficiência dos intercâmbios às custas da reciprocidade e do espírito comunitário (capítulo 6), provoca, também, uma crise cada vez maior do sentido da vida. É por isto que é tão válida a observação de Jacob Needleman “A única coisa que o dinheiro não compra é o sentido”. 383

O ponto de vista humanista integra as concepções econômica e relacional, como descrições legítimas e simultaneamente válidas dos seres humanos e suas tendências. Sempre que se parte da premissa que uma dessas duas abordagens é a única correta, o resultado é uma perigosa cegueira. As questões referentes ao dinheiro em particular são um domínio no qual é importante manter os dois enfoques simultaneamente, porque o dinheiro é o espaço no qual as necessidades, desejos, receios, a racionalidade e as paixões tendem a se interpenetrar muito intimamente. Por exemplo, se pressupomos que nos mercados financeiros os tomadores de decisões são puramente racionais, fica impossível entender os ciclos crônicos de auges e colapsos financeiros. Pode-se demonstrar que todos os auges e os colapsos são patologias monetárias coletivas. 384

Visto da perspectiva humanista fica mais claro o papel das moedas que fortalecem a dimensão das relações humanas e complementam os impulsos de competição e do interesse pessoal.

  1. O Ponto de vista Taoísta: O tudo é questão de equilíbrio
    “Toda dualidade explícita é uma unidade implícita”
    Alan Watts385

Nossa cultura moderna, nossas fontes de informação, nossos valores, até as palavras que usamos para nos comunicar e para pensar, sempre tendem a polarizar as coisas. Sempre que fazemos uma distinção, “ela repousa sobre uma premissa de oposição e uma negação lógica.”386 Por exemplo, em todas as línguas indo-europeias quando pensamos em “frio,” está automaticamente implícita a idéia de “não quente”. A palavra “saúde” implica ausência de doença, etc.

Já os taoístas nunca dicotomizam seus opostos, como nós. Por exemplo, a polaridade mais conhecida da cultura taoísta é o yin-yang. Tendemos a traduzir este conceito oriental como uma expressão dos opostos que nos são familiares. E, por este motivo, partimos da premissa que yin-yang representa oposições: preto-branco, frio-quente, noite-dia, macho-fêmea, etc. Nossa interpretação normal é que o preto exclui o branco, frio exclui quente, noite é quando não é dia, etc. Os taoístas vêm o yin-yang como conectados um ao outro, como partes necessárias para que o todo seja possível. É por isto que eles nunca se referem ao Yin ou ao Yang, mas sempre ao yin-yang. Assim eles indicam a ligação entre as polaridades, e não o espaço que as separa. O Yin só é preto se o Yang for branco, só é frio se o Yang for quente, só é noite se o Yang for dia, etc. Esta diferença na visão de mundo é sutil, mas é crucial. Os taoístas consideram ao mesmo tempo o todo e as partes. Cada parte existe somente em função da interface que ela cria no todo. Nós, ao contrário, tendemos a considerar uma das partes e opô-la a uma outra.

A mesma distinção se faze nas artes marciais, onde as tradições orientais falam de “olhos suaves” que possibilitam ver ao mesmo tempo o adversário e as circunstâncias. O flyfishing (pesca com isca artificial) exige “olhos suaves” semelhantes, abarcando o ponto onde a linha cai e todo o rio, diferente dos “olhos firmes” necessários para a pesca com isca, na qual se centra a atenção unicamente na isca. Pessoas que desenvolvem a capacidade de observar pássaros ou baleias descrevem exatamente o mesmo processo. Resumindo, os taoístas praticam flyfishing, enquanto nós, a começar pelo nosso idioma, tendemos a ficar travados na pesca com isca (veja o quadro a seguir sobre Lao Tsé).

Lao Tsé para o século XXI
O taoísmo foi fundado pelo sábio chinês Lao-Tsé, sobre quem há muito poucos dados históricos. A tradição o descreve como o curador da biblioteca do imperador em algum ponto do século VI AC. Quando já estava idoso, contrariado com as chicanas da corte imperial, abdicou de seu posto e decidiu viver em reclusão, deixando para trás a maior parte dos seus pertences. Montado sobre um búfalo d’água ele ia partindo, quando um guardião do portal da cidade lhe pediu se podia por favor resumir tudo o que havia aprendido em uma vida toda passada com as melhores coleções de livros do império. Diz-se que Lao-Tsé escreveu imediatamente o mais breve tratado do bem viver que existe: o Tao Te Ching, com somente 5.000 ideogramas. (Na verdade, até isto é considerado lenda, hoje, pois as pesquisas mostram que esse texto não foi escrito antes do século V AC.)
Ele inicia com “O Tao que pode ser dito não é o Tao verdadeiro. O nome que pode ser pronunciado não é o Nome Eterno.” Em outras palavras, ele está dizendo que a língua é a primeira barreira que nos impede de conhecer o Caminho. Ele insiste na importância de viver em um fluxo equilibrado, em valorizar tanto o feminino como o masculino, em igualdade entre homens e mulheres. Ele enfatiza a intuição, a relação com a natureza e o silêncio. Lao Tsé foi um contemporâneo, mais velho, de Confúcio, na época um professor jovem, ambicioso e compenetrado. Confúcio propôs que os homens devem aprender, primeiro, a controlar seus desejos, depois, suas esposas, e em terceiro lugar, seus filhos. Ele formalizou o sistema de controle patriarcal da família na China, enfatizou a hierarquia, o esforço intelectual por meio da razão e uma leitura aprofundada dos clássicos. Tudo isto era diametralmente oposto à visão de mundo de Lao Tsé.


Na história da China observamos a alternância entre as prioridades associadas com Lao Tsé e com Confúcio. Por fim, 1800 anos depois da morte de ambos, sob a influência intelectual do sábio neo-confuciano Chu Shi (1130-1200 dC) o confucionismo venceu decisivamente durante a dinastia Sung, tornando-se o sistema oficial na China até que o comunista Mao-Tsé-Tung assumiu o poder em 1949.

Defendo que agora temos mais a aprender de Lao-Tsé que de Confúcio, pelo menos durante o período de transição em que estamos.

Por exemplo, quantos de vocês leram corretamente o titulo desta seção “o tudo é questão de equilíbrio.” Você leu automaticamente “tudo é questão de equilíbrio” que tem um significado diferente? Ou percebeu e decidiu que se tratava de um erro?

Se este texto fosse escrito em ideogramas chineses, os leitores iriam entender imediatamente a que estou me referindo: o todo existe somente devido ao equilíbrio entre as duas partes. O símbolo clássico do T’ai Chi ilustra “o tudo é questão de equilíbrio” com o negro e o branco criando um todo por meio da interação equilibrada entre os dois. Note que não somente um oposto dá forma ao outro, mas que no coração de cada um o outro está presente (o pequeno ponto branco no lado negro, e vice-versa). (Figura 10.3).

Uma forma humorada dessa interação é o trocadilho do monge budista que ao fazer um pedido de comida, diz: “Me faça um com tudo.”

Figura 10.3: Símbolo do T’ai Chi

O ponto aqui é ilustrar o poder subliminar da nossa língua que automaticamente nos faz ler o que esperamos, e não o que está escrito. Nossas palavras automaticamente nos fazem projetar e ver polaridades onde, na verdade, uma interação harmoniosa também pode estar presente, ou até ser predominante.

Além disto, o ponto de vista do taoísmo nos proporciona algumas distinções econômicas úteis, referentes às quatro formas que o capital pode assumir. Como seria de se esperar, o pensamento econômico tradicional reconhece a existência de somente duas formas Yang de capital: o capital físico (planta, equipamentos, edifícios) e o capital financeiro (ações, títulos, caixa e “propriedade intelectual”como patentes e marcas registradas). Ele, portanto, ignora o papel das duas formas Yin de capital: o capital natural (por exemplo água ou ar limpos, biodiversidade, etc.) e capital social (como solidariedade na família ou no grupo, paz, qualidade de vida, etc.). Esta negação é relevante pois o capital Yang simplesmente não sobreviveria sem o aporte permanente das formas Yin de capital.

Yang    Yin

Nível não material Capital financeiro Capital social
Nível material Capital físico Capital natural

E por último, a sabedoria taoísta nos alerta que as tendências de um Yang dominante de suprimir a outra polaridade é perigosa para o todo e em última instância mortal para o próprio Yang. 387

  1. O Ponto de vista do sistemas integrados
    As abordagens sistêmicas envolvem identificar quatro aspectos de uma dada realidade: sua estrutura (isto é, os atores, individuais ou coletivos), os processos (as interações entre os atores), as regras (por exemplo as leis da natureza ou humanas que governam o sistema) e o contexto (interações do sistema com outros sistemas e o ambiente ao redor). A abordagem sistêmica busca integrar tantos aspectos relevantes quanto for realisticamente possível, reduzindo ao máximo o que é considerado contexto.

Neste ponto, vou adotar o enfoque sistêmico para tratar de dois tipos de sistemas – a relação entre governança e dinheiro por um lado, e os conceitos taoístas yin-yang por outro – e então vou combinar os dois.

Governança e Dinheiro
Sempre houve uma relação entre valores, governança, auto-determinação econômica e dinheiro.
A melhor forma de explicar esta relação é com a ilustração abaixo (figura 10.4)

Visão de mundo e valores    

Governança Dinheiro
Auto-determinação econômica

Figura 10.4 Relação entre Valores, Governança, Auto-determinação econômica e Dinheiro

Visão de mundo e valores dão forma ao tipo de governança que uma sociedade desenvolve: o exemplo histórico mais evidente é a elaboração da constituição dos Estados Unidos em consequência dos debates entre os Pais Fundadores, que pela obra “O Federalista” se sabe que eram bem conscientemente imbuídos de valores. Que eu saiba, a concepção de um sistema monetário nunca teve a vantagem de ter um debate público tão aberto e consciente como esse, ao contrário, os sistemas monetários são na sua maioria saturados com valores e prioridades inconscientes. Governança e sistemas monetários, por sua vez, definem, em grande medida, o grau de auto-determinação da sociedade – ou do grupo que criou a governança e os sistemas monetários – e com isso, eles perpetuam sua posição sócio-econômica.

Este mecanismo funciona de modo inverso, também. Eu demonstrei anteriormente que os sistemas monetários reforçam ou inibem continuamente certos valores. Um exemplo disto são nossas moedas convencionais que ensejam a competição (ver capítulo 2) e contribuem para desagregar comunidades (capítulo 6). A reafirmação destes valores e dos segmentos da sociedade que se beneficiam de um poder econômico cada vez maior por sua vez influenciam os sistemas de governança. Assim, sempre que há uma mudança em algum destes quatro domínios, é sempre útil verificar o que acontece com os outros. É a convergência de mudanças nestes quatro campos o que determina se a mudança será ou não estável no longo prazo. Apliquemos agora esta abordagem a dois casos significativos de transformações históricas: a Revolução Industrial e a mudança que está ocorrendo no mundo hoje.

• No caso da Revolução Industrial, mudanças nos quatro domínios afetaram tanto as elites anteriores (a aristocracia agrária) como os pobres (os camponeses). Foram estabelecidos novos sistemas de governança ao mesmo tempo em que o poder econômico mudava de mãos. Especificamente, os estados- nação substituíram os reinos constituídos com base no “direito divino”; e as moedas deixaram de ser cunhadas pelos monarcas e passaram a ser geridas por bancos centrais nacionais. Houve, e sempre haverá, muito debate entre historiadores sobre qual das quatro variáveis foi a causa da mudança, mas, para nós, o que realmente importa aqui é notar, simplesmente, uma interação complexa que acabou levando todas as quatro a uma nova conformação, coerente e estável, do moderno estado-nação.
• Hoje, o sistema econômico dominante no mundo está sofrendo sua maior mutação desde o início da Era Industrial. A passagem para a Era da Informação promete afetar de forma similar no mínimo parte das velhas elites e dos novos pobres (os trabalhadores menos capacitados da indústria e do setor de serviços). Novamente estão surgindo novos sistemas de governança: o poder está sendo deslocado para instituições como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e para as corporações transnacionais que fizeram lobbies para que isto ocorresse. E os mercados de câmbio globais totalmente integrados estão se tornando os verdadeiros centros de decisão do sistema monetário global.

Governança: Local e Global
Entretanto, há também todo um outro nível de governança que acaba de nascer. O enorme aumento da importância das organizações não governamentais no mundo inteiro é um sinal revelador. As inovações e tendências sociais mais significativas das últimas décadas – do movimento ecológico aos direitos humanos – não partiram de governos ou partidos políticos, mas de iniciativas autônomas de entidades sem fins lucrativos. E é mais reveladora ainda, a pesquisa de Carolyn Lukensmeyer, fundadora e presidente das organizações comunitárias America Speaks (Estados Unidos Falam) e America Discusses Social Security (Estados Unidos Discutem a Seguridade Social). Durante dois anos ela investigou a natureza do ativismo nos Estados Unidos na década de 90, comparada à da década de 60. Sua interessante observação mostra que, contrariando a opinião geral, na verdade, há mais ativismo agora que nos anos 60, mas ele é na sua maior parte invisível e é totalmente diferente. A tabela a seguir compara os dois períodos:

Característica Ativismo da década de 1960 Ativismo da década de 1990
Extensão geográfica Nacional Local
Orientação Contra algo ou alguém A favor de soluções
Alcance dos problemas Causa única (racismo, guerra do Vietnã) Causas múltiplas
Visibilidade Muita cobertura da mídia Pouca cobertura da mídia

Paradoxalmente, a tendência à globalização desencadeou uma tendência oposta no sentido de reforçar a governança local. Visto desta perspectiva, o aparecimento das moedas locais Yin é de fato tão somente a parte visível de um iceberg muito maior: a emergência de um novo sistema de governança de base. As pessoas já não confiam que o sistema nacional de governança irá (ou poderá) trazer soluções válidas para seus problemas e, por este motivo, começaram a se organizar no nível local para resolver algumas questões mais urgentes. Mas bem rapidamente passaram a incluir muitos outros problemas (indo desde o desemprego ao cuidado dos idosos e das crianças, até a restauração ambiental). As moedas complementares se encaixam como uma luva neste processo porque constituem uma ferramenta flexível e poderosa de mobilização dos recursos locais. Esta perspectiva mais ampla mostra a profundidade da importância das moedas complementares. Para estas comunidades elas são a ligação fundamental que permite atingir o mínimo necessário de auto-determinação econômica, algo que vai se tornar de vital importância para garantir auto-determinação no nível nacional, à medida que a economia Yang se globalize cada vez mais reduzindo o poder dos governos nacionais.

A coerência do yin-yang
Eu agora passo a integrar o vocabulário taoísta do yin-yang nos sistemas econômicos. Não por exotismo, mas porque tenho esperança de que esta terminologia nos faça lembrar de pensar de forma holística, ao invés de em polaridades como as embutidas em nossa consciência pelas nossas línguas Indo-Europeias.

Nós criamos coerências: sentimos, pensamos e percebemos as realidades segundo a coerência em que vivemos. Por exemplo, a crença em um Deus transcendental tende a aumentar muito a percepção de necessidade de certeza absoluta e autoridade central. Em um mundo como esse, é de se esperar que haja hierarquia e competição para “subir degraus”. Mais ainda: o modo de pensar mais provável é o racional, analítico, lógico e linear. O mundo será visto como plenamente explicável através de causas e efeitos e as partes explicam o todo. Além disto, tende a prevalecer uma mentalidade tecnocrática e pró-crescimento.

Colocado de forma mais geral: uma coerência Yang plasma os pensamentos, ações e emoções desde a percepção de Deus e do mundo até as minúcias do dia a dia. A ilustração abaixo mostra as coerências yin-yang. Ela pode ser lida de cima para baixo, ou horizontalmente para entender o que os taoístas chamariam os contrates conectivos entre as duas visões de mundo.

Coerência yang
Deus Transcendental
Busca de certeza
Autoridade Central
Hierarquia funciona melhor
Competição
Pensamento Racional, Analítico, Lógico,
Mental, Linear
Causa e Efeito
Reducionismo – partes explicam o todo
Maior é melhor
Predomínio da tecnologia
Coerência yin
Divindade imanente
Compreensão da ambivalência
Confiança mútua
Igualitarismo funciona melhor
Cooperação
Intuição, Empatia, Paradoxos,
pensamento físico-emocional, não linear
Sincronicidade
O todo explica as partes (Holismo)
Menos é mais
Predomínio das habilidades interpessoais

Figura 10.5 Esquema das coerências yin-yang

Provavelmente, por mais de 5000 anos – e com certeza nos últimos 2700 estudados por Tarnas – as sociedades ocidentais tenderam a reconhecer a legitimidade de umas das polaridades: a coerência Yang. Ela esteve incorporada no sistema de controle social patriarcal em todos os aspectos da vida, desde as religiões organizadas até a ciência, do poder militar e da política às piadas do dia a dia. Trata-se de um viés tão onipresente que a superioridade da coerência Yang durante muito tempo foi considerada uma lei natural. A própria capacidade de observar o mundo está influenciada por ela.

. Por exemplo, nossa habilidade de observar o comportamento dos animais “objetivamente” está comprometida (veja quadro).

Comportamento dos Animais e as coerências yin-yang
Apresentamos aqui os padrões de comportamento social de duas espécies diferentes de “caçadores sociais” (animais que caçam em grupos). Uma é muito admirada e outra depreciada em nossas narrativas coletivas.
• no primeiro caso, o animal dominante no grupo não participa da caça, mas é o primeiro a comer. Isto chega a tal extremo que a mal-nutrição constitui a principal causa de mortalidade dos indivíduos mais jovens. Quando um dos animais está ferido, o grupo tende a abandoná-lo.
• no segundo caso, o animal dominante lidera ativamente a caça, mas os mais novos comem primeiro. Quando um animal está ferido, ele é alimentado e cuidado pelo grupo. O primeiro caso é o leão, espécie na qual o indivíduo alfa é o macho O segundo caso é a descrição dos cães selvagens e das hienas, em ambas as espécies o indivíduo dominante é uma fêmea.388


Como é possível que nas sociedades orientais e africanas haja tantos emblemas e histórias positivas sobre leões, e nenhuma sobre hienas e cães selvagens?

Economia Integral: Economias Yin e Yang complementares
Os conceitos das coerências yin-yang (figura 10.5) podem agora ser sobrepostos com os circuitos econômicos cooperativo e competitivo (figura 6.2). Esta sobreposição (figura 10.6) ilustra como um ciclo econômico Yin plenamente desenvolvido é um complemento necessário para a economia Yang tradicional; como tanto o lado Yang como o lado Yin da economia, podem ser, nas palavras de Tarnas “defendidas aqui e transcendidas, reconhecidas como parte de um todo maior; pois uma polaridade requer a outra para sua plenitude” 389

Moedas nacionais
(escassas, competitivas)

Moedas complementares
(suficientes, cooperativas)
Economia yang
(capital financeiro)

Economia yin
(capital social)
Transações comerciais

Intercâmbios comunitários
Capital físico

Capital natural

Figura 10.6 A Economia Integral e os circuitos econômicos complementares yin-yang

A forma humana no centro da figura representa nossa energia coletiva, todas as nossas atividades econômicas (figura 10.6). O circuito à direita dela (à esquerda na figura) é a economia yang, movida à base de moedas nacionais normais, que geram competição automaticamente entre os participantes conforme vimos no capítulo 2 (em “O décimo primeiro círculo”), esta é a economia dominante. Para a maioria dos economistas, é o único sistema econômico que existe: o que reconhece o capital físico e tem como meta gerar capital financeiro.

O circuito à direita incluiria ou as economias da dádiva de antigamente, ou as moedas emergentes hoje, cooperativas, que fortalecem o espírito comunitário. Ele representa o que vimos na figura de Hazel
Henderson como o componente Social Cooperativo e a economia não monetizada (figura 10.1b). Esta economia é invisível, na sua maior parte, para os economistas de hoje, mas se ela fosse sistematicamente incentivada, ao invés de destruída, como tem sido o caso, quase invariavelmente no passado, ela pode crescer até se tornar uma parte significativa do sistema. Ela poderia no momento oportuno equilibrar o peso das atividades yang. Ela reconhece o capital natural e sua meta é gerar capital social.

Se de fato, na Era da Informação, o processo do desemprego tem um componente estrutural, eu defendo que é do interesse de todos, incluindo os participantes da economia yang, que a economia yin se desenvolva mais vigorosamente por todos os meios disponíveis, incluindo incentivar formalmente as moedas complementares; até mesmo com incentivos fiscais. Por que?

Você se lembra do circulo círculo vicioso do desemprego mostrado no capítulo 5? Quando uma quantidade crescente de pessoas está estruturalmente desempregada, eles não simplesmente desaparecem. Eles necessariamente se tornam “economicamente irrelevantes,” e por este motivo um foco permanente de potencial violência e problemas para o restante da sociedade, o que pode ter um custo muito alto, na verdade, (em “pensões vitalícias” nas prisões). Ou eles precisam, como propõe Jeremy Rifkin, receber apoio dos contribuintes de impostos da economia yang (veja a figura 10.7). De uma forma ou de outra, a economia yang está atirando no próprio pé sempre que tenta suprimir as iniciativas de tipo yin, como tem sido sua tendência ao longo da história. Ao bloquear a economia yin e moedas yin, insistindo no monopólio da economia yang, ela se obriga a transferir recursos via impostos, para a economia yin. Do ponto de vista da economia yin, estas transferências provaram ser invariavelmente insuficientes para as necessidades atuais. Não faria mais sentido, para ambos os lados, possibilitar que a economia yin prospere plenamente, com moedas complementares próprias e suficientes?

Moedas nacionais
(escassas, competitivas)

Economia yang
(capital financeiro)

Transações comerciais
Impostos
Entidades sem fins lucrativos

Intercâmbios comunitários

Tributação

Subsídios

Figura 10.7 A abordagem convencional em um sistema de moeda única

[note que no espanhol o titulo da figura está errado]

Cada vez mais pessoas tomam consciência da necessidade de capital social em uma sociedade saudável. As moedas cooperativas são simplesmente uma ferramenta para fomentar o capital social. Da mesma forma, exatamente, como o circuito yang é onde se fomenta o capital financeiro, no circuito yin se cultiva e se desenvolve o capital social. Está na hora de reconhecer que ambos os tipos de capital – o financeiro e o social – são indispensáveis para que a atividade humana prospere.

Resumindo: o propósito da Economia Integral é produzir prosperidade integral. Por este motivo defino prosperidade não como acumulação de dinheiro. Uma riqueza integral só se desenvolve quando os quatro tipos de capital – o natural, o social, o financeiro e o físico – estão em um equilíbrio adequado. Confundindo riqueza com capital financeiro exclusivamente, corremos o risco de acreditar que podemos gastar nosso capital natural ou nosso capital social indefinidamente. Mas abaixo de um certo nível de capital natural ou social, é óbvio que o capital financeiro deixa de ter importância: uma conta bancária gigantesca em meio à devastação de uma desordem social, ou de um colapso ecológico não serve de nada. É como diz o adesivo dos carros: “No Planet, No Business” (sem planeta, não tem negócios).

Esquema dos tipos de moedas complementares yin-yang
Um jeito útil de abordar os diferentes sistemas de moedas descritos neste livro é classificá-los segundo a polaridade yin ou yang, usando dois tipos de critérios:

• moeda escassa, que induz à competição / ou suficiente que promove cooperação;
• moeda fiduciária / ou moeda lastreada.

Só um lembrete: moedas fiduciárias são as que precisam de uma autoridade central para serem criadas e
mantidas. As moedas lastreadas são criadas por qualquer pessoa que possua um bem ou serviço usado como referência, e seu valor é garantido por esta mercadoria ou serviço.

Promove competência pela escassez
Promove suficiência pela cooperação
Fiduciária, garantida pela autoridade legal
Moedas nacionais atuais
Horas Íthaca
Lastreada, garantida por um padrão de referência externo

  • Milhas
  • Trocas
  • e-gold
  • MMR

Sistemas de créditos mútuos

  • dólares de tempo
  • LETS
  • ROCS

Figura 10.8 Esquema dos tipos de moedas yin e yang

[aos revisores: ver como saiu a ilustração impressa na edição argentina]

As moedas que reúnem as duas características yang, que induzem à competição e são fiduciárias (e por este motivo implicam uma autoridade central) serão chamadas moedas “fortes yang”. (Note que aqui estou usando a terminologia tradicional taoísta e “forte” não significa “bom”, assim como “fraco” não implica “ruim”.) Por este critério, todas as nossas moedas nacionais tradicionais são moedas “fortes yang”. Já as moedas que mantém uma oferta limitada mas não requerem a criação de uma forte autoridade central (como os crédito de escambo ou a Moeda de Referencia Global) poderiam ser chamadas moedas “fracas yang”.

Quanto às moedas yin, as Horas Ithaca e todas as moedas fiduciárias exigem um controle centralizado por parte do emissor, mas, por outro lado são projetadas para promover a cooperação entre os participantes (são sistemas que, entre outras coisas, não incluem cobrança de juros). Elas serão chamadas aqui de moedas “fracas yin”. As moedas que reúnem as duas características: emissão descentralizada e incentivo à cooperação serão, logicamente chamadas moedas “fortes yin”. É o caso de todas as formas de moedas complementares de crédito mútuo como os LETS, os Dólares de Tempo, e os ROCS.

É importante repetir que os atributos “forte” e “fraco” não devem ser interpretados como juízos de valor, mas da forma taoísta tradicional. Eles indicam, simplesmente, as características yang ou yin de cada tipo de moeda. Cada uma tem sua importância e pode ser a moeda “ideal” em uma dada circunstância. Por exemplo, para fomentar o capital social, o melhor é uma moeda yin que induza à cooperação, enquanto para lidar com o comércio industrial global, é preferível uma moeda yang que gere competição. Esta ilustração também mostra a complementaridade recíproca das funções dos diferentes sistemas.

Com esse esquema percebemos, também, como as relações mudam conforme as moedas. Toda moeda tema ver com as relações geradas. “Tudo o mais constante”, isto é, mantidas as demais variáveis, moedas diferentes tendem a induzir diferentes tipos de relações entre os usuários.

Para criar uma relação cooperativa, igualitária, yin, use tipos yin de moedas. Já as transações com moedas yang tendem a gerar relações competitivas, hierárquicas, perfeitamente apropriadas para certos contextos como o das empresas. Todos os tipos de relações têm sua função. Não há nada de mágico nisso. Quando a reciprocidade é intrínseca ao próprio processo da criação da moeda, e quando há uma disponibilidade de moeda em quantidade suficiente (condições que as moedas dos sistemas de crédito mútuo satisfazem) os intercâmbios tendem a ser mais compatíveis com a criação do espírito de comunidade (conforme vimos no capítulo 6). O esquema acima simplesmente ajuda a evitar confusões entre os tipos de moedas. Esta lógica não deve ser levada a extremos ridículos, como acreditar que bastaria dar uma moeda yin a uma gangue de assassinos para que se transformem em cordeiros. “Tudo o mais constante” é uma advertência fundamental aqui. Porém, quantas famílias aparentemente amorosas foram desunidas assim que as pessoas começaram a competir e disputar um recurso escasso? Antoine de Saint-Exupery, o célebre escritor francês; expressou esta dinâmica da seguinte forma:

“Se você quer que as pessoas briguem, jogue um osso para elas.
Se você quer que as pessoas cooperem, diga-lhes para construírem uma torre.”390

Capítulo 11

A Abundância Sustentável

“A História é uma corrida entre a educação e a catástrofe”
H.G. Wells (1866-1946)

“Como todas as mentes estão interconectadas, afirmar uma visão positiva pode ser a ação mais sofisticada que qualquer um de nós pode realizar”
Willis Harman (1918-1997)

“Mantenhamos o bom humor, lembrando que as desgraças mais difíceis de suportar são aquelas que nunca vêm.”
James Russell Lowell (1819-1891)

“Sejamos otimistas. Pessimismo é para dias melhores.”
Anônimo

A Abundância Sustentável é um cenário e seguirá o mesmo formato dos outros cenários descritos no capítulo 5. Nele são encaixadas todas as peças do quebra-cabeça identificadas até esse momento. Vamos explorar a Abundância Sustentável com “Uma Visita ao Campus da Universidade de Stanford”. Este relato ilustra os efeitos de três ondas que se sobrepõem na criação da Abundância Sustentável: uma Onda de Mudança de Valores, uma Onda de Informação e uma Onda Monetária. E concluindo, vamos analisar a relação entre a Abundância Sustentável e os outros cenários já descritos.

Uma Visita ao Campus da Universidade de Stanford
Outro dia, mexendo em algum dos controles desconhecidos da Máquina Compactadora do Tempo (Capítulo 1), devo ter feito alguma coisa errada e, de repente, aconteceu uma coisa muito inesperada, e acidentalmente acabei fazendo uma viagem no tempo e me vi no campus da Universidade de Stanford no primeiro dia do ano letivo. Veja com o que eu me deparei:

Relatório de uma viagem no tempo

Reconheci o lugar imediatamente – eu podia ver a emblemática Torre Hoover com os edifícios neo-hispânicos ao redor e sentir aquela atmosfera de entusiasmo e hesitação típica dos grandes grupos de calouros no primeiro dia de aula. Entrei no prédio do departamento de Economia. Um sinal no corredor em frente à porta da primeira sala de aula me deixou petrificado. Dizia:

2º Semestre 2020
Ecosofia 101

Foi aí que comecei a suspeitar de que forma eu tinha ido parar no futuro…
Na sala, uma mulher madura, muito atraente estava começando a aula.

“Há muito tempo atrás, as pessoas realmente se formavam em cursos como Economia, Administração de Empresas, Teoria Monetária, Psicologia, ou mesmo Sociologia e Ciência Política sem uma firme fundamentação em Ecosofia. Ao que tudo indica, naquela época não se tinha a consciência de que isto era tão perigoso como ter um “doutorado em estômagos”, por exemplo, sem qualquer compreensão sobre alimentos, circulação sanguínea ou sistema nervoso… A origem da palavra ‘ecosofia’ é similar à das palavras ‘ecologia’ e ‘economia’.”

Ela começou a escrever usando algo que me pareceu ser uma pequena caneta a laser e letras de luz iam aparecendo flutuando no ar em frente a três das paredes simultaneamente. Eu pensei “tecnologia holográfica a laser: só posso estar no futuro…” As palavras formaram três colunas bem nítidas:
Raízes Gregas
oikos = casa, lar;

sophia = sabedoria

logos = conhecimento

nomos = regra
Termo
contemporâneo

Ecosofia

Ecologia

Economia
Significado
Original

Sabedoria do lar

Conhecimento do lar

Regras do lar

E ela continuou: “A Ecosofia ensina como viver com sabedoria neste planeta. Como nossos construtos e nossas atividades econômicas, monetárias, de negócios, políticas, sociológicas, psicológicas e ecológicas interagem entre si e afetam nossa presença coletiva neste planeta. A ecosofia é o alicerce comum indispensável para todas estas áreas do conhecimento. Ela se ocupa da espécie humana dentro do contexto mais amplo, da biosfera dentro da qual somos interdependentes. A Ecosofia é somente um dos sinais de que nossa civilização passou da Idade Moderna para o que chamamos, agora, Idade da Integração. A principal semente desta transformação remonta às mudanças nas interpretações do universo físico, começadas há mais de um século. Exatamente da mesma forma como ocorreram as mutações nas visões de mundo anteriores – por exemplo a Revolução Copernicana, cinco séculos antes – é a interpretação do universo físico o que nos dá o indicador mais importante de mudança na civilização.

Por muitos séculos as pessoas viram a Mãe Natureza como uma extrapolação bem ordenada da mente humana. Descartes a viu como uma matéria desprovida de espírito que somente poderia ser apreendida através da análise de partes cada vez menores dela. Newton a viu como uma máquina inerte e bem comportada posta em funcionamento por Deus e governada por leis eternas, que poderíamos controlar quando as conhecêssemos. Tudo isto começou a mudar quando as teorias da relatividade e da física quântica, na primeira metade do século e as teorias de não dualidade e complexidade, na segunda metade, foram aceitas como interpretações válidas da realidade. Elas constituíram o modelo mental da nossa era. As obras de Einstein, Heisenberg, Bohr e mais tarde no século passado de Bohm, Feynman, Prigogine e das dezenas de estudiosos das teorias do Caos e da Complexidade foram, todas, marcos fundamentais neste processo.

As velhas metáforas de mundo sem alma, mecânico, de humanos como observadores separados, “objetivos”, foram substituídas por um mundo vivo e aprendendo, com o qual os humanos se comunicam e compartilham a responsabilidade da sua evolução. Algumas pessoas dizem que fomos forçados a essa nova visão de mundo para podermos lidar com questões mundiais como a poluição, o desmatamento, as mudanças climáticas ou os buracos na camada de ozônio. Outro catalisador chave da Integração foi um paradoxo, que surgiu quando uma das tecnologias mais yang de toda a Era Industrial – o computador – engendrou por o primeira vez um espaço perfeitamente yin no qual uma tal Integração poderia prosperar livremente. Estou me referindo à ciberesfera que sucedeu a velha Internet. O paradoxo salta ainda mais à vista quando pensamos que tudo isto foi desenvolvido inicialmente pelo exército dos Estados Unidos no final da Guerra Fria. As novas sinergias entre o mundo físico e o virtual fizeram surgir a Economia Integral. [lembrando, ciberesfera é o espaço virtual para o qual convergiram toras as tecnologias de comunicação tais como telefone, TV, computadores e sistemas de pagamentos em um todo coerente (capítulos 4 e 5).

A professora continuou “Para entender plenamente este processo, o modelo forjado inicialmente pelo antropólogo Teilhard de Chardin em meados do século XX, é muito útil.”

De repente, apareceu um diagrama flutuando nitidamente no ar em cores vibrantes diante das paredes brancas da sala. A professora se colocou entre o gráfico e a parede. Notei, também, nesse momento, que ela parecia estar se dirigindo a mais pessoas, não somente aos estudantes sentados ali. A idéia de alguma tecnologia de ensino à distância cruzou minha mente naquele instante.

[a ilustração da versão argentina está diferente da versão em inglês, usei a versão em inglês]
A visão de Teilhard de Chardin
(meados do século XX)

• Litosfera (de litos=pedra)
– massa inerte do planeta Terra

• Biosfera (bios = vida)
– todas as formas de vida
– de alguns pés abaixo da superfície até algumas centenas de pés na atmosfera

• Noosfera (nous=consciência)
– campo de consciência gerado pela humanidade
–evolui em direção ao ‘Ponto Ômega’)

• Ponto Ômega
– Consciência de Unidade de Tudo o que Existe
– destino final (?) desconhecido da evolução humana

Ponto Ômega
Noosfera
Biosfera
Litosfera

Ela se aproximou do diagrama e comentou: “Teilhard foi inspirado por um trabalho pouco conhecido chamado “A Biosfera” (escrito pelo biólogo russo V.I. Vernadsky em 1920), ele generalizou esse conceito visualizando a evolução do nosso planeta em esferas concêntricas. A primeira é a ‘Litosfera’, que representa toda a matéria inerte do planeta; depois a “Biosfera’ que reúne todas as formas de vida em uma “crosta de biomassa” mais ou menos densa que circunda a matéria inerte, representada aqui em verde. Ela se localiza fisicamente em uma camada fina que vai de uns poucos pés abaixo do solo até uns poucos milhares de pés acima da superfície do solo, incluindo a água e a parte inferior da atmosfera onde há pássaros, insetos voadores e micro-organismos. Foi só no século XXI que os humanos finalmente se livraram da ilusão de poder se desconectar da natureza. Só recentemente eles entenderam de fato que existe apenas uma forma de vida na Terra – a biosfera – e que toda a espécie humana tem uma função similar à de um órgão do nosso corpo.

A esfera seguinte, a Noosfera, representada aqui em azul – ela apontou para a zona quase transparente no diagrama – é mais etérica. É o espaço no qual todas as formas de consciência interagem, incluindo a consciência humana. O que Teilhard de Chardin viu foi que – à medida que a humanidade se tornou mais consciente da sua interdependência – ela também se tornou mais ciente da sua Unidade. Ele pensou que o objetivo da evolução humana seria o que ele chamou o “Ponto Ômega,” uma consciência cósmica de Unidade que respeita toda a diversidade. Mas o que Teilhard não vê é como pôde ocorrer este processo misterioso. Lembremos que ele escreveu sua grande obra por volta da época da Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra. É incrível que naquelas circunstâncias ele tenha conseguido até prever a direção do próximo passo da evolução. Bem, agora ficou óbvio para nós, o que vai acelerar esta transformação da consciência.

Tocando a borda delicada que separava a Biosfera da Noosfera no desenho, ela se transformou suavemente em uma linha violeta vibrante, de forma que ao final o diagrama terminou assim:

[a ilustração da versão argentina está diferente da versão em inglês, usei a da versão em inglês]

A visão de Teilhard de Chardin
A função da Ciberesfera

• Litosfera (de litos=pedra)
– massa inerte do planeta Terra

• Biosfera (bios = vida)
– todas as formas de vida
– de alguns pés abaixo da superfície até algumas centenas de pés na atmosfera

• Noosfera (nous=consciência)
– campo de consciência gerado pela humanidade
– evolui em direção ao ‘Ponto Ômega’

• Ponto Ômega
– Consciência de Unidade de Tudo o que Existe
– destino (final ?) desconhecido da evolução humana

– Ciberesfera = Espaço virtual no qual está ocorrendo
Integração em direção ao Ponto Ômega

Ponto Ômega
Ciberesfera
Noosfera
Biosfera
Litosfera

A ciberesfera – ela continuou – é simplesmente a ligação entre a Noosfera de Teilhard de Chardin e o seu destino, é o espaço virtual no qual a consciência humana que evolui para a Integração conseguiu se manifestar. Ela tem uma função similar à da litosfera em relação à biosfera; todas as formas de vida usam componentes químicos inertes da litosfera e os reorganiza para criar os sistemas de sustentação física da vida. Quando os criadores da informática no século XX pensavam que estavam apenas formando uma rede de computadores, na verdade estavam gerando uma dimensão adicional, um novo tipo de espaço.

As duas últimas décadas do século XX foram algo similar a o que os biologistas chamaram a Explosão Câmbrica 550 milhões de anos atrás, quando ocorreu uma mutação repentina na biomassa: a vida unicelular passou por uma explosão de diversidade biológica e teve início a proliferação de organismos complexos multicelulares. Centenas de milhões de anos mais tarde, o surgimento da fotossíntese e mais tarde ainda, a aparição simultânea da reprodução sexuada e da morte individual foram marcos igualmente significativos. A evolução, ao que tudo indica, passa por essas transformações quânticas. Deste ponto de vista, a vida entrou no espaço digital usando para isso a humanidade. Na ciberesfera, a vida está liberada das restrições da lenta recombinação molecular, pode viajar à velocidade da luz, até para fora deste planeta se necessário…”


Eu decidi ir à sala de aula ao lado, espiar o que me pareceu ser um curso introdutório de História da Economia.

“No início da Idade da Pedra, os humanos usavam a mesma ferramenta, literalmente, para muitas finalidades: um pedaço de pedra lascada servia para tudo, desde matar uma presa até limpar as unhas depois da façanha. Nos séculos XIX e XX, parece que tivemos uma fixação similar com tentar usar a mesma ferramenta monetária – as moedas nacionais – para fazer tudo, do comércio global ao pagamento do ensino e dos cuidados com idosos. Para usar outra metáfora, isto seria similar a pressupor que o sistema nervoso é a única via de transmissão de informação no corpo humano, ignorando a circulação sanguínea, o sistema linfático, e a multiplicidade das ligações bioquímicas.

Esta ideia de “mil e uma utilidades” nos sistemas monetários teve que ser abandonada, finalmente, quando as tecnologias de informação e de nano-produção passaram a garantir que a maioria da população deixasse de trabalhar na produção. Hoje, menos de 30% da população mundial ainda está em um emprego de período integral desse tipo. Com isso, as pessoas, na sua vasta maioria, foram liberadas para se dedicar a o que mais as apaixonar: suas ‘obras’, na maior parte das vezes nas suas comunidades locais, ou virtuais. As velhas moedas nacionais escassas nunca foram projetadas para dar sustentação a uma tal explosão de criatividade aleatória. Logicamente, muitos dos conceitos econômicos da Era Industrial tais como o Produto Interno Bruto (PIB) ou o desemprego tiveram que ser revisados. Eles surgiram como formas de medir potencial militar nas primeiras décadas do século XX. O PIB tinha várias falhas, entre elas, o fato de capturar só as atividades envolvendo intercâmbios em moedas nacionais, o que levava a anomalias cada vez mais estranhas. Por exemplo, atividades idênticas (como cuidar de uma criança enferma) seriam classificadas como ‘emprego’ e constaria do PIB – ou não – simplesmente porque em um caso o serviço foi pago em moeda nacional e no outro não. Isto resultava na pura e simples negação da realidade do serviço prestado gratuitamente.

Além disto, o velho PIB, confundia um mero crescimento numérico com um crescimento sábio. Na Era da Informação, a ideia própria da Era Industrial de “Pleno Emprego”, deu lugar ao “Pleno Potencial”. O “Pleno Potencial” se refere à oportunidade de desenvolver totalmente a capacidade de aprendizado e os dons de cada um. E assim como o Pleno Emprego, não se pode nunca atingir 100% do Pleno Potencial de uma população.

Agora sabemos que só liberando o extraordinário potencial de criatividade humana de todas as pessoas, poderia haver esperança para o planeta Terra. Nas gerações passadas, a criatividade era privilégio de uma ínfima minoria: uns poucos artistas, cientistas e um ou outro membro da inteligentsia. Mesmo usando a estreita e desgastada definição de ‘emprego’, na década de 1990, no mínimo 700 milhões de adultos ficavam periodicamente ‘desempregados’ no mundo. E segundo as estimativas dos nossos historiadores da economia, menos de uma em cada mil pessoas chegava a alcançar seu “Pleno Potencial”. Eram considerados “gênios” raros. E isto se soma ao fato extraordinário de que no sistema de educação da época, só eram reconhecidas e, portanto, desenvolvidas e mensuradas duas das nove formas de inteligência: a verbal/linguística e a lógica/matemática, ambas com um viés Yang. As demais sete formas de inteligência eram simplesmente ignoradas. Por isto, era muito raro que o desenvolvimento de uma criança levasse em conta as outras sete formas de aprendizagem: ou seja, a musical, a espacial, a corporal/cinestésica, a intrapessoal, a interpessoal, o reconhecimento de padrões e a intuitiva/mística.391

Resumindo, o potencial humano era drasticamente subestimado e evidentemente não era desenvolvido para contribuir na solução de problemas. É incrível que a humanidade tenha conseguido chegar aonde chegou no século XX.

Realmente, visto da perspectiva atual, é como se a nossa espécie tivesse sido colocada numa corrida com os olhos vendados e os pés e as mãos amarradas. Um pioneiro do século XX, Duane Elgin, afirmou que a humanidade sempre atinge o melhor de si quando suas capacidades são desafiadas ao máximo. Ou nós mudávamos nosso rumo radicalmente e conscientemente, no sentido da sustentabilidade em todas as esferas, ou teríamos desaparecido como aconteceu com os grandes lagartos que vieram antes de nós.

O segredo da mudança foi uma sucessão de três ondas que se sobrepuseram por volta da virada do século:
– A Onda da Mudança de Valores, que substituiu gradualmente os velhos valores da Idade Moderna pelos da Idade da Integração.
– A Onda da Informação que nos permitiu um grau de acesso ao conhecimento nunca antes experimentado por uma quantidade tão grande de pessoas; e
– A Onda Monetária, quando os novos tipos de moedas passaram a complementar o velho sistema da moeda nacional.

Na década de 90, a maioria das pessoas só tinha conhecimento da Onda da Informação, era a única que atraia os holofotes dos meios de comunicação naquela época. Mas na realidade, quem buscasse um pouco além das notícias da grande mídia podia constatar que essas três mutações já estavam em pleno andamento.

Juntas, estas três ondas mudaram rapidamente nosso sistema econômico e a cibereconomia se tornou o que ela é hoje: a maior economia do mundo e a que mais cresce. Por isto a ciberesfera é o melhor lugar para observar o estado atual do nosso sistema monetário. Como vocês sabem, nosso sistema de moedas se desenvolve continuamente e hoje opera simultaneamente em diferentes níveis, entre o global e o local. A principal vantagem deste sistema de moedas de múltiplos níveis é que cada tipo de atividade tem o apoio do tipo de moeda que melhor se adapta. A Internet assegura a convertibilidade das diferentes moedas, sempre que necessário, a qualquer momento. Os vários sistemas interagem como um todo orgânico, no qual cada componente evolui constantemente se adequando às demandas e oportunidades do ambiente onde opera. Vejamos agora os principais marcos da nossa trajetória entre os dilemas do século passado e a época atual, que está sendo chamada a Idade da Abundância Sustentável para a humanidade.” 392

De repente senti que toda a cena ia desaparecendo como uma névoa diante dos meus olhos e eu me vi de volta ao tempo presente. Para minha grande frustração, nunca vou ter certeza como o mundo chegou lá… Bom, pelo visto vou precisar simplesmente continuar aberto às surpresas da vida…

O restante deste capítulo comprova as afirmações dos professores de 2020, com as evidências já disponíveis em 1999.

Definindo a Abundância Sustentável como uma sinergia yin-yang
A Abundância Sustentável foi definida como as características de uma sociedade que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas das gerações futuras, garantindo, simultaneamente, liberdade de escolha e de criatividade para tantas pessoas quanto possível (conforme vimos no capítulo 5). Note que, querendo ou não, destes dois componentes – sustentabilidade e liberdade – a humanidade, algum dia, vai atingir no mínimo um: a sustentabilidade. Só o que se pode discutir é quanto tempo vai levar, se será intencionalmente ou após um grande colapso, e se seremos ou não capazes de mobilizar uma mudança consciente para este propósito.

O planeta por si só é sustentável. A questão é se nós estaremos ou não nele.

O que eu proponho aqui é que a humanidade se torne sustentável no intervalo de tempo de uma geração, e não depois (veja o quadro abaixo). Poderíamos conseguir isto usando uma estratégia monetária que liberaria a extraordinária criatividade da qual somos capazes; e explorando o potencial das tecnologias criadoras de abundância que estão surgindo. Com esta estratégia evitaríamos o enorme sofrimento causado por um colapso monetário. Algumas medidas preventivas agora serão infinitamente mais baratas que tentar remediar os danos depois. Um estepe pode parecer inútil praticamente o tempo todo, até o dia que um pneu fura…

Sustentabilidade: Uma síntese de diferentes visões
“Sustentabilidade é uma brado de esperança. Ela postula que a sociedade no futuro pode se organizar de tal forma que a degradação ambiental e as extremas desigualdades sociais sejam permanentemente evitadas. É uma proposta que implicitamente nos chama à responsabilidade e a uma ação que sinceramente vise melhorar ou transformar nosso atual modo de vida e alertar sobre o que muitos sentem como ameaça de uma crise social, ecológica e econômica.”
Relatório da Rede Global de Empresas sobre Sustentabilidade 393


Desenvolvimento Sustentável é o crescimento do bem-estar sem crescimento físico. É um processo e não um estado, por isto, não necessariamente implica que a população ou a economia esteja estática ou estagnada.
“Relatório Brundtland: “Nosso futuro comum”394


Herman Daly 395 ex-economista do Banco Mundial propõe três condições para que uma sociedade seja fisicamente sustentável:
1. as taxas de uso dos recursos renováveis não excedam suas taxas de recomposição.
2. as taxas de uso de recursos não renováveis não excedam as taxas de desenvolvimento de recursos renováveis sustentáveis substitutos.
3. as taxas de emissão de poluentes não excedam a capacidade de assimilação do ambiente.


Os biólogos Paul e Anne Ehrlich396 propõem uma equação simples que mostra o papel da tecnologia na redução do impacto ecológico geral: Impacto Ecológico = População x Riqueza x Tecnologia
Se a População dobrar uma última vez nos próximos 50 anos, e a Riqueza quadruplicar, então a Tecnologia precisa reduzir o impacto disto a pelo menos 1/8 para mantermos um nível de impacto similar ao atual.

Muitas pessoas e organizações perseguem ou a sustentabilidade (por exemplo o movimento ecológico) ou a abundância (ex: as empresas), mas não ambas. É claro que em muitas atividades há genuinamente um conflito entre elas. Se você quer abundância de madeira, vai precisar desmatar; se você quer abundância de carros, espere poluição e congestionamentos. Mas, felizmente, esta incompatibilidade intrínseca não predomina em todos os campos. Especificamente, as três ondas descritas pelo professor de Stanford do ano 2020 são atividades nas quais a sustentabilidade e a abundância não somente são compatíveis, elas geram sinergias. É por isto que eu fiquei tão curioso sobre os fatores que já estão visíveis neste momento, que, na opinião do professor do ano 2020 contribuíram para a Abundância Sustentável. Até agora, eu descobri, resumidamente, o seguinte:

Gerar as ondas que nos levam à Abundância Sustentável
Como as uvas e as bananas, que vêm aos cachos, as oportunidades parecem vir várias de uma vez. As três ondas mencionadas, na verdade, se reforçam mutuamente. A Onda da Mudança de Valores até o momento está sendo muito ignorada, mas ela está na base de todo este processo. Ela é o combustível da mutação, enquanto as Ondas da Informação e a Monetária proporcionam os meios tecnológicos para liberar a criatividade necessária. Dois estudos importantes sobre Sustentabilidade – Além dos Limites 397e o Relatório sobre Sustentabilidade da Rede Global de Empresas398 – mostraram que será necessária uma mudança que seja simultaneamente de valores e das tecnologias. Depois de avaliar e analisar detalhadamente as relações entre os recursos globais, a população, a produção industrial e a poluição, os autores concluíram que:
“Com o potencial para inovações tecnológicas só o que ganhamos é tempo – elas não irão impedir que o colapso ocorra, elas só o adiam até meados do século XXI. Mudanças comportamentais e atitudinais radicais são úteis também, mas no final, sozinhas elas também não serão suficientes para impedir que aconteça um colapso no meio do século XXI. Só se estas duas mudanças forem implementadas juntas é que se pode evitar o colapso.”399
E é esta combinação de transformações, precisamente, que já está em andamento hoje.

  1. A Onda de Mudanças de Valores
    “Primeiro eles ignoram você; depois eles ridicularizam você; então eles atacam você; aí você vence.”
    Anônimo

O conjunto mais detalhado de dados sobre as mudanças de valores ocorridas nos últimos vinte anos se refere aos Estados Unidos. Mas há indícios preliminares de que este processo pode ser observado em todo o mundo ocidental, e possivelmente até no nível global.

Paul Ray realizou a pesquisa mais atualizada sobre as mudanças de valores nos últimos vinte anos, cobrindo amostras científicas de 100.000 cidadãos dos Estados Unidos, refinadas por mais de 500 grupos de foco, incluindo um estudo de referência em dezembro de 1994, com foco nos novos valores emergentes entre uma amostra representativa da população do país.400 Esta pesquisa resultou em dados estatísticos de valor inestimável sobre o atual estado dos valores nos Estados Unidos. Ele descobriu que, na verdade, nesse país hoje convivem três subculturas, cada uma com uma cosmovisão e um mundo de significados próprios: os “Tradicionalistas”, os “Modernistas” e o “Criativos Culturais”.

Os “Tradicionalistas ”são os religiosos conservadores, são cerca de 29% da população, e estão diminuindo em importância relativa desde a Segunda Guerra Mundial, sua densidade é ligeiramente mais alta no Meio-Oeste. Segundo os autores da pesquisa, “depois de ouvir várias discussões em grupos de foco, aos poucos percebemos que há um estilo cognitivo tradicionalista. A maioria deles, quando pode, evita situações e ideias complexas e eles reagem emocionalmente contra mudanças e o mundo modernista… O Tradicionalismo também é um desejo de simplificar, de ter as certezas tradicionais e menos sofisticação e secularismo, ter uma monocultura religiosa e unidade nacional e étnica… Eles acreditam na recuperação de uma imagem nostálgica do passado, dos Estados Unidos de antigamente, com suas cidades pequenas e religiosas… No lado “sombra” do Tradicionalismo estão organizações de extrema direita e o ódio a minorias.”401

Até pouco tempo atrás, só havia os Tradicionalistas e os Modernistas.

Os “Modernistas” são a subcultura dominante hoje, a encarnação do modo de vida ocidental oficial, recuando, de uma maioria triunfante na década de 1950 para 47% da população dos Estados Unidos hoje (88 milhões de adultos). Quase todas as pessoas do mundo ocidental hoje têm muitas horas de exposição à visão de mundo “Modernista”. É o ponto de vista que deu os contornos à Era Industrial. Mas ainda que no decorrer do tempo esse grupo se reduza percentualmente aos poucos, o modo de ver Modernista continua sendo o único veiculado nos meios de comunicação de massa.

Do ponto de vista histórico, a Idade Moderna foi engendrada durante a Renascença, como reação às sociedades “Tradicionalistas”, rejeitando a visão de mundo dominada pela religião, que era praticamente o pensamento único daquele tempo. Por isto, os Modernistas consideram “modernos” (neste sentido como sinônimo de “sofisticado, avançado, urbano e/ou inevitável”) valores, tecnologias, interpretações que se oponham às sociedades “atrasadas”, “subdesenvolvidas” que o precederam. Entretanto, os Modernistas mantiveram intacta uma das premissas fundamentais da visão de mundo anterior dominada pela religião: o postulado bíblico de que “o homem deve dominar o restante da criação.”

Os “Criativos Culturais” são o único grupo que cresceu numericamente nas últimas décadas. E apesar de ainda serem estatisticamente indetectáveis a vinte anos atrás (menos de 3%), eles agora representam 23,6% da população (44 milhões de adultos nos Estados Unidos). Historicamente, esta é uma transformação extraordinária em termos de valores em menos de uma geração. É esta a subcultura que constitui a Onda da Mudança de Valores citada pelo professor do ano 2020. Por isto veremos mais em detalhe esta visão de mundo e seu status atual. E em seguida mostrarei que esta tendência, na verdade, pode ser global.

Visão de mundo dos Criativos Culturais
Assim como a visão de mundo Modernista se desenvolveu como uma reação a o que se considerava uma excessiva simplificação, e demasiado predomínio da religião ao final da Idade Média, a subcultura dos Criativos Culturais surgiu em resposta à cegueira e aos exageros da tradição Modernista. No nível individual, a principal preocupação é a auto-realização, isto é, o crescimento interior, ao invés do prestígio social externo. Muitas pessoas desistiram de apoiar sua espiritualidade em religiões tradicionais ortodoxas (17% mantêm uma prática tradicional ortodoxa comparado a 40% dos Modernistas e 47% dos Tradicionalistas). São pessoas que têm curiosidade em relação ao mundo (85% são xenófilos). Para elas, a qualidade dos relacionamentos pessoais é crucial (76%, comparado a 49% dos Modernistas e 65% dos Tradicionalistas). E elas tendem, também, a ser mais informadas que a sociedade como um todo.

No nível coletivo: uma das principais preocupações é a deterioração do espírito comunitário e a degradação do ambiente (92% querem reconstruir a comunidade; 87% acreditam em sustentabilidade ecológica). Ray as avalia como pessoas mais “altruístas” por estarem dispostas a fazerem sacrifícios pessoais (84%, comparado a 51% dos Modernistas e 55% dos Tradicionalistas). E estão dispostas, inclusive, a tomar iniciativas pessoalmente para construir a sociedade na qual acreditam (45% querem ser “ativistas”, comparado a somente 29% dos Modernistas e 34% dos Tradicionalistas). Finalmente, aceitam como um fato a participação da mulher no mercado de trabalho (69%). Os Criativos Culturais são ligeiramente mais otimistas acerca do futuro (35%, comparado a 24% dos Modernistas e 26% dos Tradicionalistas).

Há também algumas rejeições significativas entre os Criativos Culturais: intolerância à Direita Religiosa, ao hedonismo sem consideração da mídia comercial de hoje, à ambição inconsequente dos Modernistas na década de 1980 e à destruição irresponsável de uma parte expressiva da ecologia do planeta por parte das grandes corporações.”

O que mais surpreende?
Pode surpreender muita gente a quantidade de Criativos Culturais surgidos em menos de uma geração. A mim, sem dúvida, surpreendeu. Mesmo pessoas que fazem parte desta subcultura se consideram exceções isoladas. Duas razões convergem para criar esta impressão de isolamento.
– não há uma organização que as identifique;
– nada nos meios de comunicação as reflete.

Não há uma organização
Uma das principais razões da relativa invisibilidade dos Criativos Culturais é que esta subcultura não gerou um partido político de massa, nem um movimento religioso de massa, nem sequer um mercado editorial identificável. Os Criativos Culturais são, por definição, ecléticos que fazem opções e escolhas conforme seus próprios interesses, de publicações de massa às marginais, nacionais tanto quanto estrangeiras. De forma que não há lugar ou grupo no qual eles possam se encontrar e serem contados.

Nada que as reflete
E principalmente, os meios de comunicação de massa, o espelho no qual nos miramos, na sociedade, ainda estão completamente mergulhados na subcultura Modernista, expressando quase que exclusivamente esse ponto de vista. E cada vez que eles se referem aos Criativos Culturais, eles tendem a apresentá-los usando uma caricatura típica do grupo: os adeptos da “Nova Era”, que representam menos de 2% da população (4 milhões de adultos). Desta forma, mesmo quando esta subcultura é representada, a maior parte dos 44 milhões de Criativos Culturais não se reconhecem nesta imagem.

A invisibilidade – até entre os próprios membros – pode ser a característica mais incomum desta nova subcultura. Quando o Modernismo ficou de moda, da Renascença em diante, os “Modernizadores” sabiam muito bem que eles eram um movimento. Erasmo de Roterdã ou os Enciclopedistas franceses tinham a atenção dos meios de comunicação das suas respectivas épocas em tudo o que eles faziam. Eles eram reconhecidos como um movimento pelos demais, e eles também se reconheciam mutuamente; e isto apesar de serem somente 1% ou 2% da população, enquanto os Criativos Culturais somam 24% da população de hoje. Ou seja: quando finalmente a realidade sócio-política destas tendências emergir, a mudança será muito mais ágil que o nascimento da Idade Moderna.

Criativos Culturais “Verdes” e “Integrativos”
Paul Ray distingue dois tipos de Criativos Culturais: os “Verdes” e os “Básicos”.

• Criativos Culturais Verdes – estão preocupados com questões ambientais e sociais, de um ponto de vista não religioso. Eles tendem a ser ativistas na esfera pública. Centram foco na solução de problemas “no mundo” e estão menos interessados em mudanças pessoais.
• Criativos Culturais “básicos”- têm tanto valores pessoais como ecológicos. Eles estão seriamente comprometidos com a psicologia, a vida espiritual, a auto-realização e a auto-expressão. Gostam de apreender novas ideias, têm preocupações sociais, se envolvem com questões feministas e/ou de sustentabilidade ecológica.

Criativos Culturais: uma transformação mundial?
Não há uma pesquisa detalhada como a de Paul Ray abrangendo todo o mundo. Mas em setembro de 1997, o secretariado da União Europeia usou o questionário sobre valores desenvolvido por Ray para identificar os Criativos Culturais na sua pesquisa mensal Euro-Barometer com as 15 nações membros (800 entrevistas por país) e descobriu , para sua surpresa, que o percentual de Criativos Culturais na Europa é tão alto como nos Estados Unidos. Em outro estudo realizado por Duane Elgin, todos os dados disponíveis no nível global indicam que esta mudança é um fenômeno mundial. Ele conclui que: “consideradas no seu conjunto, as tendências parecem indicar que está em andamento uma mudança global de paradigma.” 402 A população global em toda parte está mais avançada na transição, que seus líderes oficiais, e também que seus meios de comunicação de massa. Por exemplo, a maioria no mundo inteiro dá mais prioridade à proteção ambiental que ao crescimento econômico (veja gráfico A de figura 11.1) e está disposta a pagar um preço mais alto por isto (gráfico B). Há também uma maioria crescente – contestada eloquentemente pelos fundamentalistas no mundo todo – que defende oportunidades iguais para homens e mulheres, e que a igualdade no número de mulheres em cargos políticos melhoraria a situação geral (gráfico C). Talvez o mais impressionante disto tudo seja que esta tendência é quase tão prevalente nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos.

Gráfico A. Porcentagem de pessoas que priorizam a proteção do meio-ambiente sobre o crescimento econômico (Gallup International)
Dinamarca Alemanha Finlândia Noruega México Brasil Canadá Irlanda Uruguai Chile Coréia Suíça Filipinas Polônia Estados Unidos Holanda Japão Rússia Grã Bretanha Hungria Portugal Índia Nigéria

Gráfico B. Porcentagem das pessoas que se manifestaram dispostas a pagar preços mais altos por produtos que protejam o meio-ambiente (Gallup International)
Dinamarca Noruega Coréia Grã Bretanha Suíça Holanda Estados Unidos Canadá Portugal Índia Irlanda Alemanha Brasil Polônia Finlândia Rússia Japão

Gráfico C. Se houvesse mais mulheres em cargos públicos, o país estaria mais bem governado ou menos? (Gallup International)
Canadá Estados Unidos Grã Bretanha França Alemanha Espanha Colômbia Chile México China Índia Japão Tailândia
Figura 11.1 Alguns indicadores globais sobre mudanças de valores integrativos.

Duane Elgin informa um outro indicador interessante e pouco divulgado: a mudança nas práticas medicinais, das modernistas convencionais para medicinas holísticas. No artigo “Medicina não convencional nos Estados Unidos” publicado em 1993, no New England Journal of Medicine403 o Dr. David Eisenberg concluiu que as terapias não convencionais nos Estados Unidos são bem mais frequentes do que se tinha notícia. A estimativa é de que uma em cada três pessoas na população adulta do país usou alguma terapia não convencional em 1990. O estudo apresenta grande diversidade de dados sobre, entre outros, montantes gastos, (US$13,7 bilhões em 1990), evolução do número de consultas, reconhecimento das práticas ancestrais, prescrição de medicamentos homeopáticos, interesse pela acupuntura por parte da academia e dos serviços de saúde pública da Ásia desde os anos 1950, e aumento da popularidade da medicina ayurvédica. Os resultados de Eisenberg confirmam a tendência identificada.
[conforme entendimento com o autor, substituí parte do texto original por uma breve síntese por se tratar de uma página inteira com dados de quase 20 anos atrás sobre um assunto secundário] não tem404

Resumindo: cada uma destas tendências é, muitas vezes, menosprezada por formadores de opinião Modernistas, elas são tratadas como algo exótico apenas, ou uma moda sem importância. Mas, consideradas em conjunto, elas revelam um padrão, uma grande mudança de paradigma no sentido de voltar a honrar valores Yin em todos os aspectos da sociedade. Afetando todas as esferas. O padrão inclui fenômenos tão diversos quanto o aumento das preocupações com o ambiente; práticas de saúde holísticas; teoria do caos na física; a substituição de estruturas hierárquicas por redes (como a Internet e organizações virtuais); a ponte recente sobre a cratera Cartesiana que separa matéria de espírito; e o movimento de emancipação da mulher.

Estas transformações podem ser observadas tanto em homens como em mulheres. Mas, aqui uma vez mais, o impressionante é que, embora em todos estes casos haja um padrão que se repete, o significando do conjunto não é captado. Muitas vezes não se percebe a importância, a velocidade e a magnitude desta mutação. A reação padrão do paradigma Yang dominante a estas inovações Yin também se repete nos diferentes domínios. Inicialmente elas são ignoradas. Depois elas são ridicularizadas e desprezadas como charlatanice ou superstição sem valor. Então, começa uma oposição sistemática, algumas vezes chegando a formas mais ou menos violentas de repressão, à medida que aumenta a importância delas e sua aceitação entre a população. Mas quando se atinge uma certa massa crítica, ocorre uma mutação: de repente é reconhecido o papel complementar das novas práticas. E por fim, a inovação se integra em uma nova síntese.

Nem todos os domínios estão no mesmo nível de maturidade neste processo. Em diversos campos da física o processo já está bem maduro, a física quântica, por exemplo, está cada vez mais integrada em novos níveis de síntese. Conforme mencionamos acima, a medicina recentemente atingiu o estágio de aceitar a “complementaridade”. Já em diversos campos da biologia prevalece, ainda, a fase de oposição sistemática405. Nos sistemas monetários, o ponto de vista majoritário ainda está na fase inicial, ignorando e desprezando as inovações.

  1. A Onda da Informação
    Para vermos esta onda não precisamos ficar procurando os sinais sutis: todos os canais dos meios de comunicação de massa convencionais estão alardeando notícias a este respeito. Não é necessário dar maiores explicações, além do que já foi analisado no capítulo 3. Basta lembrar que a “ciberesfera” foi definida como o espaço ideal onde a Onda Monetária poderá se desenvolver plenamente.
  2. A Onda Monetária
    O tema deste livro é justamente esta terceira onda: a “Onda Monetária” que foi relatada aqui como o nascimento de sistemas de moedas Yin complementando o sistema oficial de moedas extremamente Yang. Mostramos que nosso sistema monetário é um construto extremamente Yang e o monopólio de uma moeda com estas características encerrou nossas sociedades em um sistema extremo, de valores Yang. O que propomos aqui em terminologia médica taoísta é “acalmar o Yang e ativar o Yin”. Pragmaticamente, a Moeda de Referência Global é um dispositivo que pode “acalmar o Yang” e a ativação das moedas complementares locais é um meio de “ativar o Yin”.

As inovações atualmente em curso, em termos de dinheiro são mais compatíveis com interações cooperativas, de tipo feminino. Longe de serem uma curiosidade exótica, estes novos sistemas monetários constituem, na verdade, uma parte integrada em uma ampla Onda da Mudança de Valores da sociedade descrita acima. Vistas desta perspectiva, as inovações monetárias podem ser classificadas na mesma categoria da priorização do ambiente, da medicina holística, da teoria do caos na física, da substituição das estruturas hierárquicas por redes, pela superação do abismo cartesiano entre matéria e espírito e do movimento de emancipação da mulher.

Eu afirmo que: se disponibilizarmos às pessoas moedas estáveis em quantidade suficiente elas passarão a se mover na direção da Abundância Sustentável – como a água desce uma colina. Do ponto de vista econômico, estas moedas complementares se baseiam no reconhecimento da riqueza social. (veja o quadro abaixo).

Moedas complementares e criação de riqueza
Uma observação para economistas

Quando os imóveis eram a principal forma de riqueza, os bancos emitiam dinheiro quase exclusivamente com base em garantias imobiliárias. Nos últimos 50 anos, novas formas de riqueza foram sendo reconhecidas e passaram gradualmente a ser usadas como garantias. Agora, é possível, por exemplo, pedir um crédito estudantil e a garantia é a elevação de renda a ser obtida pelo individuo uma vez graduado. Note que mesmo de um ponto de vista econômico tradicional, neste processo há a criação de uma riqueza financeira adicional pois o dinheiro emitido com base nessa garantia futura possibilita que ocorram intercâmbios (isto é: atividades econômicas) e que sejam realizados investimentos (isto é: a instrução universitária) que do contrário não ocorreriam. Imagine a redução da atual base de riqueza se não fosse reconhecida a propriedade intelectual, se por exemplo voltássemos ao tempo em que o dinheiro somente pudesse ser criado através de empréstimos a pessoas que já possuíssem um imóvel.


As moedas complementares possibilitam um processo similar de criação de riqueza adicional. O reconhecimento de outra forma de capital (o capital social) é a base implícita dos sistemas de crédito mútuo. O dinheiro é emitido por pessoas que reconhecem o capital social das demais pessoas, este é o “lastro” dos sistemas de crédito mútuo. Eles possibilitam intercâmbios que do contrário não aconteceriam, o que significa novamente que está sendo criada uma riqueza, desta vez, tanto financeira como social. E mais: moedas complementares bem projetadas conseguem tudo isto sem criar pressões inflacionárias sobre a moeda nacional.


O desenvolvimento econômico pode ser definido como a capacidade de transformar recursos em capital. Neste sentido, as moedas complementares poderiam se tornar um meio importante de desenvolvimento.

Disponibilidade e estabilidade da moeda com certeza são pré-requisitos para a Abundância Sustentável. Sem estabilidade monetária nenhuma sociedade pode prosperar. Ao longo da história, as maiores crises sociais – da queda do Império Romano ao surgimento do fascismo – estiveram ligadas a colapsos das moedas. Há quem argumente, inclusive, que os colapsos monetários foram a causa dessas crises. E a escassez de dinheiro foi, e segue sendo, o principal obstáculo para soluções criativas dos problemas da nossa sociedade. Pense apenas nas ideias e projetos que você ou sua comunidade deixam de realizar por falta de dinheiro.

Acredito que todos nós temos um dom com o qual poderíamos contribuir para este mundo e que a suficiência de moeda poderia liberar um caudal tão grande de engenhosidade humana que o planeta passaria a um estado de Abundância Sustentável hoje totalmente impensável. Isto me faz lembrar do comentário de Jean Shinoda Bolen: “Antes de poder fazer algo que você nunca fez, você precisa conseguir imaginar que é possível.”406

A seção seguinte trata de como a Onda Monetária poderia se desdobrar na prática em uma multiplicidade de sistemas monetários.

Um sistema monetário para a Abundância Sustentável
Nesta seção abordaremos em detalhes os sistemas monetários mais adequados para a Abundância Sustentável. O pensamento monetário tradicional sempre considerou adequado haver uma moeda por país. Por este motivo, um sistema com vários níveis seria criticado por ter uma complexidade e uma ineficiência injustificadas. Esta crítica será respondida primeiro, e depois passarei a descrever como os diferentes níveis de moedas poderiam se combinar em 2020.

Por que um sistema de moedas com vários níveis?
A crítica referente à “complexidade injustificada” só se sustenta se o costume faz com que negligenciemos as ineficiências e complexidades do dinheiro de hoje, com suas cerca de 170 diferentes moedas nacionais, desorganizadas em 8 diferentes tipos de sistemas monetários, segundo o relatório do FMI.407 A questão é: o modus vivendi monetário pós Bretton Woods, sem dúvida alguma, é insatisfatório.

“Durante as quase três décadas desde a derrubada do acordo de Bretton Woods, a taxa anual de crescimento econômico nos países desenvolvidos caiu um terço e os incidentes de crises financeiras internacionais estão aumentando acentuadamente – ao ponto de até países com políticas econômicas saudáveis muitas vezes serem atingidos junto com os irresponsáveis. Segundo os números do Banco Mundial, nada mais nada menos que 69 países passaram por graves crises bancárias desde o final da década de 1970 e 97 sofreram ataques especulativos contra suas moedas desde 1975.” 408

E provavelmente, de uma perspectiva histórica de mais longo prazo, algumas características do sistema monetário atual serão consideradas anomalias. (veja o quadro a seguir).

Os habitantes das Ilhas Yap e Fort Knox
Milton Friedman notou um paralelo intrigante entre o sistema adotado atualmente e as moedas “primitivas” de Yap, no Arquipélago das Carolinas (Micronésia). Em 1903, um antropólogo norte-americano chamado William Henry Furness III ficou tão fascinado com o sistema das ilhas, na época uma colônia alemã de cerca de cinco mil pessoas , que em 1910 publicou um livro intitulado “The Island of Stone Money” (a ilha do dinheiro de pedra). “O meio de troca deles é chamado “fei” e ele consiste em enormes rodas de rocha calcária maciça, com um buraco no centro, de diferentes diâmetros, no qual se pode inserir uma haste forte o suficiente para suportar o peso e facilitar o transporte. Estas “moedas” de pedra foram extraídas de rochas encontradas em outra ilha a cerca de 700 quilômetros de distância e trazidas originalmente em canoas e em balsas por navegadores nativos… depois de concluir uma negociação sobre o preço de um “fei” grande demais para ser transportado, o novo proprietário fica satisfeito em aceitar simplesmente que ele seja reconhecido como tal e sem algo que indique que a transação ocorreu, a moeda se mantém imperturbável no local onde está.

Quando o governo alemão assumiu a propriedade do Arquipélago em 1898, ordenou aos nativos que reparassem as várias rotas que estavam em condições precárias. Como alguns deles se recusaram, foi estipulada uma multa para os distritos que não obedecessem. A cobrança foi executada enviando-se um funcionário para marcar uma cruz com tinta preta em alguns dos “feis” mais valiosos, indicando que eles estavam sendo reclamados pelo governo. Isto funcionou como um passe de mágica; as pessoas entristecidas com seu empobrecimento resolveram consertar as vias. Os agentes do governo apagaram as cruzes e pronto! A multa estava cancelada, os felizes ilhéus retomaram a propriedade do seu estoque de capital e voltaram a desfrutar da sua riqueza.”409

Em 1932, 1933 e novamente em 1971, o banco central francês solicitou ao Fed a conversão de parte da reserva que a França tinha em dólares em ouro, o que, na prática, significava simplesmente substituir parte das etiquetas dizendo “Federal Reserve” nas barras de ouro dos cofres de Fort Knox por outras indicando “Banque de France”. Isto foi descrito nos jornais de finanças dos Estados Unidos como “perda do ouro” e os mercados consideraram que o dólar ficou mais fraco, e o franco francês mais forte.

Milton Friedman pergunta: ”Há realmente uma diferença entre a crença do Fed de que passou a estar em uma posição mais fraca devido a algumas etiquetas no seu porão e a dos habitantes de Yap de estarem mais pobres por causa das cruzes de tinta preta sobre suas moedas de rocha? Os ilhéus consideravam uma manifestação concreta de riqueza as rochas escavadas, entalhadas e trazidas de uma ilha distante. Por mais de um século, o mundo civilizado considerou uma ser uma manifestação concreta de riqueza um metal escavado no fundo da terra, laboriosamente refinado, transportado por grandes distâncias e novamente enterrado em sofisticados cofres subterrâneos. Uma coisa é realmente mais racional que a outra?”410

Pré-requisitos Organizacionais
No que se refere às moedas, a mudança necessária fundamental é organizacional. O que eu defendo aqui é que durante o período de transição pós-industrial que entramos agora, que além de sistemas monetários nacionais Yang, baseados em comando-e-controle hierárquico, que seja permitido que se desenvolvam sistemas Yin, flexíveis, abertos, adaptativos. A melhor forma de entender isto é comparando uma sociedade industrial madura com uma pós-industrial, como na tabela abaixo.

Ambiente anterior (Fase madura da Era Industrial) Novo Ambiente (Era Pós-Industrial)
As premissas são a previsibilidade e o controle A premissa é a ocorrência de mudanças estruturais fundamentais
Centralização da inteligência e da informação Distribuição da inteligência e da informação
Soluções lideradas por especialistas Muitos agentes fazendo experimentos com novos padrões
Estruturas do tipo comando-e-controle Estruturas complexas adaptativas

Quando a premissa de que vivemos em um ambiente previsível e controlável (ambas premissas Yang fundamentais) era válida, fazia sentido centralizar informação e deixar as decisões para os “experts”, a estrutura de gestão mais coerente nesse caso, é a tradicional, praticamente onipresente hoje em dia, com comando e controle hierárquicos. Essas organizações piramidais foram inventadas originalmente pelo exército romano e por hierarquias religiosas ainda mais antigas, milhares de anos antes e agora estão por toda parte, são a norma em praticamente todos os órgãos dos governos, corporações, sindicatos, partidos políticos, universidades e demais instituições de ensino, estabelecimentos médicos, e organizações sem fins lucrativos. Esse formato se tornou tão corriqueiro que chegamos a não imaginar que outras formas de nos organizarmos sejam possíveis, e que poderiam ser mais eficazes nas atuais circunstâncias.

Entretanto, as crises e os colapsos se espalharam por vários domínios (sistema monetário global, governos, educação, meio-ambiente, mercado de trabalho, etc.) Se a transição para a economia da informação for na realidade uma “Era da Incerteza”411 – então já é tempo de reconsiderarmos as velhas premissas das nossas organizações. No atual estado das coisas, se persistirmos nas antigas estruturas centralizadas em especialistas, é previsível que o comando-e-controle terminem sufocando muitas inovações necessárias hoje.

Tony Judge, que Alvin Toffler descreveu como “um dos nossos mais brilhantes teóricos das organizações”, afirma que as organizações do futuro serão “redes não coordenadas por ninguém; os órgãos participantes se auto-coordenarão.”

A primeira aplicação contemporânea de grande escala desses princípios foi a fundação do sistema de cartões de crédito VISA, por Dee Hock na década de 1970.412 O crescimento da VISA foi espetacular e o grupo se tornou a maior organização empresarial do mundo, atingindo um volume de vendas anual de US$1,3 trilhão e 600 milhões de clientes. E ainda, você sabe onde é a sede? Ou em que bolsa de valores você pode comprar as ações da VISA? A resposta surpreendente é que ela não tem sede nem ações em lugar algum. E ainda assim, ela opera com grande eficiência por um time de mais de 3 mil pessoas com 21escritórios em quatro continentes. Ela está estruturada como uma aliança entre mais de 20.000 instituições financeiras em mais de 200 países e territórios. É uma estrutura na qual todas as tomadas de decisão relevantes fluem através do sistema todo e não apenas no seu topo. Dee Hock a chamou de a primeira empresa “caórdica” (termo que ele cunhou para descrever algo que funciona ao mesmo tempo com caos e ordem). “… me mostre o presidente do conselho de administração da floresta, mostre o peixe diretor financeiro do lago (e batendo na própria cabeça), me mostre o neurônio presidente do cérebro.”413

Com certeza, isto não se aplica só às questões monetárias ou de gestão. A obra pioneira do Santa Fe Institute sobre sistemas complexos adaptativos verificou estes mesmos princípios em todos os sistemas (físicos, biológicos, sociais, econômicos, etc.) que atingem certos níveis de complexidade. A Teoria da Complexidade prevê que, ao contrário da lógica newtoniana, a complexidade não cresce linearmente, mas em saltos não lineares, em estágios episódicos de um “surf na beira do caos.” Segundo Ilya Prigogine, (cientista vencedor do Prêmio Nobel) é nesses períodos de “quase-caos” que os sistemas se regeneram e se reestruturam, passando ao nível seguinte de complexidade.

Acredito que já começamos a “surfar na beira do caos”, que a crise atual das instituições dominantes da sociedade Moderna é o sinal de que a humanidade já começou a se reorganizar no nível seguinte de complexidade (veja o quadro a seguir). É por isto que agora estamos em um período de transição “entre narrativas” da Máquina Compactadora do Tempo apresentada no capítulo 1.

A Metáfora da Borboleta
Norie Huddle usou a biologia da metamorfose da lagarta como metáfora para o nosso tempo. 414 Quando a lagarta começa sua metamorfose, células especiais – as chamadas células imaginais – literalmente se dissolvem dentro do corpo da lagarta, constituindo uma substância amorfa. Então, as células imaginais começam a se interconectar umas às outras, estabelecendo novas redes, para ao final reestruturarem o todo no milagre da borboleta.


A civilização moderna entrou agora na fase da dissolução, e as células imaginais começaram a se interligar usando a ciberesfera para atuar fora dos canais tradicionais de comunicação. A Abundância Sustentável é a borboleta, que surge como descrevi nas “Quatro Estações de 2020” no capítulo 1.

O grande perigo, no campo das moedas, é que sejam bloqueados alguns dos novos níveis monetários que estão surgindo espontaneamente. E pelo que vimos ao longo da história, o mais provável é que o nível local seja o visado, porque é o mais fácil de esmagar, enquanto os outros deverão ser deixados livres para se desenvolver (por exemplo as moedas privadas corporativas, porque elas estão além do raio de ação de qualquer um dos bancos centrais nacionais). Um desfecho deste tipo perpetuaria o desequilíbrio no nosso sistema econômico, entre as moedas Yang e os valores que estão evoluindo, justo quando o aspecto yin precisa ser ativado (a figura 10.8 – o esquema das diferentes moedas Yin e Yang – ilustra este ponto). As estruturas tradicionais do tipo comando-e-controle podem não ser capazes de impedir o caos na velha ordem existente hoje, mas não devemos sub-estimar o poder que elas têm de sufocar tentativas embrionárias de gerar uma nova ordem.

E de 2020 em diante?
No longo prazo – um pouco depois de 2020 – minha expectativa é que emergirão novas estruturas econômicas e de governança em um novo nível de complexidade e teremos uma era de novos padrões previsíveis. Muito provavelmente de 2020 em diante serão necessários sistemas monetários diferentes dos descritos neste livro. Talvez em algum momento no futuro simplesmente já não precisemos de dinheiro (se acreditarmos em Jean Luc Picard da saga Jornada nas Estrelas, “não existe dinheiro no século XXIV”) mas enquanto isto, a meu ver, precisaremos de sistemas de moedas para a transição, que possam servir de muletas na reeducação dos padrões de comportamento coletivos atrofiados.

Meu propósito neste livro é centrar foco unicamente nestes sistemas monetários de transição, adequados a esta fase que já iniciamos. E o principal ponto vale repetir: durante o atual período de transição, muitas dores e rupturas violentas podem ser evitadas incentivando experimentos sociais, permitindo que formas embrionárias tenham uma chance de se desenvolver, deixando que se reproduzam em novos padrões que já mostraram eficazes em momentos de mudanças estruturais em outras partes do mundo. É desta forma que a natureza vem fazendo isto com sucesso nos últimos cinco bilhões de anos. Podemos nos dar ao luxo de não aprender com ela?

A seguir apresento o desenvolvimento de um sistema monetário de quatro níveis. Um deles já existe – o sistema nacional de moeda convencional emitida por bancos com base em dívida. O desenvolvimento dos três novos níveis está resumido em três cronogramas que mostram como o surgimento destes novos sistemas é uma evolução orgânica de tendências que vêm se manifestando já há décadas, cada uma movida pela sua lógica própria. Minha premissa é que os sistemas nacionais de moedas conseguirão operar em paralelo aos três níveis novos, praticamente da mesma forma como hoje. A única diferença significativa é que não mais serão percebidos como a única possibilidade existente.

O dinheiro de 2020: uma caixa de câmbio com quatro marchas
Imaginemos que estamos em 2020. Quase todas as corporações e muitas pessoas lidam todos os dias com moedas de diferente níveis. Com a Internet, ficou muito simples converter estas moedas na maioria das moedas existentes, pagando uma taxa irrisória. E exatamente como ocorre hoje com as milhas das companhias aéreas, pagamentos em mais de uma moeda se tornaram comuns (por exemplo: comprar uma passagem em moeda nacional, e pagar em milhas o upgrade para viajar em uma classe superior).

Os quatro níveis de operação em 2020:

– Uma Moeda de Referencia Global
– Três moedas multinacionais principais
– Algumas moedas nacionais
– Várias moedas complementares locais

  1. A Moeda de Referencia Global
    Na Internet competirão diversas moedas privadas corporativas emitidas por organizações como a Amex, a Microsoft e similares, e por uma aliança de corporações européias e asiáticas. Algumas criarão subsidiárias especiais, com balanços patrimoniais robustos e líquidos – para emitir essas moedas e garantir maior credibilidade a elas. Uma moeda surgirá da sistematização mundial do escambo entre corporações, tomando a forma de Moeda de Referencia Global conforme descrevi no capítulo 9.

O escambo – isto é, a troca direta de bens ou serviços sem uso de moeda alguma – vem sendo praticado desde a aurora da humanidade. E justamente devido à sua longa história, ele muitas vezes tem sido considerado uma forma de intercâmbio “primitiva” ou “inferior”, inclusive associada com a economia informal. Tudo isto mudou totalmente nas últimas décadas, a tal ponto que o BarterNews, a principal publicação deste setor, estima que o escambo totaliza US$650 bilhões por ano, na maior parte em trocas entre corporações, tanto no mercado doméstico quanto internacional (“countertrade” no jargão técnico). O escambo já tem duas grandes organizações: A Associação Internacional de Comércio Recíproco (ou IRTA International Reciprocal Trade Association, http://www.irta.com) e o Conselho de Escambo Corporativo (o Corporate Barter Council – CBC).

Veja abaixo a evolução do escambo e da cibereconomia e como esta convergência fez surgir na esfera corporativa uma Moeda de Referencia Global (todos os dados até 1999, esse ano inclusive, são reais, os posteriores são projeções).

A criação de uma moeda privada Global (1960-2020)
Década de 1960: Desenvolvimento de transações de escambo de larga escala entre corporações ocidentais com países do Comecon (“bloco comunista”).
Década de 1970: Extensão do escambo a Países Menos Desenvolvidos sempre que as “moedas fortes” estavam escassas.
1974: Nos Estados Unidos, 100 pequenas bolsas de escambo reúnem 17.000 empresas transacionando um total US$45 milhões.
Década de 1980: Generalização de transações internacionais de escambo devido à crise da dívida latino-americana.
1982: O congresso dos Estados Unidos reconhece o escambo como processo comercial doméstico legítimo e determina a obrigatoriedade da prestação de informações. Toda renda proveniente do escambo é tratada como renda usual pela IRS (a autoridade tributária dos Estados Unidos).
Década de 1990: Expansão do escambo em todos os países desenvolvidos. Começa a decolar, paralelamente, o comércio via Internet.
1997: Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve dá aprovação implícita a iniciativas de moedas privadas emitidas por empresas: “Se quisermos fomentar inovação financeira, precisamos tomar cuidado para não impor regras que as inibam”415 A cibereconomia está estimada em US$35,6 bilhões anuais.
1998: Nos Estados Unidos, nada menos que 400.000 empresas são membros de 686 bolsas de escambo, totalizando um volume de US$ 8,5 bilhões em intercâmbios no mercado interno. A taxa de crescimento anual é 15%, três vezes mais alta que a dos intercâmbios mediados com dólares.
1999: O tráfego da Internet dobra a cada 100 dias.
2000: A cibereconomia atinge US$200 bilhões por ano, cerca de metade disto é entre corporações. O escambo começa a se deslocar para a Internet e começa a se fundir com a cibereconomia.
2002: O comércio via Internet, entre empresas apenas, atinge US$300 bilhões. 416
2006: Algumas empresas fixam normas comuns para os contratos de escambo.
2010: Uma aliança “caórdica ”entre corporações internacionais passa a usar Terras, uma Moeda de Referência Global padronizada com demurrage.
2020: A Moeda de Referencia Global se torna uma opção de padrão contábil legal para corporações multinacionais.
A cibereconomia é a maior economia do planeta. Moedas privadas (incluindo o Terra) são empregadas em 50% de todo o comércio internacional.

  1. Três moedas multinacionais
    Anos depois de o euro ter substituído onze moedas nacionais em 1999, o Reino Unido e outros países que haviam ficado de fora aderiram ao sistema. Isto gerou uma pressão irremediável na Ásia no sentido da criação de uma zona do yuan, e posteriormente da zona do dólar NAFTA. Ficou evidente que a integração econômica regional só atinge sua maturidade quando uma só moeda nivela o terreno para todos os países participantes. A moeda comum é a única forma de garantir estruturalmente um campo de informação unificado.

Abaixo mostro um cronograma da criação dos três grandes sistemas multinacionais de moedas até o ano 2020. Note que todas estas moedas multinacionais são moedas convencionais do tipo banco-dívida, a única diferença é o fato de serem usadas em uma área geográfica mais ampla e não em um único país.

A Criação de Moedas de Integração Multinacional (1958-2020)
1958: O tratado de Roma começa a unificação do “Mercado Comum Europeu”, uma zona de livre comércio de 6 países (Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo).
1960: A Convenção de Estocolmo lança a Associação Europeia de Livre Comércio (European Free Trade Association – EFTA), tendo à frente o Reino Unido e incluindo Áustria, Dinamarca, Noruega, Portugal,Suécia e Suíça.
1967: A Declaração de Bangkok reúne 5 países (Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia) na Associação de Nações do Sudeste Asiático (Association of Southeast Asian Nations – ASEAN).
1973: O Reino Unido e diversos outros países do EFTA aderem aos 6 países do Tratado de Roma.
1978: O Primeiro Ministro da Alemanha, Helmut Schmidt e o Presidente Giscard d’Estaing da
França declaram a necessidade de uma “zona de estabilidade monetária” na Europa.
1979: Criação de uma moeda padronizada (European Currency Unit – ECU) como instrumento de convergência e integração, unidade de conta e meio de pagamento intra-europeu envolvendo 12 países.
1984: O Brunei entra na ASEAN.
1992: Pelo Tratado de Maastricht a Europa se compromete a empregar uma moeda única na recém criada “União Europeia” (UE).
1995: O Vietnã entra na ASEAN.
1996: Formação da Associação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement – NAFTA) entre os Estados Unidos, o Canadá e o México.
1997: Laos e Mianmar entram na ASEAN. O Japão propõe um Fundo Monetário Asiático de US$100 bilhões, separado do FMI; Estados Unidos e o Reino Unido vetam.
1998: Vários países latino-americanos usam o dólar como moeda legal, ou fazem experimentos com “tabelas de divisas baseadas no dólar”, constituindo, assim, uma zona de dólar.
1999: O ECU é substituído formalmente pelo euro, uma moeda única europeia com um grupo central de onze países. Começam as negociações entre o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e os países do NAFTA para a formação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
2010: O Taiwan estabelece uma união pacífica com a China baseada no princípio de um “país único, moeda única, sistemas políticos diferentes”.
2012:Criação da zona de dólar da Alca.
2015: A zona do yuan já está operando e vários países asiáticos aderem.
2020: Tratado tripartite de cooperação econômica entre as três principais zonas comerciais criadas no mundo: a União Europeia, a ASEAN e a ALCA.

  1. Algumas moedas nacionais
    Em muitos países, as moedas nacionais ainda serão empregadas por muito tempo. Elas continuam tendo uma função importante em qualquer país que não tenha aderido a um sistema formal de moeda de integração multinacional. A maior parte das transações continuará envolvendo moedas nacionais, (pelo menos como parte dos pagamentos), se não for por outra razão, porque no mínimo elas seguem sendo a moeda de “curso legal”, obrigatória para os pagamentos de impostos. A principal diferença em relação ao passado é que elas deixam de ter o monopólio absoluto da função de meio de troca. Muitos intercâmbios envolvem pagamentos usando em uma única transação moedas diferentes: a nacional, as corporativas, ou moedas virtuais.

Apenas em uns poucos países subdesenvolvidos o velho monopólio da moeda nacional ficou intacto, por exemplo na Albânia e algumas ditaduras atrasadas nas quais a prioridade do controle dos políticos sobre a Internet manteve a cibereconomia completamente bloqueada.

  1. Moedas complementares locais
    Conforme vimos nos capítulos 6 e 7, como reação à globalização econômica e em paralelo a ela, a auto-organização no nível local vem se tornando muito popular. A Revolução da Informação também significou uma redução sistemática de empregos na produção e nos serviços. À medida que os postos de trabalho ficaram escassos, as comunidades criaram moedas próprias para facilitar intercâmbios locais entre seus membros,417 mas depois de atingida uma massa crítica, as câmaras de compensação de moedas complementares na Internet possibilitaram que os membros destas comunidades participassem na cibereconomia também.

O cronograma abaixo mostra uma possível evolução de 1999 em diante.

A Criação das Moedas Complementares (1934-2020)
1934: Criação na Suíça do mais antigo sistema de moedas complementares ainda em operação: o “WIR” com 80.000 membros e um volume transacionado anual de US$2 bilhões (dados de 1997), demonstrando o potencial de escala de sistema maduros de moedas complementares.
1982: Implementação do primeiro LETS do pós-guerra em áreas de alto desemprego do Canadá.
1987: Edgar Cahn cria os Time Dollars na Flórida, em Chicago e em Washington D.C.
1990: A IRS isenta de impostos os intercâmbios em Time Dollars.
1992: Criação das Horas Ithaca, primeira moeda complementar fiduciária. O total de sistema locais de moedas de todos os tipos atinge 200 no mundo inteiro.
Década de 1990: Começa a era da redução de pessoal (“downsizing”) nas empresas, rápida expansão do número de sistemas de moedas complementares, particularmente na Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido, Alemanha e França. O Banco Central da Nova Zelândia constata que as moedas complementares ajudam na redução de pressões inflacionárias sobre a moeda nacional
1993: Missouri é o primeiro estado dos EUA a usar Time Dollars no custeio do seu sistema de assistência social.
1995: As moedas complementares atingem a marca de 1000 sistemas no mundo inteiro.
1996: Nos Estados Unidos, descentralização dos os programas federais de assistência social, que passam a ser geridos pelos estados.
1997: Nos EUA, 30 diferentes estados instituem mais de 200 sistemas de Time Dollars para fomentar a “assistência social autônoma”. E a iniciativa privada lança outros 40 sistemas de Horas Ithaca.
1998: Minneapolis, faz experimentos com o primeiro sistema de pagamento com smartcards usando simultaneamente duas moedas (dólar e uma moeda complementar local)
1999: Experimentação com um sistema descentralizado de moedas complementares com smartcards em Vancouver. Mais de 2.000 sistemas estão em operação em uma dúzia de países desenvolvidos.
2010: As moedas complementares no mundo inteiro atingem um total de 10.000 sistemas.
2020: Na maioria dos países mais avançados, as moedas complementares representam 20% do total do volume nacional comercializado.

Logicamente, há países que mantiveram à força o monopólio das moedas nacionais desprezando as novas possibilidades que a Onda Monetária e a cibereconomia oferecem. Isto teve consequências semelhantes às observadas em países como a China que no início da Revolução Industrial escolheram travar o desenvolvimento de ferrovias, o que retardou quase um século a Revolução Industrial desses países e custou um preço enorme à sua população e sua influência no mundo, e fez com que se tornassem os “Menos Desenvolvidos” (Less Developed Countries – LDCs) do século XX. Da mesma forma, as opções das pessoas hoje estão determinando quais serão os “Países Privados de Informação” (os PPIs) do século XXI.

Agora que vimos qual sistema monetário é o que mais contribui para a Abundância Sustentável, podemos entender plenamente o que estava nas entrelinhas dos relatos sobre “As Quatro Estações de 2020” no capítulo 1, e também dos quatro cenários do capítulo 5. Repassemos cada um deles resumidamente.

As quatro estações de 2020 Revisitadas
Este livro começou com uma descrição da Máquina Compactadora do Tempo e quatro relatos que capturavam as possibilidades oferecidas pela Abundância Sustentável nas vidas das pessoas no ano 2020, conforme se vê resumidamente na figura 11.2.

A viagem da neta à China

Escolha da
Moeda

Como vive o Sr.Yamada desde que se aposentou
A onda
do enve lhecimento

*
Restauração do planeta
Resolução do Conselho de Administração da Bechtel Corporation em 2020

Abundância do
Conhecimento
“Magia é qualquer tecnologia suficientemente desenvolvida” Arthur C.Clarke

Um mundo equilibrado

Figura 11.2 Os quatro relatos da Abundância Sustentável em 2020

Reconheço que naquele momento alguns destes relatos podem ter parecido irreais, “mágicos”, contos de fadas para adultos. Agora foram desmistificadas as tecnologias monetárias que alicerçam estes relatos “mágicos”. Tanto o “Plano de previdência” do Sr. Yamada como o “Mundo em Equilíbrio” resultam da disponibilidade de uma quantidade suficiente de moedas yin estáveis.

A “Resolução da Bechtel” decorre do uso de uma Moeda de Referência Global com taxa de demurrage como padrão de unidade de conta e instrumento de planejamento por grandes corporações globais. E por ultimo, a “Viagem da neta à China” descreve um mundo no qual se tornou algo indiscutível uma Economia Integral que articule moedas Yin e Yang em um equilíbrio adequado.

Em uma Economia Integral estas várias moedas operam complementando-se mutuamente de muitas formas, melhorando a qualidade de vida até das pessoas que optem por manter estritamente o tipo de emprego tradicional da Era Industrial. Ela estimula as atitudes vislumbradas por Robert D. Haas, presidente executivo da Levi Strauss sintetizadas em uma frase: “As diferenças mais evidentes entre as corporações do futuro e as de hoje não serão seus produtos nem seus equipamentos, mas quem vai trabalhar, por que vai trabalhar, e o que o trabalho vai significar para essas pessoas.”

A imagem que me vem à mente é que na Era Industrial nos acostumamos com uma caixa de ferramentas monetárias que só tinha uma ferramenta: uma chave de fenda. Mas uma chave de fenda é a melhor possibilidade, na verdade a única, se e somente se, estivermos lidando com parafusos. Quem quiser, por exemplo, pintar, pode até usar uma chave de fenda, mas o resultado não é nada convincente. Quando, por exemplo, organizações sem fins lucrativos, todas visando trazer melhoras à sociedade, disputam um dinheiro competitivo e escasso, elas estão tentando pintar com chave de fenda. A mesma imagem se aplica a quem tenta desenvolver capital social – por exemplo, através da atenção à infância e aos idosos – exclusivamente com moedas tipo Yang.

Os Quatro Cenários Revisitados

“A tarefa do futuro é ser perigoso”
Alfred Whitehead

Resumimos os quatro cenários do capítulo 5 na imagem abaixo:
Milênio Corporativo
Abundância Sustentável
Inferno na Terra
Comunidades Cuidadoras

Figura 11.3 Os Quatro Cenários do Capítulo 5

Agora podemos entender como a Abundância Sustentável se relaciona com os outros três cenários.

O Milênio Corporativo fica aquém da Abundância Sustentável por ter, como dizem os taoístas, “excesso de Yang”, pois, à medida que a ordem anterior se dissolveu, negócios e moedas Yang se sobrepuseram a todos os demais aspectos da sociedade. O Milênio Corporativo tenderá a prevalecer se num cenário de Abundância Sustentável, os ganhos da Onda Monetária e da Onda da Informação forem monopolizados pelo setor empresarial. Este é o resultado mais provável caso as autoridades monetárias e políticas reprimam as moedas locais de pequena escala, não sendo capazes ou não se mostrando dispostas a encarar as moedas emitidas pelas corporações.

Já o cenário das Comunidades Cuidadoras é um “excesso de Yin”, no qual se sobrepõem as preocupações com a coesão da comunidade depois que uma crise monetária desencadeia grandes desordens socioeconômicas.

E por último, o Inferno na Terra ocorre quando nenhum setor da sociedade ocupa o vácuo do poder deixado pelo colapso monetário.

Alvin Toffler dizia que “o que está emergindo não parece ser um futuro dominado pelas corporações nem um governo global, mas um sistema bem mais complexo… Estamos rumando para um sistema mundial composto por unidades densamente inter-relacionadas como os neurônios em um cérebro, mais do que organizados como os departamentos de uma burocracia.” Se Toffler estiver certo e se um sistema monetário compatível com este modo de ver as coisas puder se manifestar, então nosso futuro é uma Abundância Sustentável.

Conclusão
Não estamos lidando com uma crise econômica, financeira ou monetária tradicional. Estamos vivendo uma grande mutação do tecido socioeconômico da civilização global, que pode levar a resultados diversos. E não está predeterminado qual será. Quanto antes percebermos que as soluções tradicionais não são adequadas para nossa situação atual, mais rápido seremos capazes de criar o ambiente emocional, político e intelectual no qual as respostas adequadas poderão emergir.

Seja como for, uma mutação pós-industrial está aí, e no meu entender, a melhor forma que temos para lidar com ela é descentralizar e empoderar conscientemente a criatividade humana em todos os níveis. As três ondas que levam à Abundância Sustentável nos possibilitam isso.

Como bem colocou Sir Eric Tilgner: “O destino não é uma questão de sorte. É uma questão de opção.”
Lembremos, apenas, que estamos fazendo a opção pelos nossos filhos, pelos filhos deles, e por uma parte significativa da biosfera também. [o trecho a seguir está na versão argentina mas não está no original em inglês] Juntos podemos criar uma civilização global nova, uma civilização de sabedoria planetária, na qual colaboram todas as culturas humanas

Epílogo e Prelúdio

“O grande desafio da Idade Moderna não é refazer o mundo,mas refazer-nos. Seja a mudança que você deseja ver no mundo.”
Mahatma Gandhi

“Um problema não pode ser resolvido como o mesmo tipo de pensamento que o criou”
Albert Einstein

“Não vemos as coisas como elas são. Vemos as coisas como nós somos”
Anaïs Nin

A Humanidade e o Planeta Terra estão em uma encruzilhada. Nos próximos vinte anos teremos uma extinção irrecuperável de biodiversidade e a deterioração da qualidade de vida de uma quantidade gigantesca de pessoas; ou daremos o próximo passo na evolução. Dado o extraordinário poder de motivação que o dinheiro tem, mudando o sistema de moedas podemos inclinar suavemente, mas com certeza a direção para onde vamos, sem precisar re-educar nem normatizar o comportamento de bilhões de pessoas. Este livro esboçou uma rota de viagem para chegar nessa meta. Ele tratou do dinheiro no mundo exterior a nós, descreveu sistemas monetários e seus efeitos sobre a sociedade.

Mas há uma outra dimensão na questão do dinheiro. Para descobri-la, precisamos fazer uma viagem ao mundo que guardamos dentro de nós do imaginário do dinheiro. Este segundo mapa de viagem nos dará uma noção das emoções coletivas que atuam quando se trata do dinheiro. Ele integrará na nossa visão do dinheiro elementos do nosso hemisfério direito do cérebro, os símbolos e mitos ativos em nosso inconsciente, onde está a fonte primordial do poder implacável de atração do dinheiro.

Seja qual for o assunto, é incomum conectar as visões “exterior” e “interior”. Que eu saiba, é a primeira vez que se tenta isto em relação ao dinheiro. Mas a rota mais completa para chegarmos ao nosso objetivo é fechando o círculo entre o mundo exterior e nosso mundo interior, e esse é o propósito do livro intitulado O Mistério do Dinheiro: Além da Cobiça e da Escassez concebido como uma continuação deste. Nele, exploramos nossa psicologia coletiva, investigando questões como:

• O que explica o tabu do dinheiro nas nossas sociedades? Como os três principais tabus das nossas sociedades – sexo, morte e dinheiro – se relacionam entre si? Por que o dinheiro que você possui e de onde ele vem é mais tabu, até, que a sua vida sexual?
• De onde vem nossa obsessão contemporânea em relação ao dinheiro?
• Por que durante a Era Industrial as moedas convencionais emitidas pelos bancos com base em dívidas dominaram de forma tão exclusiva, se propagando pelo no mundo inteiro, independentemente do contexto cultural ou político?
• Por que emoções específicas como a ambição e o medo da escassez foram embutidas no nosso sistema monetário?
• Por que hoje estão ocorrendo mudanças fundamentais no nosso sistema monetário, depois de termos aceitado sem pensar durante séculos as moedas nacionais convencionais?

As mutações paralelas em curso hoje, mencionadas na Onda de Mudança de Valores e na Onda Monetária (capítulo 9) nos proporcionam pela primeira vez na história uma oportunidade de criar conscientemente a Abundância Sustentável. Aproveitar esta oportunidade pode ser nosso desafio mais decisivo, e para reunir a coragem necessária para enfrentá-la as palavras de Wayne Dyer podem ser muito valiosas:

“Ninguém sabe o bastante para ser um pessimista.” 418

NOTAS

1 Lapham, Lewis, Money and Class in America: Notes and Observations on Our Civil Religion, Weidenfeld and Nicolson, Nova York, 1988.
2 Trilling, Lionel, The Liberal Imagination, Viking, Nova York, 1950.
3 Drucker, Peter, The Post-Capitalist Society: Harper Business, 1993, pág 1.
4 Mesarovic, Mihaljo, e Pesterl, E., Mankind at the Turning Point: The second report to the Club of Rome, New American Library, Nova York, 1974.
5 Os dados sobre a tendência ao envelhecimento da população são da conferência realizada em San Francisco, em janeiro de 1999, por Ken Dytchwald, fundador de Age Wave Inc. e autor de, entre outras obras, Age Wave e Health Promotion for the Elderly.
6 Dados de Peter G. Petersen, “Gray Dawn: The Global Aging Crisis”, em Foreign Affairs, janeiro-fevereiro de 1999.
7 Ibid.: 43.
8 A fonte de todos os dados deste quadro é Ibid.: 44-45.
9 Ibid.: 46.
10 Killinger, Barbara, Workaholics: The Respectable Addict: 7, Key Porter Books, Toronto, 1991.
11 “Job Stress Characterized as ‘Global Phenomenon’”, em Oakland Tribune: D-11, 23 de março de 1993.
12 Greider, William, One World: Ready or Not, Simon and Schuster, Nova York, 1997, e citação em Success Digest, março de 1997.
13 William Bridges, autor de Understanding Today’s Job Shift, em conferência realizada em San Francisco, 1995.
14 Este período foi denominado pelos historiadores “o Primeiro Renascimento Europeu” e “o Renascimento Popular da Europa” devido ao alto nível de vida da população.

15 Citado por Jeremy Rifkin em “After Work”, Utne Reader: 54, maio-junho de 1995. Vários dos exemplos dados aparecem neste artigo também.
16 Dados proporcionados pelo Dr. Andrew Dlugolecki, diretor da CGNU, no relatório para a Sexta Conferência das Partes (COP 6), da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, 23 de novembro de 2000.
17 Relatório da Associated Press apresentado por Donna Abu-Nasr em 27 de novembro de 1998.
18 USA Today: 11 D, 18 de setembro de 2000.
19 “Klimawandel stoppt den Tourismus in Südeuropa”, Kreiszeitung, Nienburg, 17 de julho de 2003, pág. 1.
20 “Coral Reef Degradation in the Indian Ocean” (estudo da CORDIO, Coastal Oceans Research and Development in the Indian Ocean), em The Economist: 44, 28 de outubro a 3 de novembro de 2000.
21 Nuttal, Nick, “Climate Change Lures Butterflies Here Early”, em The Times: 5, 24 de maio de 2000. O autor informa neste artigo sobre um estudo realizado entre 1976 e 1998 pelo Centro de Ecologia e Hidrologia de Monks Wood, Cambridgeshire, publicado em Global Change Biology.
22 Davidson, Keay, “Ice of Antarctica May Be Melting”, em San Francisco Examiner: A4, 2 de agosto de 1998.
23 The Economist: 32, 1 de janeiro de 1999.
24 Caffrey, Andy, “Antarctica’s ‘Deep Impact’ Threat”, em Earth Island Journal: 26,1998.
25 World Scientists’ Warning to Humanity.
26 Perlman, David, “Warning of Impact of Global Warming: Scientists Forecast Economic Disruptions”, em San Francisco Chronicle: pág. A-4, 29 de janeiro de 1999.
27 Adbusters: Journal of the Mental Environment: 41, 1997.
28 Por ter recebido a Medalha John Bates Clark Medial, concedida ao melhor economista dos EUA com menos de 40 anos.
29 Krugman, Paul, “The Return of Depression Economics”, em Foreign Affairs: 42-74, janeiro-fevereiro de 1999.

30 Russell, Peter, The White Hole in Time: 198, Aquarian/Thompson, Nova York, 1992.
31 Dee Hock, fundador e presidente emérito da Visa International.
32 Donella Meadows e colaboradores, Beyond the Limits: 191, Chelsea Green Publishing, Post Mills (Vermont), 1992 (os destaques em itálicos são do original).
33 Oates, J., Babylon: 25, Londres, 1979.
34 A sustentabilidade foi definida como um processo e não um estado passivo no “Relatório Brundlandt” elaborado para a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (World Commission on Environment and Development, WCED), publicado com o título de Nosso Futuro Comum (Oxford University Press, Oxford, 1987), e em Meadows e colaboradores, op. cit.
35 Entrevista pessoal com Tsutomu Hotta em 20 de fevereiro de 1999.

36 US News and World Report: 72, 30 de dezembro de 1996.

37 Em Bali há mais de mil templos, cada um celebra um festival Odalan, de cerca de três dias, a cada 210 dias. Além disto, há festivais periódicos a cada lua cheia, e a cada 4, 10 e 100 anos. Por outro lado, existem cerimônias domésticas e 5 ou 6 cerimonias importantes na vida de cada pessoa; sendo a mais importante, a cremação, cuja preparação pode levar um mês ou mais. Em Bali, em geral, os homens hindus dedicam 30 por cento das suas vidas e as mulheres 40 por cento à sua preparação para o “tempo do templo”, ou à celebração das cerimônias.
38 A GEN articula várias ecovilas de todo o mundo, como Findhorn (Escócia), The Farm (Tennessee, EUA), Lebensgarten (Steyerberg, Alemanha), Crystal Waters (Austrália), Ecoville (São Petersburgo, Rússia), Gyûrûfû (Hungria), The Ladakh Project (India), o Manitou Institute (Colorado, EUA) e a Associação Dinamarquesa de Ecovilas. Seus principais escritórios regionais são na Austrália, na Alemanha, nos EUA e na Dinamarca.

39 Krüger, M., e Godschalk, H., Herausforderung des Bestehenden Geldsystems im Zuge seiner Digitalisierung – Chancen für Innovationen, Institut für Technikfolgenabschätzung und Systemanalyse, Karlsruhe, 1998. O sistema russo da Coroa de Ouro é um dos três estudos de caso.
40 Jevons, William Stanley, Money and the Mechanism of Exchange, Londres, 1875.
41 Durban, Charles F., “The Bank of Venice”, em Quarterly Journal of Economics, Vol. 6, Nº 3, abril de 1892.
42 Heichelheim, F.M., An Ancient Economic History: 122, Leiden, 1958, vol. III.
43 Davies, Glyn, A History of Money from Ancient Times to the Present Day: 180, University of Wales Press, Cardiff, 1994.
44 Goodrich, L.C., A Short History of the Chinese People: 152, Londres, 1957.
45 Dent, J.M., The Travels of Marco Polo: 202-05, cap. XVIII, Londres, 1908.
46 Em todas as cédulas de dólares dos Estados Unidos estão impressos os seguintes dizeres: “Esta cédula é de curso legal para todas as dívidas públicas e privadas”. Na prática, isto significa que se uma pessoa deve dinheiro e o credor se recusar a aceitar o pagamento em dólares, a primera pode simplesmente declarar que a dívida foi liquidada e os tribunais respaldarão sua decisão.
47 Para ser preciso: embora a carta patente do Banco da Inglaterra date de 1688, o monopólio da emissão de papel moeda foi concedido pelo rei Guilherme III em 1694, apenas, quando ele necessitou urgentemente de 1,2 milhão de libras esterlinas adicionais para guerrear contra os franceses. Analogamente, no caso da Suécia, o direito a emitir papel moeda foi concedido ao então chamado Riksens Ständers Bank quando a coroa buscou recursos para custear sua guerra contra a Dinamarca. Embora a introdução do papel moeda tenha possibilitado a transferência do poder de emitir moeda dos monarcas para os bancos, a causa imediata desse processo foi a guerra.
48 Galbraith, John Kenneth, Money: Whence it Came, Where it Went, André Deutsch, Londres, 1975.

49 A legislação estipula que somente 10% de um valor depositado seja mantido como “reserva” para o caso de o cliente desejar sacar. Por este motivo, até 90% ficam disponíveis para serem emprestados novamente. Alterar estes percentuais é uma das técnicas que o Fed usa para controlar quantidades de dinheiro que os bancos poderão criar na forma de créditos. O percentual exato também varia em função de do tipo de depósito: quanto maior o prazo do depósito, menor é a porcentagem exigida de “reservas”. A regra dos 90% deste exemplo, possibilitando um “multiplicador monetário” de 9 para 1 é uma média meramente ilustrativa.
50 Mayer, Martin, The Bankers: 16, Weybright and Talley, Nova York, 1974.

51 Mayer, Martin, The Bankers: the New Generation: 16 e 19, Truman Talley Books/Dutton, Nova York, 1997.

52 Mais adiante mostro que as milhas oferecidas gratuitamente pelas companhias aéreas estão se convertendo gradualmente em uma moeda privada (um “corporate scrip”). As milhas são uma das moedas do futuro?

53 Moore, Carl H., e Russell, Alvin E., Money: Its Origin, Development and Modern Use: Jefferson (NC) McFarland, 1987 pág.74.

54 Schor, Juliet B., The Overspent American: Upscaling, Downshifting and the New Consumer: 19, Basic Books, Nova York, 1998.

55 Friedman, Milton, “Quantity Theory of Money”, em Money: 15¸ W.W. Norton, série “The New Pelgrave”, Nova York e Londres, 1989.

56 Fonte dos dados de 1970 a 1990 Tabela P.1 em Deane, Marjorie e Pringle, Robert, The Central Banks, Nova York: Viking, 1995, págs. 352 a 354; e International Labor Office Monthly Bulletin of Statistics de 1990 a 1996.

[aos revisores: Na edição argentina há, dois números remetendo ao mesmo comentário (notas 64 e 70 (= footnote 60 do inglês.) Por isto, no local onde aparece o número 64 no corpo do texto da versão argentina não deve haver número nenhum. No original, o gráfico que a que se refere esta nota aparece só várias páginas depois.]

57 Gráfico atualizado conforme Lietaer, Bernard, The Future of Money: Creating New Weatlh, Work and a Wiser World: 314, Random House, Londres, 2001.

58 Banco de Compensações Internacionais, Triennial Central Bank Survey of Foreign Exchange and Derivatives Market Activity: 2004 – Final Results, 17 de março de 2005, pág. 1

59 Byrne, E.H., Genovese Shipping in the 12th and 13th Century: 14, Mediaeval Academy of America, Cambridge, (Massachusetts), 1930.

60 Banco de Compensações Internacionais, Triennial Central Bank Survey of Foreign Exchange and Derivatives Market Activity, setembro de 1998.
61 Nenhuma das anteriores. Dois trilhões de segundos nos remontam a uma época dez mil vezes mais antiga que o Neolítico (5000 a.C.) e umas mil vezes mais antiga que a do Cromagnon (40.000 a.C.). Nossa máquina de imprimir dinheiro precisaria ter sido ligada por algum dinossauro do período Cretáceo. Mais precisamente, dois trilhões de segundos equivalem a mais de 63.418.500 años.

62 Estas estatísticas foram obtidas comparando o total diário de transações em divisas, conforme o relatório trianual do BIS e o Total do Comércio Internacional Anual dividido pelo número de dias. Algumas operações cambiais são contadas duas vezes, porque os bancos, para não ter em seus registros posições particularmente altas de determinados clientes, podem compensá-las com outras operações no mercado de modo que uma única transação especulativa pode originar outras. Não conheço dados estatísticos confiáveis sobre a proporção exata em que este procedimento ocorre, mas mesmo que a totalidade das transações cambiais especulativas fosse contada duas vezes, reduzindo o volume total das transações especulativas originais a US$ 1 trilhão, as proporções seriam 96% transações especulativas contra 4% “reais” (e não 98% contra 2%) e meu argumento continuaria igualmente válido. E subtraindo-se as transações contadas duas vezes, a velocidade do crescimento do volume da atividade especulativa diminuiria um pouco – atualmente o volume dobra a cada três anos.

63 Os termos “Liquidez” e “profundidade” de um mercado financiero se referem aos volumes transacionados, que resultam na possibilidade de deslocar grandes quantidades de recursos sem afetar significativamente os preços. Em um mercado com pouca “profundidade” uma só operação de grande vulto impacta muito os preços.
64 Keynes, John Maynard, The General Theory of Employment, Interest and Money: 159, Macmillan, Londres, 1936.
65 Na chamada “Crise das tulipas” da Holanda, em1637, jogaram a culpa na existência de um mercado futuro. Em 1929 nos monopólios, e em 1987 no comércio via Internet. O que estes casos têm em comum é o fato de que quem levou a culpa foi o último invento financeiro da época. No livro The Mystery of Money: Beyond Greed and Scarcity apresento uma explicação mais profunda, aplicável a todas as crises financieras importantes no mundo nos últimos 350 años.

66 Eisworth, Peter em The New York Times, 16 de fevereiro de 1999, pág. A1A, baseado em Kristoff, Nicholas D., e Sanger, David E., “How US Wooed Asia to Let Cash Flow in”.
67 Davies, Glyn, op. cit.: 646.
68 Citado por Weatherford, Jack, The History of Money: 264, Crown Publishers Inc., Nova York.
69 Os principais tipos de derivativos cambiais são os futuros, os forwards e as opções, definidos tecnicamente da seguinte forma:
• Futuros: Um futuro cambial é um acordo de compra ou venda de divisas em um local e data especificados (uma bolsa de mercadorias) no futuro a um preço especificado hoje.
• Forwards: Similares aos Futuros, exceto pelo fato de que o preço é o preço de hoje e o contrato não é negociado em uma bolsa, mas diretamente com uma instituição financeira específica (“de balcão”).
• Opções: uma opção cambial é o direito, mas não a obrigação de comprar (“call”) ou vender (“put”) divisas a um preço específico. Atribui-se o desenvolvimento do mercado de opções às inovações teóricas dos Professores Robert Melton e Myron Scholes na área de determinação de preços de opções, pelas quais receberam em junho de 1997 o prêmio oferecido pelo Banco Central da Suécia ( “em Memória de Alfred Nobel”).
Estes instrumentos são as peças cujas combinações permitem a transferência de muitos riscos. Algumas delas [“exóticas”] podem chegar a ser bastante complexas. Todos estes instrumentos existem também para outras mercadorias, que não as divisas, mas, em termos relativos, os derivativos cambiais, particularmente os “de balcão”, tornam diminuto o volume dos derivativos de todas as demais mercadorias.
70 Martin Mayer, op. cit.: 324. O autor sustenta sua argumentação dizendo que: “o exemplo óbvio é a área do índice SP500 na Bolsa de Chicago, onde se supunha que os cerca de duzentos ex-taxistas que operavam como ‘locais’ dariam conta da cobertura dinâmica do ‘seguro do portfolio’ quando a bolsa quebrou em 19 de outubro de 1987.”

71 Diálogo telefônico entre Nova York e Londres poucas semanas antes do desastre segundo publicado no Financial Times de 20 de setembro de 1996, pág.10, em Gapper, John, e Denton, Nicholas, All that Glitters, Hamish Hamilton, Londres, 1996.
72 Guttmann, Robert, How Credit-Money shapes the Economy: the United States in a Global System, Armonk, Nova York, e M. E. Sharpe, Londres, 1994.
73 Keynes, John Maynard, The Economic Consequences of Peace: 220, Londres, 1920.
74 Dados extraídos de Elsworth, Peter C. T., “The Path of Crisis”, em The New York Times: pág. A8, 17 de fevereiro de 1999.
75 Cassidy, John, “The New World Disorder”, em The New Yorker: 199-200, 26 de outubro e 2 de novembro de 1998.
76 “Hot Money”, em Business Week: 46, 20 de março de 1995.
77 Edey, Malcolm, e Hviding, Ketil, An Assessment of Financial Reform in OECD Countries (OECD Working Paper 154), 1995.
78 No mercado de divisas, todas as posições são ao mesmo tempo “long” (compradas) em uma moeda e “short” (vendidas) em outra. No nosso exemplo, pode-se comprar marcos alemães ou dólares (estar “long”, usando o jargão), e vender francos franceses (ficar “short” em francos).
79 Deane, Marjorie, e Pringle, Robert, op. cit.: 178.
80 Soros, G., The Alchemy of Finance: Reading the Mind of the Market: 69, Weidenfeld and Nicolson, Londres, 1988.
81 Kurtzman, J. The Death of Money: How the Electronic Economy has Destabilized the World’s Markets and Created Financial Chaos, Simon and Schuster, Nova York, 1993.
82 Volcker, P. e Gyohten, T., Changing Fortunes: The World’s Money and the Threat to American Leadership, Times Books, Nova York, 1992.
83 Carmine Rotondo, operador de câmbio do Security Pacific Bank, citado em Hobart Rowen, “Wielding Jawbone to Protect the Dollar”, Washington Post, 15 de março de 1987, pág. H-1.

84 Jeff Gerth e Richard W. Stevenson, “Poor Oversight Said to Imperil World Banking: Tide of Money is Seen as Continous Threat”, The New York Times, 22 de dezembro de 1997, pág. 1.
85 O título e os dados deste quadro foram extraídos do último dos quatro artigos de duas páginas publicados no New York Times entre 16 e 19 de fevereiro de 1999, de co-autoria de Nicholas D. Kristof e vários outros jornalistas. Esses artigos apresentam um panorama sem precedentes na imprensa dos Estados Unidos, das turbulências monetarias mundiais e suas consequências para as pessoas em geral.
86 Fonte: The New York Times, 17 de fevereiro de 1999, pág. A10.
87 Georg Simmel, Philosophy of Money, Routledge, 2a. edição, Londres e Nova York, 1990 (a edição original em alemão é de 1900).
88 Galbraith, J. K., Money: Whence it came, where it went, Houghton Muffin Co., Boston, 1975, pág 5.
89 Needleman, J., Money and the Meaning of Life, Nova York: Doubleday Currency, 1994, pág. 239.
90 Skidelsky, R., John Maynard Keynes: The economist as a savior, Vol II, Nova York: Penguin, 1994, pág 312. Também citado por Lawrence S. Ritter em Money and Economic Activity, Boston: Houghton Mifflin, 1967, pág. 33.
91 Keynes, J. M., A Treatise on Money, Londres, 1930, capítulo 1, pág. 13.
92 Mysterium Geld: Emotionale Bedeutung und Wirkungweise eines Tabus (München: Riemann Verlag, March, 2000).
93 O congressista Bill Dannemeyer, da Carolina do sul escreveu aos seus eleitores: “Não é acaso que o experimento dos Estados Unidos com o padrão cédula de dólar, um padrão variável, vem sendo realizado ao mesmo tempo em que nossa cultura questiona se a civilização americana se baseia na ética judeu-cristã, ou no Humanismo Secular. A ética judeu-cristã envolve regras formais dadas por Deus usando como veículo a Bíblia. O Humanismo Secular envolve regras variáveis adotadas pelo ser humano e ajustadas conforme se considera adequado.” Citação de Greider, William, The Secrets of the Temple (New York: Touchstone Books, 1987) pág. 230.

94 Ferguson, Sarah, “Star Trek: The next currency”, em Worldbusiness: 14, 1995.
95 Greider, William, The Secrets of the Temple: op. cit. pág 240.
96 Glyn, Davies, op. cit. pág 27.
97 Buchan, James, Frozen Desire: The Meaning of Money, Farrar, Strauss & Giroux, Nova York, 1997, pág. 17.
98 Stanley, How I Found Livingstone: 22-24, Londres, 1874.
99 Williams, Jonathan, Money: A History: 207-09, St. Martin’s Press, Nova York, 1997.
100 Proust, Marcel, Le Temps Retrouvé.
101 Buchan, James, op. cit.: 19-20. O destaque em itálico é meu.

102 Uma tradução literal da palavra Zeitgeist seria “Spirit of the Age” (espírito da época), mas a tradução em inglês não faz realmente justiça ao termo original em alemão. Zeitgeist captura também o estado de ânimo, as ideias em voga, e as formas artísticas através das quais este estado de ânimo e ideias se expressam. É interessante que o conceito de Zeitgeist, e os constructos que o acompanham – Weltanschauung (literalmente, “modo de ver o mundo”) e o conceito de estado-nação – foram desenvolvidos simultaneamente pelo filosofo alemão Hegel (1770-1831).

103 Hegel desenvolveu o conceito teórico de estado-nação pertencente a seus habitantes, em oposição ao de feudo privado ou oligárquico, que foi a norma dos reinos ou impérios ao longo da história.
104 Handy, Charles, The Empty Raincoat: 108, Arrow Business Books, Londres, 1995.
105 Commitee on the Working of the Monetary System, Report. Her Majesty’s Stationary Office, Londres, 1959, pág. 117, págrafo 345.
106 Jackson & McConnell, Economics, McGraw-Hill, Sidney, 1988.

107 Note que eu uso a palavra “suficientes” e não “excessivas” Os economistas –com razão – destacarão que quando há excesso de qualquer coisa (incluindo o dinheiro), ela passa a ser tratada como se não tivesse valor. E isto não ocorre com a suficiência. Os sistema de crédito mútuo – analisados nos próximos capítulos – criam moeda suficiente (por exemplo horas de serviço) sem ser escassa, mas sem ser excessiva, também.
108 O relato do Décimo Primeiro Círculo é uma ilustração simplificada para não economistas, isolando o impacto do juro no sistema monetário. Para isolar esta variável em particular, eu adotei como premissa crescimento zero na sociedade: zero de crescimento da população, zero de crescimento da produção e da oferta de moeda. Na prática, logicamente, estas três variáveis crescem ao longo do tempo, o que torna mais difícil de identificar o impacto do juro. O que o “Décimo Primeiro Círculo” demonstra é, simplesmente, que – tudo o mais constante – está estruturalmente embutida no sistema atual a competição para se obter um dinheiro adicional para pagar juros, um dinheiro que nunca foi emitido.
109 Thuillier, P., “Darwin chez les Samourai”, em La Recherche: 1276-80, Nº 181, Paris, 1986.

110 Sahtouris, E., Earth Dance: Living Systems in Evolution, Metalog Books, Alameda (California), 1996.

111 O preço usado neste cálculo (generoso para 2001-2002) foi 300 dólares a onça do ouro, equivalente a cerca de 9375 dólares o quilo. O peso ou massa da Terra em quilos é 5973 seguido de 21 zeros. O ano da independência dos Estados Unidos é 1776. O investimento de José a 4% teria atingido US$29,692 milhões de trilhões, (29.692 seguido de 24 zeros).

112 Kennedy, Margrit, Dinero Sin Inflación Ni Tasas de Interés, Nuevo Extremo, Buenos Aires, 1998; e em inglês Interest and Inflation Free Money: 26, Sava International, Okemos (Michigan), 1995. Há também uma edição alemã.

113 Hacker, Andrew, Money: Who Has How Much and Why?: 17, Scribner, Nova York, 1997. Dados do Censo dos Estados Unidos.
114 Fonte: Projeto Responsible Wealth – http://www.responsiblewealth.org.
115 Meadows, Donella, “Wealthy Stand up for Greater Equality”, em Bennington Banner, novembro de 1997.
116 Korten, David, “Money versus Wealth”, na revista YES! A Journal of Positive Futures: 14, Nº 2, 1997. Este número se baseia no estudo realizado em 1996 por Sarah Anderson e John Cavanagh para o Institute for Policy Studies.
117 Gates, Jeff, The Ownership Solution, Perseus Books, Boulder, 1998.
118 Kelly, Kevin, New Rules for the New Economy: 141, Viking, Nova York, 1998.
119 Citado em Mayer, Martin, The Bankers: The Next Generation: 129, Truman Talley Books/Dutton, Nova York, 1997.

120 “Survey of the World Economy”, em The Economist: 3-4, 28 de setembro de 1969.
121 Cálculo feito por John Gage, pesquisador-chefe da Sun Microsystems. Ele estimou, também, que em 1999 os smartcards atingiriam um total de 600 milhões de unidades.
122 von Tunzelman, G. N, Steam Power and British Industrialization to 1860, Clarendon Press, Oxford, 1978.
123 “Survey of the World Economy”, em The Economist: 10, 28 de setembro de 1969.
124 Cleveland, Harlan, Fairness and the Information Revolution, em World Business Academy, Vol. 11, No. 2, 1997.
125 Cleveland, Harlan, Leadership and the Information Revolution, World Academy of Art and Science, Minneapolis, 1997, e The Knowledge Executive: Leadership in an Information Society, Truman Talley Books/ E. P. Dutton, Nova York, 1985.
126 Rheingold, Howard, Virtual Reality and Virtual Community, HarperPerennial, Nova York, 1993.

127 Comentários de Ted Hall, diretor da Mc Kinsey & Co, no State of the World Forum em San Francisco, novembro de 1997.

128 Cleveland, Harold, The Knowledge Executive: Leadership in an Information Society, Truman Talley Books/ E.P. Dutton, Nova York, 1985.

129 Esta lei remonta à economía agrária. Ela indica que quando se aplica a um dado lote de terra um insumo adicional, como um fertilizante ou mão-de-obra, cada unidade extra de insumo produz um rendimento inferior ao rendimento da unidade extra anterior. Em um certo ponto, o excesso de fertilizante (ou de mão-de-obra) na verdade reduz a produção.

130 Arthur, Brian, “Increasing Returns and the Two Worlds of Business”, em Harvard Business Review, julho de 1996.

131 Produto Interno Bruto.
132 Cleveland, H., “Fairness and the Information Revolution”, op. cit. Os destaques em itálico são do original.
133 Frank, Robert, e Cook, Philip, The Winner-Takes-All Society, Free Press. Veja também o artigo fundamental de Rosen, Sherwin, “The Economics of Superstars”, de 1981.
134 Wired: 202, novembro de 1997.
135 Jacobs, Garry; Macfarlane, Robert: ParaEngine in Cyberspace: Opportunity of the Millennium (PARA: 11E 22d Street, Lombard, IL 601 48) 1999. [aos revisores: esta referência foi retificada pelo autor via email]
136 Hilzenrat, David S., “Change is Good, They Bet” e “Fewer Middlemen, Bigger Margin”, em The Washington Post: 13, 21 de outubro de 1997.
137 Platt, Charles, “Digital Ink”, em Wired: 162-65, maio de 1997.
138 As impressoras POD (print-on-demand) atuais pertenecen à Ingram Book Company, o maior atacadista de livros dos Estados Unidos. A aplicação primordial dessas máquinas é a produção de cópias de livros esgotados, e centenas deles já estavam disponíveis em 1998. Os otimistas veem nelas uma forma de evitar que os livros fiquem esgotados. Os pessimistas veem o risco de que alguns livros nunca sejam produzidos “da forma normal”.

139 Gosling, P., Changing Money: How the Digital Age Is Transforming Financial Services, Bowerdean, Londres, 1999.
140 Smart-card News, fevereiro de 1999.
141 Boyle, D., E-Money, em Financial Times Management Report, dezembro de 1999.
142 Em um encontro em Washington, patrocinado pelo Departamento do Tesouro. Citado em Mayer, Martin, The Bankers: The next generation: 34, op. cit.
143 The Forrester Report: Money and Technology – Open Finance: 3, Vol. II, No. 4, dezembro de 1996.
144 Boyle, David, “The Scandal of the Tax Havens”, em New Statesman, 13 de novembro de 1998.
145 Sainsbury’s é uma das maiores cadeias de varejo britânicas, com 380 supermercados. A empresa abriu um banco Sainsbury’s para que os clientes possam fazer suas operações bancárias dentro das lojas. Ela tem intenção de oferecer vários tipos de contas, cartões Visa standard e ouro, cheques, empréstimos pessoais e até hipotecas. Veja Rankine, Kate “Sainsbury’s plans to open as bank: Challenge to rivals in food and finance” London: The Daily Telegraph (26 de outubro de 1996).
146 A citação de Eliot pertence a The Rock, e a de Cleveland, a The Knowledge Executive, op. cit.
147 Valéry, Paul, Historical Fact, 1932.
148 Schwartz, Peter, The Art of the Long View: 43, Doubleday Currency, Nova York, 1996.

149 Botkin, J., Elmandjira, M., e Malitza, M., No Limits to Learning: Bridging the human gap, Pergamon Press, Nova York, 1979.
150 Schwartz, Peter, “Foresee the Futures: The Art of the Long View”, Soundview Executive Book Summaries, vol. 13, Nº 8, parte 2, agosto de 1991, págs. 1-3.
151 Schwartz, Peter, The Art of the Long View, Doubleday, Nova York, Currency, 1996.
152 Sunter, Clem, The World and South Africa in the 1990s e The High Road: Where are we now?, Tafelberg, Huam and Rousseau, Cidade do Cabo, 1996.
153 Smart cards parecem cartões de crédito de plástico, mas eles têm um chip de computador ao invés da tarja magnética para armazenar dados. Isto permite não apenas armazenar muito mais informação, como também processar tais dados para fins de identificação e encriptação..

154 O “Acordo do Plaza”, firmado pelo grupo ‘G-5’ (os cinco bancos centrais mais importantes do mundo: dos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido e França), no Plaza Hotel de Nova York em 1985, visava um esforço coordenado para gradualmente reduzir o valor do dólar nos mercados mundiais. Ele marcou o fim da política não intervencionista dos Estados Unidos nos mercados de câmbio.

155 Recebeu o nome da cidade holandesa na qual os países da União Europeia, em 1999, definiram a implementação da fase subsequente do processo de integração, com a introdução da moeda única (o euro).
156 Esta terminologia e esta metodologia são emprestadas de Schwartz, Peter, The Art of the Long View: 19, op. cit.

157 Time, abril de 1998.
158 Veja Havelock, Eric A. The Muses Learn to Write: Reflections on orality and literacy from antiquity to the present, Yale University Press, 1998.

159 Shlain, Leonard, The Alphabet versus the Goddess: The conflict between word and image, Viking, Nova York, 1998.

160 McLuhan, Marshall, The Gutenberg Galaxy: The making of typographical man, University of Toronto Press, Toronto, 1962.

161 Veja, entre outros, McLuhan, Marshall, The Medium is the Message: An inventory of effects, Hardwired, 1996.

162 Relatório especial da Business Week “Making Money on the Net”: 104, 23 de setembro de 1996.

163 O estilo deste cenário e parte do seu conteúdo foram inspirados em dois artigos: “Altered States”, (estados alterados) de Paul Rogers, e “The Wild Frontier” (a fronteira selvagem), de Peter Popham, ambos publicados no Sunday Review, suplemento dominical do Independent, de 13 de outubro de 1996, págs. 10-14. Embora algumas ideias sejam provenientes destes textos, adicionei algumas e há diferenças substanciais, com as quais os autores talvez não concordem, por este motivo, assumo plena responsabilidade pelas modificações.

no original em inglês, entre a nota anterior e a próxima há no corpo do texto o número de nota 170, mas não há nota no rodapé.
Depois, há o número de nota 171, mas não há nota no rodapé. Ela foi eliminada da tradução, conforme mensagem do autor.

164 Handy, Charles, The Empty Raincoat, Arrow Business Books, Londres,1992.

165 Postman, Neil, Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business, Penguin Books, Nova York, 1986, e Gans, Herbert J., Deciding What’s News: A study of CBS Evening News, NBC Nightly News Newsweek and Time, Vintage Books, Nova York, 1980.

166 Um dos melhores estudos sobre este tema é de Korten, David, When Corporations Rule the World, BerretKoehler, San Francisco, 1996.

167 Greenspan, Alan, “Fostering Financial Innovations: The role of government”, em The Future of Money in the Information Age: 49-50, The Cato Institute, Washington, 1997.

168 Wired: 287, setembro de 1997.

169 Wired: 149, fevereiro de 1999.

170 As informações deste quadro são um resumo do artigo da Wired de julho de 1998, pág. 86.

171 OCDE é a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Ela reúne os 24 países mais “desenvolvidos” do mundo e sua sede é em Paris.
172 The Economist, 22 de março de 1997, pág. 143, e 21 de março de 1998, pág. 135.
173 Astin, Alexander W., Parrott, Sarah A., Konr, William S., e Sax, Linda J., The American Freshman: Thirty Year Trends, 1966-1996, UCLA, fevereiro de 1997.
174 Sarah Anderson e John Cavanagh em um estudo realizado para o Institute for Policy Studies, 1996.
175 Paul Hawken, citado por Korten, D., The Post-Corporate World: Life After Capitalism: 8, capítulo 2, Berret-Koehler, San Francisco, 1999.
176 Citado em A Matter of Fact, vol. 25, julho-dezembro de 1996.
177 Hacker, Andrew, op. cit.: 105-122, [número de página errado na edição argentina] capítulo 8.
178 Bureau of the Census: Government Finances Series GF, Nro. 5, vários anos. Veja também Bartlett, Donals, e Steele, James, America: Who really pays taxes?
179 The Economist: 65, 5-11 de julho de 1997.
a nota aqui em baixo está diferente no inglês diz linda sax
180 Astin, Parrot, e colaboradores, op. cit.: 14.

181 Hamelink, Cees J., “The Right to Communicate”, em IDOC Internazionale, janeiro-junho de 1996.
182 A maior parte dos exemplos está documentada em Adbusters: Journal of the Mental Environment, inverno de 1997. As exceçoes são os exemplos dos anúncios da praia e do Metro Cinevision, sobre os quais foi informado na Public Radio International, e os especificados nas notas seguintes.
183 USA Today, 15-17 de setembro de 2000.
184 Technology Review: 122, setembro-outubro de 2000.

185 Elliott, Stuart, “Digital Image Magic: Going Where No Ads Have Gone Before”, em International Herald Tribune: 9-10, 2-3 de outubro de 1999.
186 Fonte: zenit.org (agência de notícias), 6 de março de 2001.
187 Swimme, B., “The Hidden Heart of the Cosmos”, conferência realizada no State of the World Forum, San Francisco, novembro de 1997.
188 De Long, Bradford, e Froomkin, Michael, “The Next Economy”, em Beyond the Economics of Digital Information and Intelectual Property, MIT Press, Cambridge, 1998. Os destaques são do autor.
189 Citado por Kaplan, Robert, em “Was Democracy Just a Moment?”, Atlantic Monthly: 73, dezembro de 1997.
190 Kaplan, Robert, em “Was Democracy Just a Moment?”, art. cit.: 73.
191 Technology Review: 50, setembro-outubro de 2000.
192 Serco Ltd. É uma empresa negociada na Bolsa de Londres, cujo faturamento decuplicou em uma década, atingindo £574 milhões em 1998. Agora tem 20.000 funcionários operando em 32 países. Veja http://www.serco.com.
193 Kaplan, Robert, em “Was Democracy Just a Moment?”, art. cit.: 71.
194 Ibid.: 76 e 73.
195 Lempinen, Edward, “Journalists Probe Their Own Credibility Gap”, em San Francisco Chronicle Saturday: A7, 2 de agosto de 1998.
196 Keohane, Robert, e Nye, Joseph, “States and the Information Revolution”, em Foreign Affairs: 90, setembro-outubro de 1998, vol. 77, Nº 5.
197 Lempinen, Edward, art. cit.: A1.

198 Baker, Russ, “The Big Squeeze”, em Columbia Journalism Review, outubro de 1997.
199 Barlett, Donald L., e Steele, James B., “What Corporate Welfare Costs”, em Time, 6 de novembro de 1998.
200 Dados todos de Barlett e Steele, op. cit.
201 Nader, Ralph, Civics for Democracy, Essential Information, PO Box 19405, Washington DC 20036.

202 Hubbard, Harold R., “The Real Cost of Energy”, em Scientific American: 36, vol. 264, nº 4, abril de 1991.
203 Korten, David, When Corporations Rule the World: 74, San Francisco: Berret-Koehler Publishers, 1997.
204 “How Subsidies Destroy the Land”, em The Economist: 49, 13 de dezembro de 1997.
205 Abreviado e adaptado do cenário hipotético sobre a Geração X elaborado pela Global Business Network, em Netview: 5-7, vol. 7, nº 1, invierno de 1996.
206 “bug do milenio” (Y2K na gíria da época). Ver também Ludwig, Mark, Millennium: Gateway to a Cashless Society, American Eagle Publish., 1997, e Yourdon, Edward, e Yourdon, Jennifer, Time Bomb 2000, Prentice Hall, Nova York, 1998.
207 Várias pessoas previram variações diferentes deste colapso. Veja Kurzman, J., ou Soros, G.
e Shelton, Judy, Money Meltodown: Restoring Order to the Global Currency System, The Free Press, Nova York, 1994.
208 Com exceção, curiosamente, do franco suíço, que do ponto de vista técnico contiua sendo respaldado totalmente em ouro. A Suíça é o único país que não pertence oficialmente ao FMI, embora tenha um assento no chamado grupo “10+1”, que reúne os 10 países que possuem as moedas mais importantes, mais a Suíça.
209 Para os leitores que talvez não se recordem do que ocorreu nos anos 1960, Haight e Ashbury Street são lugares emblemáticos onde teve início oficialmente a “revolução dos filhos das flores”.
210 “Homebase: A Regional Support Center for Homelessness – Policy and Programs”, em 10 Points: 4, primavera de 1989, San Francisco.
211 The Progressive Review, Nº 105.7 (site da AFL-CIO).
212 AFDC-HAP é a sigla de “Aid to Families with Dependent Children – Homeless Assistance Programs” [Assistência a Famílias com Filhos e Dependentes – programa de assistência a pessoas em situação de rua].

213 Center for Common Concern, A Homebase Report, San Francisco, relatórios anuais de 1989, 1993, 1994 e 1996.
214 Dados extraídos de “Report to Congress: Education for Homeless Children and Youth Program, Stewart B. McKinney Homeless Assistance Act, Title vii, Subtitle B”, julho de 1995. Estes dados correspondem a relatórios sobre crianças com dificuldades para freqüentar a escola por estarem em situação de rua.
215 Homes for the Homeless, Inc., “A Tale of Two Nations: The creation of American ‘poverty nomads’”, janeiro de 1996.
216 Waxman e Hinderliter, A Status Report on Hunger and Homelessness in America’s Cities: 1996, Conferência de Prefeitos dos Estados Unidos, 1520 Eye St. NW, Suite 400, Washington dc 20006-4005.
217 Tecnicamente, “moradia acessível” é definida como a moradia que custe até 30% da renda antes de impostos. “Preço justo de mercado” é o custo de uma moradia não subsidiada em uma dada área.
218 Kaufman, Tracy, Housing America’s Future: Children at risk, Low Income Housing Coalition, Washington, 1996.
219 Waxman e Hinderliter, op. cit.
220 Homes for the Homeless, Inc., The New Poverty: A generation of homeless families, Nova York, 1992.
221 “Homebase…”, em 10 Points: 3, primavera de 1989.
222 Children’s Defense Fund (CDF) e National Coalition for the Homeless, Welfare to What? Early findings on family hardship and well-being (http:// childrendefense.org/fairstart_welfare2what.html, dezembro de 1998).
223 Quotable Women, Running Press, Londres, 1991.
224 Needleman, Jacob, Money and the Meaning of Life: 177, Doubleday Currency, Nova York, 1991.
225 Timberlake, Richard H., “Private Production of Scrip-Money in the Isolated Community”, em Journal of Money, Credit, and Banking: 437-47, Timberlake, vol. 19. No. 4, novembro de 1987.

226 Naisbitt, John, Megatrends: 183, Warner Books, Nova York, 1982.
227 Chicken Soup for the Soul: 149, Health Communications, Inc., Deerfield Beach (Florida), 1993.
228 Primeira e segunda acepção do termo “job” no Oxford English Dictionary.
229 O texto original desta homilia é: “That weore waes begunnen onzean Godes willan”.
230 Premier’s Council on Health Strategy, Nurturing Health: A Framework on the Determinants of Health: 7, Toronto, 1991.
231 Um dos melhores estudos sobre este problema é Rifkin, Jeremy, The End of Work: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of The Post-Market Era, Putnam, Nova York, 1995. Desta obra extraí vários dos exemplos mencionados adiante.
[AOS REVISORES: na edição argentina esta nota e a seguinte foram colocadas em ordem inversa]

232 Beeston, Richard, “Computers could act as diplomats, says report”, The Times: 18, 17 de maio de 2000, comentando o relatório do Foreign Policy Center “Going Public: Diplomacy for the Information Society”.
233 As referências da revista Fortune e de The Wall Street Journal foram citadas em Netview (Global Business Network News), Vol. 7, No. 1, 1996, págs. 16 e 9, respectivamente.
234 Dados de The Economist: 13, 28 de setembro de 1996.
235 O livro que deu o pontapé inicial foi Hammer, Michael, e Champy, James, Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution, Harper Business, Nova York, 1994.
236 Citado em The New Leaders: 6, Sterling and Stone, Co., San Francisco, maio-junho de 1996.
237 Bridges, William, Understanding Today’s Job/Shift, conferência realizada em San Francisco em abril de 1995. Muitos dos exemplos de empresas dos Estados Unidos nesta seção foram extraídos desta pesquisa.
238 Bassett, Philip, “Decline of full-time work to continue, says forecast”, em The Times, Londres, 29 de outubro de 1996.
239 Segundo Melania Brian em The Independent, 15 de outubro de 1996.

240 William Bridges, op. Cit.
241 Krugman, P., The Accidental Theorist and Other Dispatches from the Dismal Science, W. W. Norton & Co., Nova York e Londres, 1998, em particular a Parte I, “Jobs, Jobs, Jobs”.
242 Greider, William, One World, Ready or Not; Reich, Robert, Inside the Cabinet.
243 Krugman, Paul, op. cit.: 31.
244 Keynes, John Maynard, Essay on Persuasion, 1930.
245 Wiener, Norbert, The Human Use of Human Beings: 162, Houghton Mifflin, Nova York, 1950.
246 A citação de Maquiavel foi extraída da antologia de Gaston Bouthout, L’Art de la Politique: 146, Editions Seghers, Paris, 1969.
247 Material reunido por Jeremy Rifkin para o artigo “African-Americans and Automation”, em Utne Reader: 68, Nº 69, maio-junho de 1995.
248 Nicholas Leman, citado por Rifkin, Jeremy, op. cit.
249 Kahn, Tom, The Problem of the Negro Movement (1962), citado por Rifkin, Jeremy, op. cit.
250 Lakoff, George, Moral Politics: What Conservatives Know that Liberals Don’t: 33-34, University of Chicago Press, Chicago e Londres, 1996.
251 Rifkin, Jeremy, op. cit.
252 Cradall, B. C., Nanotechnology: Molecular Speculations on Global Abundance: 52, The MIT Press, Cambridge, 1996.
253 Michael, Don, Automation: the Silent Conquest; Michael, Don, The Unprepared Society; Toffler, Alvin, Future Shock.
254 Citado pelo filósofo Pogo Possum.
255 Cahn, Edgar, citado na revista YES! A Journal of Positive Futures: 12, edição especial sobre moedas complementares “Money: Print your Own”, Nº 2, 1997.

256 Existe um catálogo notável com mais de trezentas páginas com o inventário de milhares de exemplos de moedas das quais estão documentadas amostras . Ver Mitchell, Ralph A., e Shafer, Neil, Standard Catalog of Depression Scrip of the United States in the 1930’s, Including Canadá and México, Krause Publications, Iola (Wisconsin), 1984. O Museu do Dinheiro Mundial do banco Chase Manhattan também possui uma vasta coleção destas peças.
257 Há exemplares na coleção da Smithsonian Institution na cidade de Washington.
258 Entre outros, os profesores Joachim Starbatty (Tubinga), Oswald Hahn (Nuremberg), Hans C. Binswanger (St. Gallen) e Dieter Suhr (Augsburg). A obra de Gesell em alemão totaliza 18 volumes (Gesammte Werke, Werner Onken [comp.]). Em inglês só foi publicado seu livro mais importante, Natural Economic Order, de 1928 (traduzido por Philip Pye). A falta de familiaridade com a obra de Gesell fora da Alemanha tem algumas exceções dignas de nota, como os escritos de T. Cowen, R. Krosner, William Darrity e Mario Seccareccia, todos autores de publicações recentes.
259 Veja o capítulo 9.
260 Johnson, Paul, Modern Times: The World from the Twenties to the Eighties: 134-35, Harper and Row, Nova York, 1983.
261 Ver dados detalhados em Whale, P. B., Joint-Stock Banking in Germany: 210, Londres, 1930, 1968.
262 Há cartas que fazem referência específica a este caso, como a enviada pelo Conselho de Administração do Reichsbank (I 10513) ao ministro da fazenda em 8 de agosto de 1931 (Bundesbank Archiv R 31.01/15345, pág. 145). Um estudo recente que analiza este caso é Million, Claude, “Nebenwärungen gegen Absatzstockung und Beschäftigungskrise” (tese de doutorado inédita da Universidade Humboldt, Berlín, 9 de abril de 1998).

263 Deliberadamente deixamos fora deste gráfico a eleição de 6 de novembro de 1932, pois após a eleição de julho desse ano, Hitler se negou a assumir o cargo de vice-chanceler com Von Papen, obrigando com isso a realização de novas eleições poucos meses depois. Como consequência desta atitude de “tudo ou nada”, o partido nacional-socialista perdeu dois milhões de votos em novembro de 1932, mas este revés se deveu, sem dúvida à intransigência de Hitler e não teve relação com as flutuações do desemprego.
264 Fontes: Heimat Museum de Wörgl e Schwartz, Fritz, Das Experiment von Wörgl, Genossenschaft Verlag Freiwirtschaftlicher Schriften, Berna, 1951.
265 Unterguggenbergers Programm, 8 de janeiro de 1934 (Heimat Museum de Wörgl).
266 Fisher, Irving, “Stamped Scrip and the Depression”, Fourth Letter to the Editor, The New Republic: 246, vol. 74, 12 de abril de 1933.
267 Fisher, Irving, Stamp Scrip, Adelphi Co., Nova York, 1933.
268 Mitchell, Ralph A., e Shafer, Neil, op. cit.
269 Schwartz, Fritz, Das Experiment von Wörgl, op. cit.: 14.
270 Discurso de F. D. Roosevelt de 4 de março de 1933.
271 Título do livro dedicado a ele por Norman Muhlen, publicado em Nova York em 1939.
272 Schacht, Hjalmar, Abrechnung mit Hitler: 29-32, Hamburgo, 1948.
273 Goebbels, Joseph, The Goebbels Diary – The Last Days, Hugh Trevor-Roper (edit.), Londres, 1978.
274 Marsh, David, The Bundesbank: The Bank that Rules Europe: 108, Heineman, Londres, 1992.
275 Dodd, William, e Dodd, Martha, Ambassadors Dodd’s Diary, 1933-38: 176, Nova York, 1941.
276 Ritter, Gerhard, Carl Goederer und die Deutsche Widerstandbewegung, Stuttgart, 1954.
277 Marsh, David, op. cit.: 110.

278 Dados recolhidos principalmente em sites da Internet, em particular http://transacton.net/money/community que reúne informações sobre vários outros sites, entre elles: Landsman Community Services, Canadá; Letslink, do Reino Unido; “Grains de Sel”, França (http://altern.com/sel/letsww.htm); Time Dollar Institute, Washington. Para os países de idioma alemão: http://www.talent.ch/adr/letslist.htm. Ithaca Hours http:www.publiccom.com/web/ithacahours.
279 Linton, Michael; Greco, Thomas, “The Local Employment and Trading System” em Whole Earth Review Number 55, Verão de 1987. E para uma das melhores análises técnicas do sistema LETS e outros sistemas alternativos veja Greco, Thomas, New Money for Healthy Communities (Thomas Greco, Publisher. POBox 42663, Tucson AR 85733).
280 Ibid.
281 Adaptado de Greco, op. cit.: 92.
282 Mowat, Iain, “The growing trend toward Local Exchange Trading Systems within industrialised nations”: 3-4, tese de excelência para o Departamento de Economía da Universidade de Strathclyde, 1997-98.
283 New Economics Foundation, Community Works, citado em New Economics Magazine, Nº 41, 1997.
284 Jackson, Mark, Helping Ourselves: New Zealand’s Green Dollar Exchanges, La Trobe University, Bendigo, PO Box 199, Bendigo 3550, Victoria, Austrália, 1996. É importante acrescentar que esta tese resultou do programa de bolsas de estudo ANZAP, um convênio estabelecido entre a Austrália e a Nova Zelândia para pesquisadores destacados nos seus respectivos campos de atuação cujos trabalhos possam ser favorecidos com a realização de pesquisas no outro país. É possível contatar Mark Jackson por e-mail: 240102@basil.bendigo.latrobe.edu.au
285 Suffrin, Claire, e Heber, Marc, Appel aux Inteligences. Os depoimentos sobre a aplicação do sistema foram obtidos em Maison de l’Amitié, Allée du Nondeux, 5570 Beauraing, Bélgica.

286 Fontes: 50 ans de Cercle Economique wir (publicação comemorativa do 50o aniversário do WIR), outubro de 1984; Une entreprise de services et une banque pour le developpement economique des PME (publicação do WIR). Veja também Simon, E., Enstehung und Entwicklung des Schweizerischen Wirtschaftringes e Enz, P., Wie und warum der WIR enstastand.
287 WIR-Nachrichten, Nº 1, novembro de 1934.
288 Discurso de Werner Zimmerman na Conferência de Outono de 1954.
289 Baseado em diálogos pessoais com o Sr. Kato em Tóquio em setembro de 1999, bem como em fragmentos de diversos documentos, entre eles Kato, Toshiharu, Silicon Valley Model, NTT Books (em japonês) e os citados em http:/kingfisher.kuis.kyotou.ac.jp/ecomoney/reports/topicsinJapan.html.
290 Kato, Toshiharu, “Silicon Valley Wave: Toward the Creation of the Next Generation Information Society”; (itálicos adicionados por mim).
291 Kato, Toshiharu, “Eco-Money: Its Significance and Possibilities in the 21st Century”.
292 Veja The Washington Post: A1, 20 de maio de 1991, e The Berkshire Record: B1, 26 de abril de 1991. Estes quatro experimentos e outros são analizados em Greco, Thomas, New Money for Healthy Communities, op. cit.
293 Marketing, 9 de maio de 1996.
294 Worthington, Steve, e Halsworth, Alan, “Leominster card boosts town fortune”, em Retail Week, 28 de junho de 1996.
295 Boyle, David E., Money (relatório especial do Financial Times), dezembro de 1999.

296 O primeiro foi um estudo sobre os Time Dollars realizado pelo Maryland Institute for Aging e o segundo, uma pesquisa de campo sobre o Bread, um sistema muito incipiente de moeda local iniciado em Berkeley, Califórnia, no qual 22 das 40 pessoas entrevistadas manifestaram que só haviam começado a prestar os serviços específicos que ofereciam para a rede em decorrência direta da criação do BREAD. É importante destacar que a amostra do primeiro destes estudos é mais confiável que a do segundo: 40 entrevistados é um número reduzido demais para ser significativo estatísticamente. Sem dúvida, seria útil uma quantidade maior de dados sobre as repercussões sociais e microeconômicas das moedas complementares. Veja Kobayashi, Kazunori, Community Currency, tese inédita de pós-graduação, 9 de maio de 1999, Berkeley Bread Case Study.
297 Desmonde, William H., Magic, Myth and Money: 25, The Free Press, Nova York, 1962.
298 Bennet, William, Index of Leading Cultural Indicators, Touchstone Book, Nova York, 1994.
299 Fonte: National Center of Health Statistics. Proporcionalmente, é maior o aumento entre brancos ricos de alta escolaridade (veja US Department of Commerce, Bureau of the Census, Current Population Reports, “Population Characteristics”, Series P-20 No. 470 “Fertility of American Women”, 1992).
300 Estatísticas procedentes do National Center of Health Statistics. Na realidade as quantidades são mais altas, mas devido ao estigma social associado ao suicídio, muitos casos são informados como acidentes. Veja Zigler, Edward, Children, Developmental and Social Issues (1988). Também Hollinger, P. C., “Adolescent Suicide: an epidemiological study of recent trends”, American Journal of Psychiatry, 1978.

301 Fonte: Forbes, citado em Netview (Global Business Network News): 16, vol. 7, Nº 4, 1996. De acordo com Robert Reich, Secretário do Trabalho durante a administração Clinton, 68% dos graduados no ensino médio acreditam que quando atinjam la idade dos país, a qualidade de vida será inferior à deles. Fonte: Democratic Leadership Council, Washington, 22 de novembro de 1994.
302 Fonte da pontuação do SAT: The College Board, “Statistics on literary and other basic skills”, Children’s Defense Fund, 1993. As estatísticas sobre porte de armas são procedentes da pesquisa realizada pelo US Departament of Education, citada por Mary Jordan em “Summit searches for cease-fire in violence enveloping children”, The Washington Post, 22 de julho de 1993.
303 Time: 25, 29 de junho de 1998.
304 Estatísticas do FBI. Os crimes classificados como violentos são assasinatos, estupros, robos e assaltos com agressão. Estatística extraída de “Lifetime Likelihood of Victimization”, US Departament of Justice, Bureau of Justice Statistics, maio de 1988.
305 Ibid.
306 Bruce, Judith, Families in Focus, Population Council Publications, Nova York, 1995. Tema resenhado também em artigo de Tamar Lewin, “The Decay of Families is Global, Study Says”, em The New York Times: A5, 31 de maio de 1995.
307 Fonte: “The Family: Home Sweet Home”, The Economist: 26, 9 de setembro de 1995.
308 Bennet, William, op. cit.
309 Wilson Schaef, Anne, Native Wisdom for White Minds: Daily reflections inspired by the native peoples of the world, One World Balantine Books, Nova York, 6 de janeiro de 1995 (os destaques são do original).

310 No campo da antropologia há uma vasta literatura sobre as comunidades e sobre as “economias da dádiva” subjacentes, sobre estas, os melhores trabalhos são os clássicos de Mauss, Marcel, “Essai sur le Don: Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaiques”, em L’Année Sociologique I: 30-186, 1923-24, e Hyde, Lewis English, The Gift: Imagination and the Erotic Life of Property. Vintage Books, Nova York, 1983 (3ª edição). Veja também Lévi-Strauss, Claude, The Elementary Structures of Kinship, traduzido para o inglês por James Bell e colaboradores, Beacon Press, Boston, 1969.
311 “Venerable Beads”, em Discover: The world of science: 26-28, outubro de 1998.
312 Bhikku, Thanissaro, “The Economy of Gifts: An American monk looks at the traditional Buddhist economy”, em Tricycle: The buddhist review: 56, 1996. (os destaques são meus).
313 Marshall, Lorna, “Sharing, Talking, and Giving: Relief of social tensions among the Kung bushmen”, em Africa (publicação periódica do International African Institute): 231-49, vol. 31, Nº 3, julho de 1961.
314 Raymond Firth precisou de um complexo diagrama do tamanho de toda uma página para explicar os 24 passos deste processo. A ilustração consta do seu artigo “Marriage Gifts among the Tikopia”, em Primitive Polynesian Economy, Londres, 1939.
315 Malinowski, Bronislaw, Argonauts of the Western Pacific, Routledge & Sons, Londres, 1922.
316 Barnett, H. G., “The nature of Potlatch”, em American Anthropologist: 349-58, vol. 40, Nº 3, julho-setembro de 1938.
317 Hagstrom, Warren O., The Scientific Community: 22, Basic Books, Nova York, 1965.
318 Wilber, Ken, Sex, Ecology, Spirituality: The spirit of evolution, Shambala, Boston e Londres, 1995.
319 Entrevista com o Prof. Kind, publicada em Boston Globe: 19, 3 de novembro de 1980.

320 Pesquisa realizada em 1995 por Paul Ray, da American Lives Inc. Trata-se do estudo mais importante sobre as mudanças dos valores nos Estados Unidos.
321 The Multinational Monitor, abril de 1989.
322 US News and World Report: 72, 30 de dezembro de 1996.
323 Robert Wood Johnson Foundation, Service Credit Banking Project Site Summaries, University of Maryland Centre of Aging, 1990.
324 George, Robert, “Barter network affords welfare recipients some purchasing power”, em The Boston Globe: 1, 20 de julho de 1997.
325 Artigo de Lina Fina em The Washington Post, 1 de fevereiro de 1996.
326 Várias fontes, entre elas muitas entrevistas diretas com funcionários públicos durante viagem de estudo a Curitiba em 1996-97. Parte das informações sobre o desenvolvimento da estratégia de Curitiba também foi publicada em inglês; veja Rabinovitch, Jonas, “Curitiba: Toward sustainable urban development”, em Environment and Urbanization: 62-73, vol. 4, Nº 2, outubro de 1992; e Rabinovitch, Jonas e Leitman, Josef, “Urban Planning in Curitiba”, em Scientific American: 46-53, março de 1996.
327 Durante os últimos anos, boa parte da distribuição de vales passou às mãos do setor privado. As empresas dão aos seus funcionários 50 vales por mês. Ao mesmo tempo, aumentou a permuta de resíduos por frutas frescas e hortaliças. Além disto, na época das festas de fim de ano, são dados panetones e outros alimentos tradicionais em troca dos vales obtidos com a coleta seletiva de resíduos.
328 As informações sobre o periodo 1993-95 foram extraídas de Indústria, Comércio e Turismo Gestão Rafael Greca, dezembro de 1996. As taxas de crescimento são respectivamente 8,6% ao ano para Curitiba, 6% para o estado do Paraná e 5% para o Brasil.
329 As taxas de crescimento per capita entre 1980 e 1995 são respectivamente 277% para Curitiba, 190% para o Paraná e 192% para o Brasil. Fonte: Informações Socioeconômicas, Prefeitura da Cidade de Curitiba, 1996, comparadas com as bases de dados do SACEN, IPARDES e SICT/ICPI.

330 Fonte: A l’ecoute du Japon: 7-8, boletim da Missão Japonesa à União Europeia, Bruxelas, 3 de julho de 1995.
331 Fontes: Commonweal, Inc., Business Plan, 18 de julho de 1998; Hodroff, Joel, Creating Jobs in a Decade of Downsizing: Introducing the Commonweal Currency Exchange Network, 17 de março de 1995; Morris, David, Institute for Self Reliance: Memorandum on C$D, Washington, 1995; Commonweal, Inc. (PO Box 16299, Minneapolis MN55416), Building Positive Futures for Youth and Communities, Minneapolis, 1998. E comunicações pessoais.
332 Rheingold, Howard, Virtual Communities: Homesteading on the Electronic Frontier, Harper Perennial, Nova York, 1993. Veja também Cibersociety, Steve Jones (edit.), Sage Publishers, Thousand Oaks (California), 1995; e Virtual Culture Cibersociety, Steve Jones (edit.), Sage Publishers, Thousand Oaks (Califórnia), 1997.
333 Business Week: 80, 5 de maio de 1997.
334 Solomon, Lewis D., A Handbook on Community Currencies, The E. F. Schumacher Society, Barrington (Massachusetts), 1995.
335 Solomon, Steven, The Confidence Game: How Unelected Central Bankers are Governing the Changed World Economy, Simon and Schuster, Nova York, 1995.
336 Greider, William, Secrets of the Temple: How the Federal Reserve Runs the Country, Touchstone, Nova York, 1987.
337 Aristóteles é o autor do mais antigo texto que se conhece sobre a “superioridad natural” dos intercâmbios com dinheiro sobre o escambo: “Quando os habitantes de um país se tornam mais dependentes dos de outro país, importando o que precisam, e exportando excedentes, necessariamente passa a ser usado o dinheiro. Os vários bens necessários à vida não são fáceis de se levar consigo, por isto, os homens concordaram em empregar em suas transações algo que fosse intrinsicamente útil e facilmente aplicável aos propósitos da vida; por exemplo ferro, prata e similares, dos quais, o valor primeiramente era medido pelo tamanho e peso, mas no decorrer do tempo eles passaram a colocar um selo para poupar o incomodo de pesar, e para indicar o valor” Política, I, iii.

338 Applegate, Jane, “Firms learn to be criative in bartering”, em Los Angeles Times, 19 de março de 1993.
339 Tremblay, Mirville, “La carte de crédit-troc: une solution a nos problèmes économiques”, em Policity Options: 19-23, Montreal, março de 1994; ou Joyal, Andre, “Entrevue avec Mirville Tremblay, concepteur de la carte de crédit-troc”, em Agora: 10-13, Quebec, maio de 1995.
340 Veja, por exemplo, Amman, Erwin, e Marin, Dalia, “Risk-sharing in international trade: an analysis of countertrade”, em The Journal of Industrial Economics: 63-77, Volume XLII, março de 1994; Williamson, Stev, e Wright, Randall, “Barter and Monetary Exchange under Private Information”, em The American Economic Review: 104-123, março de 1994; Taurand, Francis, “Le troc em Economic Monetaire”, em L’Actualite Economique, Revue d’analyse economique, Vol. 52, número 2, junho de 1986.
341 Schrage, Michael, “Frequent-Purchaser Programs Emerging as the Currency of the 90’s”, em The Washington Post, 10 de julho de 1992.
342 The Wall Street Journal: oped page (página em destaque, oposta ao editorial), 10 de dezembro de 1999.
343 Título da “Introducão” de Jacques Rueff a The Age of Inflation, A. H. Meeus e F. G. Clarke (trad.), Henry Regnery Co., Chicago, 1964.
344 Estimativas de Edouard Parker apresentadas em Sunter, Clem, The High Road: Where Are we Now?, Tafelberg, Human and Rouseau, Cidade do Cabo, 1996.
345 McKibben, Bill, “A Special Moment in History”, em Atlantic Monthly, maio de 1998.
346 BBC World Report, 24 de agosto de 1998.
347 Klaus Toepfer, diretor do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em apresentação de relatório na reunião de Nairóbi.
348 O fator matemático exato para o desconto do fluxo de caixa com uma taxa de desconto d no ano N é 1/(1+ d)N . A maioria dos manuais de finanças tem um apêndice com tabelas de fatores previamente calculados.
349 Korten, David, When Corporations Rule the World: 208, Berret-Koehler Press, San Francisco, 1995.

350 Estimativa do custo de uma moeda mundial de referência de 27 produtos básicos, realizada por Albert Hart, da Columbia University, Nicholas Kaldor, do King’s College em Cambridge, Reino Unido, e Jan Tinbergen, da Netherlands School of Economics, em The Case for an International Reserve Currency, Genebra, apresentado em 17 de fevereiro de 1964 (Documento UNCTAD 64-03482).
351 Veja, por ejemplo, Harmon, Elmer, Commodity Reserve Currency, Columbia University Press, Nova York, 1959; Graham, Benjamin, World Commodities and World Currency, McGraw–Hill, Nova York, 1944, e Storage and Stability, McGraw-Hill, Nova York, 1937; Hart, Kaldor e Tinbergen, ob. cit; St. Clare Grondona, Economic Stability is Attainable, Hutchison Benham Ltd., Londres, 1975; Gondriaan, Ian, How to Stop Deflation, Londres, 1932; Jevons, W. S., Money and the Mechanism of Exchange, 1875.
352 Keynes, John Maynard, The General Theory of Employment, Interest and Money: 234, Macmillan, Londres, 1936.
353 Keynes, J. M., The General Theory of Employment, Interest and Money: 355, capítulo 32.
354 Detalhado em http://www.rich.frb.org/monetarypol/marvin.htm e sintetizado em http://www.wired.com/news/politics/0,1283,32121,00.html
355 Suhr, Dieter, Capitalism at Its Best: The Equalisation of Money’s Marginal Costs and Benefits; Universität Augsburg, Augsburgo, 1989.
356 A notável história do sistema monetário do Egito e seus efeitos será analisada profundamente no livro The Mystery of Money. A melhor fonte sobre o sistema monetário do Egito é: Preisigke, Friedrich, Girowesen im Griechischen Ägypten enthaltend Korngiro, Geldgiro, Girobanknotariat mit Einschluß des Archivwesens, (Strassburg: Verlag von Schlesier &
Schweikhardt, 1910); re-editado por Hildesheim, Georg Olms, Nova York, 1971.

357 Veja The Mystery of Money, op. cit. Neste livro eu examino em profundidade dois antecedentes históricos do impacto da moeda com demurrage sobre a sociedade e o bem-estar económico: Egito e a Idade Média Central (séculos X a XIII). Mostro a ligação entre as monedas com demurrage e a extraordinária prosperidade da Idade Média Central, que fez com que este período fosse chamado algumas vezes de “primeiro Renascimento Europeu” e “A Idade das Catedrais”.
358 Hogart, W. P., e Pearce, I. F., The Incredible Eurodollar: 130-31, George Allen and Unwin, Londres, 1982.
359 Dolde, Walter, “The Use of Foreign Exchange and Interest Rate Risk Management in Large Firms”, University of Connecticut, School of Business Administration, Working Paper 93-042, Storra (Connecticut), 1993, págs. 18-19. Concretamente, foi consensuado que os riscos associados às taxas de juros eram de uma ordem de magnitude menos relevante que os riscos cambiais .
360 Dolde, Ibid. 85% das empresas precisam fazer hedges habitualmente, a média do capital destas é US$8 bilhões, enquanto a média do capital das outras 15% que nunca fazem é US$2,5 bilhões (ver figura 1, págs. 23-24).
361 Krugman, Paul, “The Return of Depression Economics”, em Foreign Affairs: 42-74, janeiro-fevereiro de 1999.
362 Tibbs, Hardin, “Sustainability”, em Deeper News: 29, Global Business Network, janeiro de 1999.
363 Edgar Mitchell, atualmente senador, foi um dos primeiros astronautas dos Estados Unidos.
364 Berry, Wendel, The Unsettling of America, Sierra Book Club, San Francisco, 1977.
365 Smith, Adam, The Wealth of Nations: 423.
366 OECD, Towards Sustainable Development, OECD, Paris, 2000.
367 Passet, R., L’Économique et le Vivant: 11, Bibliothèque Payot, Paris, 1979.

368 Dentre os muitos trabalhos excelentes publicados recentemetne, veja Ekins, Paul e Max-Neef, Manfred, Real Life Economics, Routledge Press, Nova York, 1992; Ekins, Paul, Green Economics Atlas; Hawken, Paul, The Ecology of Commerce; Kelly, Kevin (editor da Wired), Out of Control: The new biology of machines, social systems, and the economic world; Rothschild, Michael, Bionomics: Economy as ecosystem, Henry Hold and Co., Nova York, 1990; Daly, Herman E. e Cobb, John B., For the Common Good: Redirecting the economy toward community, the environment and a sustainable future, Green Print, Londres, 1990.
369 Henderson, Hazel, Paradigms in Progress: Life beyond economics, Indianapolis: Knowledge Systems, Inc., 1992.
370 Ibid.: 28.
371 Ibid.: 30.
372 Ibid.: 31.
373 Steiner, George, “Life Lines”, em The New Yorker: 101, 6 de março de 1971.
374 Sahtouris, Elisabet, “The Biology of Globalisation”, em World Business Academy Perspectives: 27-38, vol. 11, Nº 3, setembro de 1997.
375 Ibid., pág 36. (o itálico é do original).
376 Ilustração extraída de uma conferência de Ingrid Ebeling sobre estruturas autoorganizadas, Caracas, 1990.
377 Sampson, Edward E., “The inversion of Mastery”, em Cibernetic: 26-39, vol. 2, 1986.
378 The Book of Enlightenment: 55, tradução e introdução de Daniel Chanan Matt, Paulist Press, Nova York, 1983. Zohar é uma obra espiritual clássica do século XIII, é o texto mais importante da cábala, a tradição mística do judaísmo.
379 Síntese de uma conferência de Richard Tarnas realizada em 12 de junho de 1998 em Sausalito, Califórnia.
380 Herman, Arthur, The Idea of Decline in Western History, The Free Press, Nova York, 1997.
381 Tarnas, Richard, The Passion of the Western Mind: 442, Balantine Books, Nova York, 1993.

382 Ibid.: págs. 444-45.
383 Needleman, Jacob, Money and the Meaning of Life, Doubleday Currency, Nova York, 1994, pág. 239.
384 Todo um capítulo do meu livro The Mystery of Money foi dedicado a esclarecer as ligações entre comportamentos racionais e “irracionais”, emocionais nos “booms” e “crashes” financeiros, e como estes fenômenos se relacionam com os sistemas monetários.
385 Citado em Flemons, Douglas G., Completing Distinctions: 112, Shambhala, Boston e Londres, 1991.
386 Flemons, Douglas G., op. cit.: 32.
387 Yongming Tang deu um tratamento rigoroso a estas ideais utilizando a linguagem da teoria de sistemas ocidental. Tang, Yongming, “Fostering Transformation through Differences: the Synergic Inquiry (SI) framework”, em Revision: 15-19, edição especial sobre aprendizagem transformadora, vol. 20, Nº 1, 1997. pg 15-19
388 Para conhecer mais sobre os surpreendentes padrões de comportamento dos cães selvagens, veja McNutt, John e Boggs, Lesley, Running Wild: Dispelling the myths of African wild dogs, Southern Book Publishers, Sudáfrica, 1996.
389 Tarnas, Richard, op. cit.: 445.
390 De Saint-Exupéry, Antoine, Citadelle.
391 As primeiras sete das nove modalidades mencionadas aqui foram identificadas por Howard Gardner em seu “Projeto Zero”, realizado na Universidad de Harvard e documentado em Frames of Mind: The Theory of Multiple Inteligences (Tufts University Press, 1993). Armstrong apresenta uma outra versão desta mesma tese em Seven Kinds of Smarts: Identifying and Developing your Multiple Inteligences (Plume Books, 1999).

392 Tibbs, Harding, relatório para la Global Business Network sobre “Sustainability”, em Deeper News: 5, vol. 3, Nº 1, janeiro de 1999.
393 World Commission on the Environment and Development, Our Common Future: 200, Oxford University Press, 1989.
394 Daly, Herman E., e Cobb, John B., For the Common Good, Beacon Press, Boston, 1989.
395 Ehrlich, P. R., e colaboradores, Ecoscience: Population, Resources, Environment, W. H. Freeman, San Francisco, 1977.
396 Meadows, Donella, e colaboradores, Beyond the Limits, Chelsea Green Publishing, Post Mills (Vermont), 1992.
397 Tibbs, Hardin, “Sustainability” Deep News: 39, Global Business Network, janeiro, 1999.
398 Tibbs, Hardin, “Sustainability”, op. cit.
399 Ray, Paul, e Anderson, Sherry Ruth, The Cultural Creatives, Harmony Books, Nova York, 1999. Veja também The Integral Culture Survey: A Study of the Emergence of Transformational Values in America (monografia de pesquisa patrocianda pelo Fetzer Institute e pelo Institute of Noetic Sciences, 1996).
400 Ray e Anderson, The Cultural Creatives: 11-12, cap. 1.
401 Elgin, Duane, e LeDrew, Coleen, Global Paradigm Change: Is a Shift Underway?: 20, San Francisco (California), State of the World Forum, 2-6 de outubro de 1996.
402 Eisenberg, David, e colaboradores, “Unconventional Medicine in the United States”, em The New England Journal of Medicine: 246-52, Nº 328, 28 de janeiro de 1993. Mais informações em Langone, John, “Alternative therapies challenging the mainstream”, em Time: 40, número especial, outono de 1996.
403 Como demonstrado, por exemplo, pela reação atual contra a tese de Rupert Sheldrake sobre os campos morfogenéticos.

404 Entrevista sobre “O tao da psicologia”, na emissora de rádio New Diensions.
405 International Monetary Fund, International Financial Statistics: 8, vol. 47, Nº 7, Washington, julho de 1994.

406 Cassidy, John, “The New World Disorder”, em The New Yorker: 199-200, 26 de outubro e 2 de novembro de 1998.
407 Furness III, William Henry, The Island of Stone Money: 93, 96-100, 1910.
408 Friedman, Milton, Mooney Mischief: Episodes in Monetary History: 6-7, Harcourt Brace and Co., Nova York, 1992.
409 Título de un livro de John Kenneth Galbraith sobre a nova sociedade para a qual estamos rumando.
410 Waldrop, Mitchell, “The trillion-dollar vision of Dee Hock”, em Fast Company, outubro-novembro de 1996.
411 Durrance, Bonnie, “The Evolutionary Vision of Dee Hock: From Chaos to Chaords”, em Training and Development: 26 de abril de 1997.
412 Huddle, Norie, Butterfly: A tiny tale of great transformation, Huddle Books, Nova York, 1990.
413 Greenspan, Alan, “Fostering Financial Innovation: The role of government”, no seu livro The Future of Money in the Information Age: 48, Cato Institute, Washington, 1997.
414 Fonte: Forrester Research, baseado em entrevistas com vários executivos de empresas.
415 Nos capítulos 6 e 7 demos muitos exemplos de como este processo está ocorrendo no final do século xx.
416 Entrevista na emissora de rádio New Dimensions.

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